terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Teatro a Vapor
Artur Azevedo

A VERDADE

(Gabinete de trabalho. O Juquinha chegou do colégio, entra para tomar a benção ao pai, o Dr. Furtado, que está sentado numa poltrona, a ler jornais)

JUQUINHA – Benção, papai?

DR. FURTADO – Ora viva! (depois de lhe dar a benção) Venha cá, sente-se ao pé de mim. (Juquinha senta-se) Saiba que estou muito zangado com o senhor.

JUQUINHA – Comigo?

DR. FURTADO – O diretor do colégio deu-me uma bonita informação a seu respeito!

JUQUINHA – Esta semana só tive notas boas.

DR. FURTADO – Não é de seues estudos que se trata, mas do seu comportamento.

JUQUINHA – Eu não fiz nada.

DR. FURTADO – O diretor disse-me que o senhor não abre a boca que não pregue uma mentira! Isso é muito feio, senhor Juquinha!

JUQUINHA – Mas papai, eu...

DR, FURTADO – O homem que mente é o animal mais desprezível da criação! Retire-se! (Juquinha vai saindo penalizado. O pai adoça a voz) Olha, vem cá. (Juquinha volta) Tu sabes quem foi Epaminondas?

JUQUINHA – Lá no colégio tem um menino com esse nome.

DR. FURTADO – Não é esse. Ainda não sabes, mas hás de lá chegar, quando estudares a história da Grécia. O Epaminondas, de quem te falo, era um general tebano, vencedor dos lacedemônios, que ficou célebre não só pelos grandes feitos que cometeu, como também porque não mentia nem brincando.

JUQUINHA – Então nem brincando a gente deve mentir?

DR. FURTADO – Nem brincando! A mentira é degradante. Degradante e inútil: o mentiroso é sempre apanhado. A sabedoria das nações lá diz que mais depressa é pegado um mentiroso a correr que um coxo a andar. O homem honrado – presta-me toda a atenção! – o homem honrado não mente em nenhuma circunstância da vida, ainda a mais insignificante! (Batem palmas no corredor) Quem será? Algum importuno!

JUQUINHA – Papai, quer que eu vá ver quem é?

DR. FURTADO – Vai, e se for alguém que me procure, diz-lhe que não estou em casa.


A CASA DA SUSANA

(Amélia está em seu boudoir. Acaba de despir-se ajudada pela mucama. Voltou do teatro com o marido, o comendador, que depois do chá se recolheu a dormir como um bem-aventurado. É uma hora da noite)

MUCAMA – Nhanhã gostou do drama?

AMÉLIA – Não era um drama, era um vaudeville.

MUCAMA – Engraçado?

AMÉLIA – Não; não tem graça nenhuma, porque é muito imoral. Eu queria vir para casa no fim do primeiro ato, mas o comendador entendeu que devíamos ficar até o fim! Se aquilo é espetáculo a que um marido leve a sua esposa...

MUCAMA – Ih!...Nhanhã como está indignada!

AMÉLIA – Pudera! Uma senhora honesta não deve sancionar com sua presença a exibição de semelhantes peças: dá má idéia de si.

MUCAMA – Como se chama o vaudeville, Nhanhã?

AMÉLIA – A casa de Susana. É esse o título!

MUCAMA – Susana! É aquela francesa velha que de vez em quando faz benefício?

AMÉLIA – Não é outra de igual nome, mas muito pior. Não podes imaginar o que aquilo é! Eu estava a ver o momento em que mesmo em cena...Que Horror! Nunca senti tanto fogo nas faces!

MUCAMA – Por que Nhanhã não se retirou do teatro?
AMÉLIA – Já te disse que me quis retirar, mas o comendador, que dá o cavaquinho pela pornografia, dizia-me: - Espere, senhora; deixe-me ver até onde vai esta pouca vergonha!
MUCAMA – pronto! – Nhanhã não precisa de mais nada?

AMÉLIA – Não; podes te ir deitar, mas, antes disso, vê se o comendador já está dormindo. (Mucama sai e volta) Então?

MUCAMA – Está ferrado no sono, roncando que é um louvor a Deus!

AMÉLIA – Bem. Podes ir. Boa noite.

