quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014




quarta-feira, 10 de julho de 2013


PROCESSO COLABORATIVO

Por Evaldo Mocarzel
     
Dispositivo de criação coletiva que se tornou prática recorrente 
entre os grupos de teatro de São Paulo a partir dos anos 1990. 
Um dos objetivos principais desse procedimento de 
construção de linguagem cênica é abrir espaço para a autoria 
dramatúrgica de todos os envolvidos no processo de criação,
sobretudo os atores e as atrizes através de improvisações 
individuais e workshops coletivos, frequentemente 
deflagrados por depoimentos pessoais.
     
O dispositivo não configura um “método” com normas rígidas 
e apresenta variações expressivas conforme é colocado em 
prática por diferentes companhias paulistanas com linhas de 
pesquisa e rotinas de trabalho muito distintas. Coletivos cênicos 
acabam formando uma espécie de “personalidade plural” 
com idiossincrasias, paladar estético, militâncias e visões de 
mundo muito diferenciadas, o que logicamente vai se refletir
nas formas de condução dos processos colaborativos. 
     
Um grupo, por exemplo, como o Teatro da Vertigem, que atua 
fora dos edifícios teatrais, quase sempre em atrito com a 
urbanidade, aposta somente em processos colaborativos com 
a presença de um dramaturgo, por mais que por vezes sejam 
convidados escritores distantes da prática dramatúrgica 
propriamente dita para participar da criação coletiva. 
A genialidade inóspita do encenador Antonio Araújo só se 
realiza em sua plenitude em conflito com o espaço urbano, 
sob o risco do real. Sua obsessão por uma porosidade 
permanente ao inesperado está até mesmo na escolha de 
autores não familiarizados com as tradições e rupturas 
características da escritura cênica para atuar como 
dramaturgos nos instigantes e inflamados processos 
colaborativos da companhia.
         
Já num coletivo como a Companhia São Jorge, outro grupo 
com profundo apreço por uma atuação fora dos palcos 
convencionais, em atrito mas também em comunhão com a 
urbanidade (no último espetáculo, Barafonda, os moradores 
do bairro da Barra Funda, zona oeste de São Paulo, foram 
incorporados à encenação de maneira inovadora e comovente), 
a presença de um dramaturgo não é condição sine qua non: 
os próprios atores e atrizes constroem suas falas e a escritura 
cênica se torna uma espécie de colagem de todas essas 
improvisações no processo de criação coletiva.  
     
Na Companhia Livre, por sua vez, todos que participam 
do processo colaborativo acabam realizando workshops, 
não apenas o elenco, como, por exemplo, a cenógrafa, diretora 
de arte e figurinista Simone Mina, Alessandra Domingues,
responsável pela criação de luz, e a diretora Cibele Forjaz, 
o “núcleo duro” do coletivo, que conta ainda com a atriz Lúcia
Romano e o ator Edgar Castro.
  
O escritor, roteirista e dramaturgo Fernando Bonassi pode
ser considerado um dos exemplos mais bem-sucedidos de 
atuação nos processos colaborativos da cena paulistana: 
deixou saudades no Teatro da Vertigem (Apocalipse 1.11
1999) e na Companhia Livre (Arena Conta Danton
2004). Após a experiência com Bonassi, ambos os grupos 
dificuldades com outros dramaturgos em processos 
colaborativos por motivos diferentes. No caso do Teatro da
Vertigem, parte do elenco resistiu à imposição de um texto 
trazido pelo escritor Bernardo Carvalho em BR-3, espetáculo
histórico da companhia que foi encenado em quase cinco 
quilômetros do rio Tietê, em São Paulo, em 2006. Alguns 
integrantes do grupo não se identificaram com a tragédia 
shakespeariana engendrada por Bernardo Carvalho e 
queriam uma participação mais autoral na escritura 
dramatúrgica. No que diz respeito à Companhia Livre, 
alguns membros reivindicaram uma presença mais 
sistemática do dramaturgo Newton Moreno no processo de
criação de Vem Vai – O Caminho dos Mortos (2007). Arte
presencial por excelência, a participação intensa e 
permanente de um dramaturgo nos processos colaborativos
tende a facilitar as coisas, sobretudo no que diz respeito
a saciar a ansiedade do elenco em participar da autoria da 
escritura cênica do espetáculo. 
         
