quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

O pensamento da Criança & do Homem Primitivo

Richard Courtney


Róheim e outros freudianos julgam haver uma relação entre o pensamento do homem primitivo e o das crianças civilizadas. Não que haja uma conexão direta; trata-se antes de certos padrões de pensamento comum. E esses modelos refletem-se em sua atividade dramática. A festa balinesa é um exemplo e é notoriamente semelhante a outros e mais antigos rituais e representações dramáticas. De fato, há um amplo paralelismo entre remanescentes da vida primitiva e remanescentes do passado individual. Há flagrantes semelhanças nos padrões dramáticos e crenças religiosas da cultura popular, da mitologia, dos aborígenes contemporâneos e das crianças civilizadas.

O animismo é cartacterístico das mentes primitivas e infantis. A criança pensa que os objetos têm emoções e experiências como as suas próprias (um psicanalista diria que ela pode, assim, eliminar algumas de suas tensões e dominar, desse modo, a ansiedade). Relacionado ao animismo, porém, está a "onipotência do pensamento", ou magia. Enquanto que a criança pode descarregar sua agressão contra um boneco, os primitivos enfiavam alfinetes em uma efígie do inimigo.

Para o bebê e o homem primitivo há uma pequena diferença entre a intenção e o ato, e, se uma ação é passível de repressão, então a punição já se faz sentir. Na cultura popular, vemos que cada costume, ritual ou fórmula designados a produzir resultados no mundo externo (como a prevenção contra doenças ou melhoria da produção agrícola), fundamentou-se na crença de que a mente humana tinha, de algum modo, o poder de influenciar eventos naturais. Um psicanalista diria que a "onipotência do pensamento" de uma criança é sua crença inconsciente de que os desejos possuem um poder mágico de alcançar a fruição do mundo externo.

De modo semelhante, tanto o homem primitivo quanto a criança pequena julgam que os pensamentos inconscientes influenciam a realidade; porém, como o homem é um ser imaginativo, isto deve ser levado em conta com respeito ao aparente descaso quanto às conexões lógicas. Tanto o selvagem quanto a criança parecem estabelecer, à primeira vista, conexões irracionais. O nativo que golpeia uma vasilha durante um eclipse (assim como a criança que culpa a mesa por seu machucado) tem sua lógica imaginativa própria: está tentando afastar o lobo que ameaça devorar o herói.

Mas, como se produz tal aparente irracionalidade? Ernest Jones afirma que os raciocínios dos primitivos são freqüentemente precisos psicologicamente, embora objetivamente inexatos. Os sonhos, por exemplo, são considerados pelos primitivos e pelas crianças como parte da realidade, e são uma das bases da magia (que é "onipotência de pensamento" por excelência). Os primitivos preocupam-se com bruxarias, magias e espíritos malignos, e as crianças (de acordo com Melanie Klein) evocam uma imagem da mãe-fálica, e ambos podem ser vistos como projeções do inconsciente - hostilidade inconsciente projetada no mundo externo para tornar-se um agente externo, hostil e intencional.

Se bruxos e gigantes são, porém, projeções dos pensamentos infantis sobre os pais, também o são os animais. O simbolismo animal existe nos jogos e contos populares, representações rituais e lendas, nos sonhos, fantasias, mitos, religiões, contos de fada e simples costumes. Quase universalmente são projeções de alguns aspectos da situação familiar - quase sempre do pai, mas também freqüentemente da mãe, irmãos e crianças.

As tribos viam a si mesmas como descendentes de animais (como os ingleses dos cavalos) e os analistas consideram a veneração dos ancestrais como um deslocamento de atitudes semelhantes para com o pai; a heráldica e os animais imaginários (unicórnios, dragões, etc.) são apenas um posterior estágio de disfarce. Ernest Jones evidencia, na antropologia, como o simbolismo pode atuar de vários modos. A concha de cauri é vista pelo homem primitivo com um símbolo das partes pudendas femininas, porém, em primeiro lugar, o cauri passa a identificar-se com poderes que dão a vida; em segundo lugar, a parte foi usada como um todo e o todo como uma parte - o cauri é a mãe da família humana, é a Grande Deusa Mãe, que não é mais que uma concha de cauri; e, terceiro, a associação inconsciente é realmente uma identificação efetiva - o cauri é visto como criador real de todas as coisas vivas.

Os psicanalistas, embora reconhecendo infinitos símbolos, estimam que o número de idéias simbolizadas são cerca de meia dúzia, centrando-se em parentes de sangue, partes do corpo e os fenômenos de nascimento, amor e morte. Os símbolos considerados por analistas, antropólogos e etnólogos são todos concretos, embora observados sob diferentes ângulos. Para os etnólogos, o confete representa o arroz, que, em si, representa o desejo da fertilidade para o casal nubente. O psicanalista, por outro lado, vê o arroz como um emblema de fertilidade e símbolo da semente, da qual todos os outros atos e pensamentos procedem.