MUCAMA – Boa noite, Nhanhã. (Mucama sai. Amélia diminui a força ao gás, e fica envolta numa doce meia-luz, em cuja sombra se destacam suavemente as rendas brancas da sua camisola. Depois, ela vai abrir, sem rumor, uma janela que dá para o jardim. Ouve-se um assobio)

AMÉLIA (A meia-voz, para o jardim) – Podes vir...(Pausa. Hemrique aparece no jardim, apóis as mãos no peitoril da janela, dá um salto e entra no boudoir. Amélia fecha a janela)

AMÉLIA – Meu Henrique!

HENRIQUE – Minha Amélia! (Atiram-se nos braços um do outro e beijam-se longamente) Ele dorme?

AMÉLIA – Profundamente! Queres saber o que me fez hoje aquele bruto?

HENRIQUE – Dize.

AMÉLIA – Levou-me à Casa da Susana.

HENRIQUE (Com um sobressalto) – Que Susana?

AMÉLIA – É uma peça de teatro.

HENRIQUE (Compreendendo) – Ah!

AMÉLIA – Uma peça do tal gênero livre.

HENRIQUE – Que tem isso?

AMÉLIA – Uma imoralidade que não deve ser vista nem ouvida por uma senhora honesta.

HENRIQUE – Olha, sabes que mais, meu amor? Deixemo-nos de hipocrisias! O teatro é ficção, é fantasia, é mentira; e esta realidade...sim, o que nós estamos fazendo, o que nós vamos fazer, é muito mais imoral.

AMÉLIA – Pois sim, mas ninguém vê...ninguém sabe...Meu Henrique!

HENRIQUE – Minha Amélia! (Atiram-se de novo aos beijos etc.)


UM CANCRO

(No quarto de Magalhães, que se veste, ajudado pela senhora)

MAGALHÃES – Até que afinal temos um chefe de polícia!

SENHORA – por quê?

MAGALHÃES – Porque está disposto a acabar com o tal jogo dos bichos!

SENHORA – Pois olha, Magalhães, é pena!

MAGALHÃES – Não digas isso, mulher! Pois não vê que o jogo dos bichos é um cancro da sociedade?

SENHORA – Sim, não duvido, tem-no dito muitas vezes; mas como tenho sido feliz...

MAGALHÃES – Tu?! Pois tu jogas nos bichos?!

SENHORA – Sim, confesso-te, mesmo porque não quero por mais tempo guardar esse segredo...Sim, eu sei que tu é contra o jogo, mas já duas vezes acertei na centena...Nos grupos tenho sido de uma felicidade inaudita...ainda ontem ganhei 120 mil réis!

MAGALHÃES – Que me estás dizendo, mulher?!

SENHORA – Nada te dizia para te não contrariar; mas com que dinheiro reformei a mobília da sala de jantar? Com que dinheiro comprei na Casa Colombo aquele terno que te ofereci no dia dos teus anos e de qye tu tanto gostas? Tudo dinheiro dos bichos!

MAGALHÃES – Supus que fossem as balas.

SENHORA – Qual! As balas não dão assim tanto lucro. Olha: tu estás sofrendo do fígado e o médico recomendou-te uma estação em Cambuquira...

MAGALHÃES – Estação que não posso fazer...

SENHORA – Podes, sim. Em março iremos a Cambuquira. Já tenho para isso 800 mil réis guardados, e se consentes que eu continue a jogar, afianço-te que reunirei dois contos de réis, porque sou muito feliz. Agora, se não consentes, é outra coisa...Sou uma esposa obediente...Só faço o que meu marido quiser que eu faça...

MAGALHÃES – Mulher, que te hei de dizer? Joga...vai jogando...

SENHORA – Mas não dizes que o jogo é um cancro da sociedade?

MAGALHÃES – É um cancro para quem perde.

SENHORA – Hoje tenho um palpite enorme no gato.

MAGALHÃES – Pois joga no gato!

SENHORA – O diabo é o chefe de polícia...

MAGALHÃES – Deixa lá, que o chefe de polícia não fará maiores milagres que os outros! Era só o que faltava, que por causa do chefe de polícia eu não fosse em março a Cambuquira tratar do meu fígado!


SENHORITA


DONDOCA – Ó Joaninha!; estava morta por encontrar você!