Cada dramaturgo acaba adotando uma “metodologia” 
própria para a condução dos trabalhos em processos 
colaborativos. Luis Alberto de Abreu, por exemplo, autor do
texto deO Livro de Jó (1995), um dos mais importantes 
espetáculos do Teatro da Vertigem, não interagiu diretamente 
com o elenco da companhia, mas com o diretor Antonio 
Araújo. Em criações coletivas, Abreu trabalha com 
canovaccios, ou seja, com roteiros de ações que, em
muitos momentos, funcionam como ponto de partida para 
as improvisações do elenco. 
    
Há casos de processos colaborativos que envolvem 
textos já escritos, como, por exemplo, em Memória da Cana,
do grupo Os Fofos Encenam, com direção de Newton 
Moreno. Tudo começou com fotos de crianças e de pessoas 
idosas da própria família trazidas a pedido do encenador 
pelos integrantes com raízes nordestinas da companhia. Em 
seguida, essas imagens foram sensorializadas e se 
tornaram figuras cênicas, depois reunidas numa instalação
dramática no TUSP. Newton  Moreno inseriu então essas 
figuras nos personagens de Álbum de Família, de Nelson 
Rodrigues. O objetivo foi resgatar as raízes nordestinas
 do grande dramaturgo “carioca”, mas que nasceu no Recife. 
O próximo passo foi o seguinte: o expressionismo de Nelson 
colocado à luz do canavial do sociólogo Gilberto Freyre
com direito a elementos do maracatu rural. Foi encenada 
uma “obra em progresso” no Itaú Cultural antes da estreia 
do espetáculo na sede da companhia em julho de 2009. 
A principal semeadura do processo colaborativo em 
Memória da Cana foram principalmente essas camadas 
sensoriais trazidas pelo elenco a partir da própria memória 
afetiva e de depoimentos pessoais que decantaram nos
personagens de Nelson Rodrigues. 
     
Todo processo colaborativo envolve prós e contras. 
A vitalidade e a efervescência da cena paulistana 
contemporânea estão com toda certeza respaldadas 
nesse dispositivo de criação coletiva que se tornou uma 
prática cada vez mais frequente entre os grupos da cidade, 
como já foi dito. No entanto, por outro lado, há momentos
de estagnação, sobretudo em processos sem a 
presença de um dramaturgo, em que se enfrenta um tedioso 
bate-cabeça de workshops de atores e atrizes, além de
uma constatação cruel, mas verdadeira: nem todos os 
integrantes dos coletivos têm uma percepção mais abrangente, 
conceitual e dramatúrgica, sob o ponto de vista autoral, 
do espetáculo como um todo. Muitos querem personagens 
minimamente esboçados para que possam exteriorizar 
o próprio talento interpretativo.
     
Livremente inspirado no método de trabalho do encenador 
Robert Wilson, o professor e também diretor Marcos Bulhões 
aponta um caminho que talvez possa funcionar como uma 
solução para esses problemas: a preparação de roteiros 
cênicos. Todos que fazem parte do processo podem 
e talvez devam escrever uma sequência de três cenas 
para os próprios workshops, com indicações das ações, 
palavras e pontuações musicais, além de três quadros
desenhados pela própria pessoa para cada uma das cenas
com o objetivo de materializar em imagens o que está na 
cabeça daquele determinado membro da equipe. Trata-se 
de um primeiro esboço de três planos que talvez possa ser
bem eficiente nos processos colaborativos, sobretudo entre 
os integrantes mais confusos com relação ao que querem
experimentar em suas criações individuais, logicamente sem 
jamais perder o frescor do inesperado que irrompe em 
improvisações calcadas em depoimentos pessoais.
     