Outro importante conceito da psicanálise clássica, relacionado ao pensamento primitivo, é o da bissexualidade. Freud dizia que os pensamentos inconscientes são apenas o verso positivo, e que seus opostos são vistos como idênticos: desse modo, no inconsciente, grande/pequeno/forte/fraco, e assim por diante, são vistos como identidades intercambiáveis. A antropologia demonstrou que exatamente a mesma condição existia nas mais antigas línguas (egípcia, aramaica e indo-germânica) e que todas as diferenciações presentes advêm de uma identidade original de idéias postas.

Melanie Klein, como vimos, pondera que o pensamento de crianças pequenas é similar. O pensamento do homem primitivo, dos primitivos modernos e crianças civilizadas, entretanto, inclina-se a ser mais inclusivo e menos propenso à classificação que o de modernos adultos civilizados. Desse modo, animismo e magia são passíveis de ocorrer.

Essas características das mentes infantis e primitivas são importantes tanto para o jogo dramático quanto para a representação teatral. Mas não apenas essas. Exemplo semelhante é o do fenômeno dos contos de fadas.

Essencialmente, o conto de fadas é didático: seu conteúdo é o processo de crescimento. É real apenas no sentido imaginativo primitivo e infantil: o herói é quase sempre um ser humano envolvido em magia e mesmo seu nascimento é estranho; pode ser amamentado ou criado por um animal, e pode desenvolver características sobre-humanas ou incrível inteligência: pode mutar sua forma para pássaro ou árvore, mesmo na morte.

O casamento é o mais comum dos temas dos contos de fadas, e os atores são símbolos projetados do inconsciente - a madrasta malvada, a feiticeira, os espíritos da natureza (como os ventos e a lua), os anõezinhos ou as perigosas figuras como gigantes comedores-de-gente. À parte as características aplicáveis a todos os homens, cada conto de fada reflete a cultura na qual nasce: os alemães, por exemplo, dão grande atenção às crianças e pouco valor às mulheres, fornecem heróis de apenas dois extratos sociais (alto e baixo) e ser soldado é considerado como sendo a profissão do herói.

O conto de fadas pode refletir crenças primitivas específicas: Rumpelstilskin demonstra que o poder sobre o nome de alguém traz poder para esse alguém, que se torna impotente uma vez pronunciado seu nome (derivado da crença de que os deuses têm sua linguagem própria); pode refletir totemismo - o filho Urso que nasce de um urso e sua mulher humana - ou mesmo canibalismo, como em "O novo ladrão"; e, particularmente, indica que determinadas pessoas têm poderes mágicos baseados em informações secretas específicas.

O destino do herói poderá ser construído por suas próprias ações, porém, mais provavelmente, por habilidade ou magia vinda de fora. Essa é a "sorte" que é um fator constante na cultura popular, vista por Ernest Jones como um desejo de se libertar da punição inconsciente. Há uma atitude infantil com relação ao tamanho: o corpo e suas partes são emocionalmente importantes, pois o tamanho é parte de nossa realidade inconsciente e de nossa compreensão do mundo externo: mesmo Alice altera seu tamanho assustadoramente e Branca de Neve encontra-se com os anõezinhos. Ela nasceu por desejo mágico de sua mãe, que morreu ao dar-lhe a luz; sua sexualidade em desenvolvimento (beleza) provocou a disputa com sua madrasta fálica, que deseja devorar seu coração; com os sete anõezinhos ela aprende a cuidar da casa, aprende animismo e magia.

Há um desejo primitivo fundamental de superar a morte e perpetuar a vida além do túmulo (o que se vê nos rituais de renascimento). O inconsciente em si, naturalmente, não pode perceber a morte como é, antes vê a morte como uma punição (castração, para o psicanalista) ou uma reversão do ato de nascimento (retorno ao útero); e inúmeros mitos e crenças populares estão aí apoiados, tanto parcialmente (como coito) ou como um todo (como nascimento).

Naturalmente, os freudianos diriam que o inconsciente os consideraria como uma mesma coisa. Os rituais de renascimento apresentam símbolos das partes pudendas femininas para o corpo morto, e isto tem duplo simbolismo: como uma promessa de renascimento e continuidade da existência assim como uma entrega ao morto ao útero da mãe.

No Antigo Egito, símbolos masculinos (tanto fálico somo seminal) foram também usados em tais rituais; união sexual e renascimento foram vistos como idênticos e portanto os símbolos fálicos ajudaram a restaurar a vida; os fluidos mágicos de todos os tipos, do néctar divino à ambrosia, são símbolos para o fluido seminal, ou o elixir mágico da vida, que prolongava a vida e trazia boa sorte.

Porém, como nos diz Frankfort, o verdadeiro mito deve ser diferenciado da lenda, saga, fábula ou conto de fadas. Embora este último possa conter elementos do mito, foram sendo elaborados até passarem a simples histórias. O mito verdadeiro apresenta suas imagens e seus atores imaginários não com a jocosidade da fantasia, mas como uma autoridade constrangedora. Perpetua a reveleção de um mundo vivo, animista, natural. A importância do mito e sua distinção do conto de fadas nos remete ao teatro.
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Artigo extraído, e aqui um pouco reduzido, do livro "Jogo, teatro e pensamento", de Richard Courtney. Editora Perspectiva. Tradução de Karen Astrid Müller e Silvana Garcia.

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