JOANINHA – Por que Dondoca?

DONDOCA – Porque, como você é muito instruída, eu queria saber a sua opinião sobre o grande assunto que atualmente se debate na imprensa!

JOANINHA – Qual?

DONDOCA – O tratamento que nós devemos ter.

JOANINHA – Nós quem?

DONDOCA – Nós, moças solteiras. Devemos ser meninas, mademoiselles, doninhas, senhorazinhas, senhorinhas ou senhoritas? Qual é a sua opinião?

JOANINHA – Eu lhe digo. Não gosto de menina. Houve lá em casa uma criada portuguesa que só me chamava a menina Joana, e esse tratamento me soava muito mal ao ouvido.

DONDOCA – Naturalmente! Ora, a menina Joana...Até parece que é outra pessoa, que não é você!

JOANINHA – Todas as vezes que algum dos nossos elegantes me dirige um “mademoiselle”, acho-o supinamente ridículo.

DONDOCA – Você está comigo!

JOANINHA – E num dia em que certo jornal me chamou “demoiselle”, fiquei deveras ofendida.

DONDOCA – Naturalmente.

JOANINHA – Quando me dizem “dona”, sinto-me envelhecer.

DONDOCA – Realmente, o “dona” só nos assenta depois que nos casamos, e por isso mesmo, deixe lá, Joaninha (com um suspiro), é o tratamento que, no fundo, mais nos agrada!

JOANINHA – Antes de casadas, poderíamos ser “doninhas”, diminutivo de “donas”, mas se fôssemos “doninhas”, os rapazes quereriam ser sapos.

DONDOCA – Para nos fascinarem...

JOANINHA – Assim pois, como “senhorinha” e “senhorazinha” são desgraciosos, o melhor é “senhorita”. É delicado e sonoro.

DONDOCA – Mas dizem que não é português...

JOANINHA – Se não é, fica sendo. E não é português por quê? Se “senhorita” não é português, também não o são “mosquito”, “palito” e outros diminutivos em Ito, como, por exemplo...

DONDOCA – Periquito.

JOANINHA – Não, Dondica, “periquito” não é dominutivo.

DONDOCA – Perdão, Joaninha; você está enganada; “periquito” é  diminutivo de “papagaio”.


QUERO SER FREIRA!

(o Sr. Nogueira tem entrado da rua e conversa com D. Águeda, sua mulher)

ÁGUEDA – Sabes de uma grande novidade, Nogueira? Nossa filha quer entrar para o convento de Santa Teresa!

NOGUEIRA – Dize-lhe que faz mal; que entre antes para o da Ajuda.

ÁGUEDA – Por quê?

NOGUEIRA – Porque está na avenida Central. Deve ser mais divertido. Pode ver o presidente quando for ao palávio Monroe.

ÁGUEDA – Não gracejes. Diz ela que está resolvida a tomar o véu. Já lhe pedi que se esquecesse disso, mas não há jeito de lhe tirar semelhante idéia da cabeça!

NOGUEIRA – Para o que lhe havia de dar!

ÁGUEDA – Depois que leu nos jornais a notícia da tomada de véu da filha do Dr. Lourenço da Cunha, anda toda mística, tem êxtases, e creio que lhe aparece Jesus cristo quando está sozinha.

NOGUEIRA – Olha, não vá ver algum malandro!

ÁGUEDA – Por esse lado, descansa.

NOGUEIRA – Dize-lhe que para o convento só entram as mulheres que nada mais esperam do mundo. Tu, por exemplo, que de vez em quando embirras comigo e dizes: “Maldita a hora em que me casei!” – tu farias bem se para lá fosses e me deixasse em paz. Eu pagaria com muito prazer o dote e o lunch aos convidados e representantes da imprensa.


ÁGUEDA – Oh, Nogueira! Pois tens ânimo de me dizer isso a mim, tua esposa?
NOGUEIRA – Subirias muitos furos: serias esposa de cristo.

ÁGUEDA – Prefiro ser mulher do Nogueira. Mas não se trata de mim, trata-se de nossa filha. Ela teve um grande desgosto quando te opuseste ao seu casamento com o Vieirinha.

NOGUEIRA – Então como não tomou estado, toma o véu! Ela que tome juízo!