Participei como dramaturgo em dois espetáculos construídos 
a partir de processos colaborativos: Kastelo, com o Teatro 
da Vertigem, e Satyricon, com a companhia Os Satyros
que acabou se transformando num tríptico cênico: além de 
Satyricon, uma primeira parte, Trincha, instalação dramática 
que antecedia o espetáculo propriamente dito, e Suburra, 
uma rave performativa que fechava a trilogia no final da noite. 
    
 Em Kastelo, na verdade, inicialmente participei da criação 
coletiva como cineasta e produzi imagens e sons para o 
futuro visagismo audiovisual do espetáculo. Após oito meses 
de ensaios, o grupo e o dramaturgo romperam a parceria 
e fui então chamado para elaborar uma escritura dramatúrgica 
a um mês da estreia, em janeiro de 2010. O desafio da 
empreitada era grande: Kastelo era todo encenado em 
andaimes do lado de fora do terceiro andar do Sesc Paulista, 
em pleno cartão-postal da cidade: a Avenida Paulista. Não 
é tarefa fácil criar ações em espaços tão exíguos e 
envolvendo uma logística e uma operacionalidade muito 
complexas. Aceitei o desafio e, ao perceber a carência de 
todos por texto, por algum tipo de escritura cênica engendrando
ações e palavras para que todos pudessem empunhar durante 
os ensaios, acabei entrevistando individualmente cada ator 
e cada atriz, além dos personagens que todos haviam criado. 
Produzi oito textos diferentes para cada um dos oito integrantes 
do grupo que estavam participando do processo com tudo
que haviam improvisado nos workshops. Foi uma espécie de
exercício de alteridade: mergulhei no depoimento pessoal de cada
um e nos personagens criados, e depois devolvi tudo em forma
 de texto. 

Essa etapa inicial na minha atuação como 
dramaturgo foi mais que uma devolução: na verdade, a intenção
 foi fazer uma espécie de acareação de todos com as figuras
 cênicas que haviam criado. Depois jogamos tudo fora e 
começamos a escrever uma primeira versão da dramaturgia. 
Foram ao todo nove, até duas semanas após a estreia.
No início do processo, o grupo queria fazer uma adaptação
livre do romance O Castelo, de Franz Kafka, e ainda discutir 
a sociedade do espetáculo contemporânea. Ainda atuando 
como cineasta na confecção do visagismo audiovisual 
da encenação, produzimos muitas imagens com esses pontos
 de partida. 

No entanto, quando assumi a dramaturgia, o 
grupo deu uma guinada: queria focalizar o trabalho 
na sociedade contemporânea, e o romance de Kafka havia ficado
para trás. Ciente de que tínhamos uma dívida moral com o grande
 autor de A Metamorfose e O Processo (afinal, por que então
chamar o espetáculo de Kastelo?), por sugestão de Antonio 
Araújo, que estava atuando nesse processo como dramaturgista
 (a direção foi de Eliana Monteiro), resgatei as narrativas 
surrealistas e angustiadas do livro Sonhos, de Kafka, com 
algumas imagens muito potentes, como, por exemplo, o 
corpo humano sendo tratado como uma máquina. Como
dramaturgo, acabei jogando fora todo o material audiovisual 
que havia produzido como cineasta, pois não via mais 
organicidade de todas aquelas imagens com os novos rumos
tomados pelo processo de criação do espetáculo. O interessante
é que o material audiovisual não era mais orgânico na encenação,
mas caiu como uma luva no filme que fiz posteriormente a partir 
do registro do espetáculo e que também foi batizado de Kastelo.
Mistérios da linguagem do cinema. Essas imagens também
deixaram camadas sensoriais no processo de criação dos 
atores e das atrizes da encenação Kastelo propriamente 
dita. 