ÁGUEDA – Fala-lhe.

NOGUEIRA – Fala-lhe tu, que és mãe.

ÁGUEDA – Fala-lhe tu, que é pai. Olha, ela aí vem. (Entra Luísa, de penteador branco, soltos os cabelos, os olhos baixos).

NOGUEIRA – Então, menina, o  que é isso? Preferes “soror” a “senhorita?” Tua mãe disse-me que queres ir para o convento. (Pausa) É exato? (Luísa não responde e ergue os olhos ao céu) Então? Responde!

LUÍSA (com voz arrastada à Sarah Bernhardt) – Quero ser freira!

NOGUEIRA – A tua vontade será feita, mas não imaginas como isso me contraria, e então agora que, melhor informado sobre as qualidades do Vieirinha...

LUÍSA (Vivamente) – Hein?

NOGUEIRA – Disse-lhe hoje que ele seria teu marido...

LUÍSA – papai consente?

NOGUEIRA – Consentiria, se não quisesse ser freira.

LUÍSA – Que freira que nada! Eu só seria freira se não me casasse com ele!

NOGUEIRA – Pois bem! Serás esposa do Vieirinha!

ÁGUEDA – E antes do Vieirinha que de cristo!

NOGUEIRA – Apoiado! – mesmo porque o Cristo, tendo que aturar tantas esposas, um dia acaba por perder a paciência!


A ESCOLHA DE UM ESPETÁCULO

(diálogo entre marido e mulher)

MULHER – Fazes-me um favor?

MARIDO – Dize.

MULHER – Leva-nos hoje ao teatro.

MARIDO – Que idéia a tua! Há muito tempo que não vamos a espetáculos! A última peça que vimos foi O Conde de Monte Cristo. Já lá vão dois anos.

MULHER – Não é por mim; é pelas meninas; prometi-lhes que se elas me dessem aquele vestido pronto sexta-feira, eu te pediria que nos levasse domingo ao teatro. Domingo é hoje.

MARIDO – Enfim...Mas a que teatro querem vocês ir?

MULHER – A qualquer. Escolhe tu.

MARIDO Cá está o jornal. Vejamos. (Lendo os anúncios do teatro na quarta página) Procuremos em primeiro lugar o S. Pedro, que é o teatro mais próprio para a família...Bonito! não há espetáculo no nS. Pedro...Vejamos o Lírico...Também não há espetáculo no Lírico.

MULHER – Vê o Apolo.

MARIDO – Também não há espetáculo no Apolo.

MULHER – Vê o S. José.

MARIDO – Também não há espetáculo no S. José.

MULHER – Vê o Lucinda.

MARIDO – Só há matinê.

MULHER – Não gosto de matinês.

MARIDO – Representa-se O Macaco.

MULHER – Também não gosto de macacos.

MARIDO – Só nos resta o Recreio – sim, porque naturalmente não irei levá-la ao Palace-Theatre, nem ao Moulin-Rouge, nem à Maison Moderne...

MULHER – Que há no Recreio?

MARIDO – Dois espetáculos em matinê e à noite.

MULHER – Já disse que não gosto de matinê.

MARIDO – Nem eu as levaria a uma peça que se intitula O Homem das Tetas.

MULHER – E qual é a peça da noite?

MARIDO – Adivinha.

MULHER – Dize.

MARIDO – O Conde de Monte Cristo!

MULHER – Ora sebo! A mesma que vimos há dois anos!

MARIDO – É o único espetáculo. O melhor é adiarmos a festança...A que estado chegou o teatro no Rio de Janeiro!

MULHER – Pudera! Se há tanta gente que faz como nós!


SULFITOS

(Em casa do Dr. Gambrino, que está sentado numa cadeira, melancólico e triste. José, o seu criado, vem ter com ele)

JOSÉ – Que é isso, patrão? Que tem? Por que está triste?

GAMBRINO – Pois não sabes da grande desgraça?

JOSÉ – Que desgraça?

GAMBRINO – No Laboratório Municipal de Análises descobriram que a minha querida cerveja é um veneno!

JOSÉ – Deveras?

GAMBRINO – Cada litro tem 100 miligramas de ácido sulfuroso anidro. José, tu sabes o que é ácido sulfuroso anidro?

JOSÉ – Não, senhor.

GAMBRINO – Nem eu, mas deve ser um veneno terrível!

JOSÉ – Não haverá engano?

GAMBRINO – Não há engano possível. A reação de Boedeker...José, tu sabes o que é a reação de Boedeker?

JOSÉ – Não, senhor.

GAMBRINO – Nem eu, mas diz que é a reação característica dos sulfitos.

JOSÉ – Ah! Bom! Agora já sei; não há nada como explicar as coisas.

GAMBRINO – Pois bem: a reação de Boedeker não admite dúvidas. Já não se trata da reação do hidrogênio nascente. É a reação definitiva. A minha pobre cerveja está completamente desmoralizada.

JOSÉ – E nesse caso a venda vai ser proibida?

GAMBRINO – Naturalmente! Pois hão de consentir que vendam uma cerveja que tem sulfitos? Eu já não a quero nem de graça!

JOSÉ – Pois é pena, porque ainda aí estão umas três dúzias de garrafas!

GAMBRINO – Três dúzias? Que me dizes? Vai buscar uma garrafa, José!

JOSÉ – Pois o patrão quer envenenar-se?

GAMBRINO – Quero despedir-me da minha pobre cerveja. Demais, até hoje os sulfitos nunca me fizeram mal, e não há de ser agora que...Anda, José! Vai buscar uma garrafa! É a última!

JOSÉ  (à parte) – A última! Pois sim! Quem não te conhecer...
 

HIGIENE

(Na sala de jantar de Sousa, no momento em que este vai sentar-se à mesa com sua esposa, D. Candinha. O Madureira aparece à porta do jardim. É um sujeito escanifrado e lívido. Dir-se-ia um defunto ambulante.

SOUSA – Ó Madureira, bons ventos te tragam! Há quanto tempo não nos aparecias! Olha, chegaste em boa ocasião: vamos agora mesmo para a mesa. Candinha, manda pôr mais um prato e um talher para o nosso Madureira! Ora, o Madureira! Senta-te, Madureira! Um guardanapo, Candinha! (sentam-se todos à mesa)

MARUREIRA – Confesso que vim papar-te o jantar. No Rio de Janeiro não há o que se coma senão em casa dos amigos. Não tenho confiança nos hotéis. Estou com uma fome de três dias! (Recusando um prato de sopa que Candinha lhe oferece) Sopa? Deus me livre! Pois vocês ainda são do tempo em que tomava sopa?

SOUSA – Um jantar sem sopa não é jantar.

MADUREIRA – Nada! O Chpot Prevost disse-me que a sopa só serve para dilatar o estômago. Dispenso-a. (Sousa e Candinha tomam a sopa. O copeiro traz outro prato)

SOUSA – Olha, esta fritada de ostras está com uma cara.

MADUREIRA – Ostras? Mas vocês enlouqueceram! Não comam ostras!

SOUSA – Por quê?

MADUREIRA – Podem estar envenenadas!

SOUSA – Deixa-te disso, e come.

MADUREIRA – Nem coberta de ouro.

CANDINHA – A fritada está deliciosa.

MADUREIRA – Não duvido, mas não como ostras.

SOUSA – Então espera pelos bifes. Temos hoje bifes de panela.

MADUREIRA – Também não como carne de vaca. Foi uma recomendação especial do defunto Benício.

CANDINHA – Deste modo o senhor não janta!

MADUREIRA – Paciência! (O copeiro traz os bifes)

SOUSA – Ao menos come as batatas.

MADUREIRA – Um farináceo? Boas! Olhe o que diz dos farináceos o Rocha Faria!

CANDINHA – Até agora o senhor não tem comido nada, nem mesmo o pão.

MADUREIRA – O pão é coisa que dilata o estômago. O Crisciúma disse-me que não comesse pão senão bem tostado.

SOUSA – Nesse caso, atira-te a estas lingüiças!

MADUREIRA (Dando um pulo da cadeira) – Linguças! Livra! Pois vocês não viram que a Prefeitura consentiu que um fabricante de lingüiças abatesse o gado rejeitado pela diretoria de higiene? Pois vocês querem comer carne de animais tuberculosos? Com efeito! A isto é que se chama vontade de morrer!