Utilizando duas traquitanas cinematográficas 
(uma microcâmera de segurança e um body-cam, espécie de
colete no qual uma câmera maior era fixada numa barra de 
alumínio, ambos acoplados aos corpos dos integrantes do 
elenco), pedi a todos que documentassem a urbanidade 
na pele dos personagens que haviam criado. Foi uma
experiência muito interessante como processo, além de ter 
gerado imagens bonitas e inusitadas, sempre com o movimento
do corpo de quem estava documentando e ao mesmo tempo
performando na cidade. Num estúdio, projetamos essas 
imagens da urbanidade captadas pelo elenco no próprio corpo 
dos atores e das atrizes, utilizando a pele de todos como
suporte de projeção. E aí filmamos o resultado. Felizmente 
esse rico material audiovisual, por mais que tenha ficado 
de fora do espetáculo, encontrou o seu lugar no filme Kastelo,
híbrido de teatro, cinema, videoarte e intervenção urbana. 
    
Por fim, minha segunda experiência como dramaturgo
em processos colaborativos: o antes mencionado espetáculo
Satyricon. Essa segunda experiência foi mais tranquila, pois tive 
muito mais tempo de maturar a escritura cênica ao longo dos 
meses, sem uma estreia premente no mês seguinte. No 
entanto, o processo envolvia um elenco muito numeroso, que 
crescia e diminuía, mas que no final mobilizou mais de 20 pessoas
em cena. O tríptico Satyros’ Satyricon estreou em março de
 2012 no Festival de Teatro de Curitiba. Um aprendizado 
maravilhoso guiado por duas bússolas: a minha presença 
constante no processo de criação coletiva e o permanente 
exercício de alteridade, respeito pelo “outro”, pela criação 
do “outro”, por mais que depois tudo aquilo acabaria sendo 
descartado. 

Em processos colaborativos, é muito importante 
que atores e atrizes vejam suas improvisações, workshops
e criações materializados em escritura dramatúrgica. Todos
se sentem respeitados e participando intensamente do processo 
de criação coletiva. Esse é um cuidado que os dramaturgos 
precisam ter: uma generosa apropriação de tudo que é criado
 por todos. Depois, em novas versões, os excessos 
vão sendo descartados, mas a ideia de uma autoria coletiva é 
preservada. O teatro, como já foi enfatizado, é uma arte 
presencial por excelência e, em processos colaborativos, 
essa presença constante do dramaturgo é condição sine qua non, 
o que gera um respeito entre todos os membros da equipe, 
principalmente o elenco. Processos colaborativos são por 
vezes árduos, mas, ao mesmo tempo, são caminhos 
extremamente bem-sucedidos para as criações coletivas. 
Trata-se de um dos pilares da experimentação e da 
potência da cena paulistana contemporânea. 

     Para finalizar, o verbete Processo Teatral do livro Dicionário
 de Teatro, de Patrice Pavis (1999, p. 306): 
As ações ou acontecimentos encenados são 
processos quando se mostra seu caráter dialético, 
o perpétuo movimento e a dependência de fatos 
anteriores ou exteriores. Processo opõe-se a 
estado ou a situação fixada; é o corolário de 
uma visão transformadora do homem “em processo”,
pressupõe um esquema global dos movimentos 
psicológicos e sociais, um conjunto de regras de 
transformação, e de interação: eis por que esse 
conceito é empregado sobretudo numa dramaturgia
aberta, dialética e até mesmo marxista (P. Weiss. B. Brecht).

Referências

GUINSBURG, J., FARIA, João Roberto e LIMA, Mariangela
Alves de. (orgs) Dicionário do Teatro Brasileiro. São Paulo: 
Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. 

PAVIS, Patrice. Dicionário De Teatro. Ed. Perspectiva, São Paulo, 1999.


                                               

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