SOUSA – Ao menos bebe. Prova deste vinho.

MADUREIRA – O Miguel Couto proibiu-me o uso do áscool.

CANDINHA – Prefere cerveja?

MADUREIRA – Cerveja? Depois do que tem havido?

SOUSA – Mas que diabo! O Laboratório...

MADUREIRA – Pelo sim, pelo não, é melhor não beber cerveja, mesmo porque essa é a opinião do Barbosa Romeu.

SOUSA – Pois, meu velho, nada mais tenho que te ofereça.

CANDINHA – Só temos carne assada.

MADUREIRA – Comam, não se importem comigo, já estou habituado a não comer. (Sousa e Candinha comem em silêncio as lingüiças e depois o assado)

SOUSA – Bem, agora à sobremesa. Temos aqui geléia inglesa.

MADUREIRA – Também não como disso. Sei lá como são feitos esses doces. Não meto no estômago nada dessas coisas que vêm do estrangeiro em latas.

CANDINHA – Aceita uma laranja?

MADUREIRA – Laranjas nesse tempo? Boas! Deviam ser proibidas!

SOUSA (Depois da sobremesa) – Ao menos tome uma xícara de café.

MADUREIRA – Foi moído em casa?

CANDINHA – Não.

MADUREIRA – Então não vai...não tenho confiança...andam agora a misturá-lo com milho...Depois, o Daniel Almeida é contra o café...(Cai desmaiado no chão)

CANDINHA – Meu Deus!

SOUSA – Deixá-lo! Ao menos morre em perfeita saúde.


LIQUIDAÇÃO

(Numa casa de negócio. Silva e Sousa, os sócios da firma, conversam, aproveitando a ausência de freguesia)

SILVA – Você leu os jornais? Houve ontem mais um incêndio!

SOUSA – É uma verdadeira epidemia!

SILVA – E não há meio de acabar com isso.

SOUSA – Se nós não fôssemos honrados...

SILVA – Que tem?

SOUSA – Deitaríamos fogo ao negócio. O seguro é de 50 contos e atualmente não temos em casa nem dez em fazenda...

SILVA – Sim, mas isso é se não fôssemos honrados. Felizmente o somos.

SOUSA – Ninguém diz o contrário, nem ninguém diria dpois que houvéssemos metido o dinheiro no bolso.

SILVA – O momento não podia ser mais favorável: a família que mora no sobrado está em Caxambu e o nosso primeiro caixeiro despediu-se há dois dias.

SOUSA – Pois sim, mas ainda temos o Agapito, que dorme na loja.

SILVA – Despedi-lo-íamos.

SOUSA – Seria um indício contra nós. A coisa era deitar fogo na casa e continuarmos a ser honrados...silêncio! Aí vem o Agapito.

AGAPITO (Vindo do fundo do armazém) – Eu queria pedir um grande obséquio aos senhores dois.

SILVA – Diga!

SOUSA – Fale!

AGAPITO – Queria que me dessem licença para recolher-me hoje depois da meia-noite. Minha irmã casa-se em Niterói e eu...

SILVA – Vá. Vá ao casamento de sua irmã, mas não fique lá toda a noite. Não nos convém a loja sozinha. Não temos grande confiança na guarda noturna.

AGAPITO – Esteja descansado. Muito agradecido. (Afasta-se)

SOUSA – Parece que tudo concorre para tentar-nos.

SILVA – Sabe que mais? Diabos levem os escrúpulos! Nós podemos levar toda a vida a trabalhar, que jamais ganharemos 50 contos!

SOUSA – Mas é tão perigoso...

SILVA – Qual perigoso qual nada! Deixe tudo por minha conta. Há de ser hoje mesmo. Vá você para a chácara.

SOUSA – Mas para deitar fogo a casa é preciso petróleo! Onde irá você buscá-lo sem despertar suspeitas?

SILVA – Há muito tempo estou prevenido. Aquela caixa fechada que tenho no escritório, e todos aqui supõem que que é uma caixa de vinho, está cheia de garrafas de 
querosene!
SOUSA – Mas se descobrem...

SILVA – Qual descobrem, qual nada! Hoje às onze horas da noite não existirão senão as quatro paredes, e nós continuaremos a ser honrados.


AS RETICÊNCIAS

(Na sala de jantar da família Melo. A senhorita Dadá lê, num jornal, os anúncios dos teatros; mamãe cose;papai não chegou ainda da repartição)

Dada – Mamãe?

MAMÃE – Que é, minha filha?

DADÁ – A senhora já viu o título da peça que se representa no Lucinda?

MAMÃE – Não, qual é?

DADÁ – “Sorte de...”

MAMÃE – Como?

DADÁ – “Sorte de...” reticências.

MAMÃE – Que título esquisito!

DADÁ – Estas reticências estão aqui em lugar de uma palavra. Que palavra será?

MAMÃE – Como queres tu que eu saiba, se não conheço a peça?

DADÁ – Aí está uma coisa que me aguça a curiosidade! Não dormirei hoje sem saber o que querem dizer estas malditas reticências!

MAMÃE – olha, aí vem papai. Pergunta-lho.

PAPAI (Entrando) – Ora muito boa tarde. (Beija a mulher e a filha).

MAMÃE – Oh Melo, a Dadá estava à tua espera para lhe explicares o que quer dizer “Sorte de...”

PAPAI – “Sorte de...”?!

MAMÃE – Sim, “Sorte de...” três pontinhos; é o título de uma peça que se representa no Lucinda.

PAPAI – Ah! Já sei...”Sorte de...” (À parte) Que entalação! (Alto) Isso quer dizer...isso não quer dizer nada...É para não gastar papel que puseram ali aqueles três pontinhos...”Sorte de...” sorte de nada...sorte de coisa nenhuma...sorte de cacaracá!...isto é, nenhuma sorte.percebes?

DADÁ – Não senhor.

MAMÃE – Nem eu.

PAPAI – Pois bem, minha filha, ali há realmente uma palavra oculta, mas uma palavra feia...uma palavra que tu não podes saber...foi por isso que a substituíram por tr~es pontinhos...

DADÁ – Mas papai...

PAPAI – Não insistas! (A Mamãe) Imagina que tal palavra quer dizer...(Diz uma palavra ao ouvido de Mamãe)

MAMÃE – Que horror!

PAPAI – Vejam a que estado chegou o teatro no Rio de Janeiro! Já nem mesmo os títulos das peças podem ser explicados às senhoritas, quanto mais as próprias peças!

MAMÃE – Não sei realmente onde vamos parar com tanta liberdade! (A Dada) Papai tem razão, Dadá...Tu só poderás saber o que encobrem aquelas reticências depois que tiveres marido...

DADÁ – Pois sim! Quem me há de dizer é o primo Zeca...


ECONOMIA DE GENRO

(Em casa do Silva. Na sala de jantar, o Silva tem acabado de tomar café, e está sentado numa cadeira de balanço a fumar seu cigarro e ler seu jornal. Entra D. Ana, sua mulher)

ANA – Com efeito! Você é de muita força!

SILVA – Por quê?

ANA – Não me pergunta por mamãe! Viu que ela ontem se recolhei tão doente, e nem ao menos indaga como passou a noite!

SILVA – Desculpa...eu estava a ler uma coisa muito interessante...e justamente a lembrar-me dela.

ANA – Pois devia interessar-se; é minha mãe!

SILVA – É tua mãe, mas é minha sogra; se fosse minha mãe eu me interessava um pouco mais; se fosse tua sogra quem não se interessava eras tu,

ANA – Não sei que mal fez a pobre velha para você a tratar assim!

SILVA – Assim?! Assim como? Como é que eu a trato?

ANA – Não pergunta por ela quando está doente.

SILVA – Não perguntei, mas ia perguntar.

ANA – Quel perguntar! Qual nada!

SILVA – Francamente: uma vez que me obrigas a falar, dir-te-ei, minha filha, que tua mãe não tem nenhuma razão de queixa contra mim. Não tenho obrigação nenhuma de aturá-la e, no entanto, suporto resignado todas as suas impertinências, porque, não há dúvida, ela é uma sogra clássica! Outro qualquer, sofrendo o que tenho sofrido, há muito tempo se teria livrado dela! Eu, pelo contrário, mostro-me cada vez mais solícito. Sou eu quem lhe dou casa, sou eu quem lhe dou de comer e beber, sou eu que a visto, sou eu...

ANA – Grande coisa! Não é a pobre velha que aumenta as despesas! A casa é grande e mais um talher à mesa não custa nada.

SILVA – E a roupa?

ANA – Você só lhe dá roupa quando a pode comprar baratinho nalguma liquidação.

SILVA – Censuras-me ser econômico.

ANA – Não!

SILVA – Pois se posso comprar aqui por três, porque ei de comprar ali por quatro? Ainda agora, lendo o jornal, estava pensando numa dessas economias. Tua mãe está doente, não está?

ANA – Está muito doente; está mais doente do que você imagina!

SILVA – Tanto melhor!

ANA – Como tanto melhor?

SILVA – Tanto melhor para a economia que me lembrou fazer. Há na Alfândega um objeto abandonado que naturalmente vai ser vendido por uma bagatela, e com certeza ninguém quer senão eu, se não houver por aí outro genro que me passe a perna.

ANA – Que objeto é esse?

SILVA – Um caixão de defunto. Agora dize que não me lembro de minha sogra...


QUEM PERGUNTA QUER SABER

(No terraço. O Machado e sua esposa, repimpados em cadeiras de balanço, fazem o chilo de saboroso jantar)

ELA – Ô Machado?

ELE – Vai dizendo.

ELA – Que coisa é esta de centenário da abertura dos portos?

ELE – Quer dizer que há cem anos os portos foram abertos.

ELA – Mas que portos?

ELE – Os portos do Brasil.

ELA – Então os portos do Brasil foram abertos?

ELE – Foram.

ELA – Dantes eram fechados?

ELE – Certamente que sim; se não fossem fechados, não poderiam ser abertos.

ELA – O nosso porto, o porto do Rio de Janeiro, por exemplo, era fechado?

ELE – O nosso e os outros – o porte de Santos, o porto da Bahia, o porto do Pará...

ELA – O porto Alegre, o porto das Caixas, o porto novo do Cunha...

ELE – Cala-te! Não digas asneiras! Falo dos grandes portos!

ELA – Mas vem cá, Machado...por que é que eles estavam fechados?

ELE – Estavam fechados porque não estavam abertos.

ELA – E não estavam abertos porque estavam fechados. Fiquei na mesma. O que eu quero saber é como eles estavam fechados! Sei como se fecha uma porta, mas não sei como se fecha um porto!

ELE – É estilo figurado, minha tola! Não se diz que uma questão é aberta? Não se diz que a discussão está fechada? Não quer dizer que haja uma chave para abrir a questão ou a discussão...assim um porto pode estar fechado. Percebeste?

ELA – Não.

ELE – Ora aí tens! Cara fechada! Estilo figurado! Estou de cara fechada, mas não preciso de uma chave para abri-la! Que quer dizer xará fechada? Cara de alguém que se zanga! Há diversos modos de estar fechado! Uma discussão, uma cara ou um porto não podem estar fechados pelo mesmo processo ou pelo mesmo sistema que um quarto ou uma gaveta! Está visto que não se põe uma tranca nem um cadeado num porto!

ELA – Bom, não insisto. (À parte). Ele sabe tanto quanto ei o que é porto fechado.

DOUTOR (Entrando) – Ora, muito boa tarde! Cheguei a tempo para o café?

ELA – Chegou à deixa! Ele aí vem. (Entra um criado com a bandeja do café e serve)

DOUTOR – Vim hoje um pouco mais tarde, porque fui ver um doente, e não me demoro porque o tempo está se fechando!

ELE – Ouves? “O tempo este se fechando”! Quedê a chave do tempo?

ELA – Basta!

DOUTOR – O que é isso? Vocês estão a disputar?

ELE – Não faça caso, meu sogro, ela...

ELA – O caso é este, papai: como é hoje o centenário da abertura dos portos, eu perguntei-lhe o que são portos abertos; ele não soube me explicar, começou a falar à toa, eu impacientei-me...

DOUTOR – A explicação é fácil: portos abertos são aqueles em que é permitida a entrada de embarcações estrangeiras e portos fechados são aqueles onde as embarcações não podem entrar.

ELA – Ah! Isso sim! Agora sei o que é um porto aberto! Obrigada, papai...

ELE – Uff!
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