Teatro
a Vapor
Artur
Azevedo
A
VERDADE
(Gabinete
de trabalho. O Juquinha chegou do colégio, entra para tomar a benção ao pai, o
Dr. Furtado, que está sentado numa poltrona, a ler jornais)
JUQUINHA – Benção, papai?
DR. FURTADO – Ora viva! (depois de lhe dar a benção)
Venha cá, sente-se ao pé de mim. (Juquinha senta-se) Saiba que estou muito
zangado com o senhor.
JUQUINHA – Comigo?
DR. FURTADO – O diretor do colégio deu-me uma bonita
informação a seu respeito!
JUQUINHA – Esta semana só tive notas boas.
DR. FURTADO – Não é de seues estudos que se trata,
mas do seu comportamento.
JUQUINHA – Eu não fiz nada.
DR. FURTADO – O diretor disse-me que o senhor não
abre a boca que não pregue uma mentira! Isso é muito feio, senhor Juquinha!
JUQUINHA – Mas papai, eu...
DR, FURTADO – O homem que mente é o animal mais
desprezível da criação! Retire-se! (Juquinha vai saindo penalizado. O pai adoça
a voz) Olha, vem cá. (Juquinha volta) Tu sabes quem foi Epaminondas?
JUQUINHA – Lá no colégio tem um menino com esse
nome.
DR. FURTADO – Não é esse. Ainda não sabes, mas hás
de lá chegar, quando estudares a história da Grécia. O Epaminondas, de quem te
falo, era um general tebano, vencedor dos lacedemônios, que ficou célebre não
só pelos grandes feitos que cometeu, como também porque não mentia nem
brincando.
JUQUINHA – Então nem brincando a gente deve mentir?
DR. FURTADO – Nem brincando! A mentira é degradante.
Degradante e inútil: o mentiroso é sempre apanhado. A sabedoria das nações lá
diz que mais depressa é pegado um mentiroso a correr que um coxo a andar. O
homem honrado – presta-me toda a atenção! – o homem honrado não mente em
nenhuma circunstância da vida, ainda a mais insignificante! (Batem palmas no
corredor) Quem será? Algum importuno!
JUQUINHA – Papai, quer que eu vá ver quem é?
DR. FURTADO – Vai, e se for alguém que me procure,
diz-lhe que não estou em casa.
A
CASA DA SUSANA
(Amélia
está em seu boudoir. Acaba de despir-se ajudada pela mucama. Voltou do teatro
com o marido, o comendador, que depois do chá se recolheu a dormir como um bem-aventurado.
É uma hora da noite)
MUCAMA – Nhanhã gostou do drama?
AMÉLIA – Não era um drama, era um vaudeville.
MUCAMA – Engraçado?
AMÉLIA – Não; não tem graça nenhuma, porque é muito
imoral. Eu queria vir para casa no fim do primeiro ato, mas o comendador
entendeu que devíamos ficar até o fim! Se aquilo é espetáculo a que um marido
leve a sua esposa...
MUCAMA – Ih!...Nhanhã como está indignada!
AMÉLIA – Pudera! Uma senhora honesta não deve
sancionar com sua presença a exibição de semelhantes peças: dá má idéia de si.
MUCAMA – Como se chama o vaudeville, Nhanhã?
AMÉLIA – A
casa de Susana. É esse o título!
MUCAMA – Susana! É aquela francesa velha que de vez
em quando faz benefício?
AMÉLIA – Não é outra de igual nome, mas muito pior.
Não podes imaginar o que aquilo é! Eu estava a ver o momento em que mesmo em
cena...Que Horror! Nunca senti tanto fogo nas faces!
MUCAMA – Por que Nhanhã não se retirou do teatro?
AMÉLIA – Já te disse que me quis retirar, mas o
comendador, que dá o cavaquinho pela pornografia, dizia-me: - Espere, senhora;
deixe-me ver até onde vai esta pouca vergonha!
MUCAMA – pronto! – Nhanhã não precisa de mais nada?
AMÉLIA – Não; podes te ir deitar, mas, antes disso,
vê se o comendador já está dormindo. (Mucama sai e volta) Então?
MUCAMA – Está ferrado no sono, roncando que é um
louvor a Deus!
AMÉLIA – Bem. Podes ir. Boa noite.
MUCAMA – Boa noite, Nhanhã. (Mucama sai. Amélia
diminui a força ao gás, e fica envolta numa doce meia-luz, em cuja sombra se
destacam suavemente as rendas brancas da sua camisola. Depois, ela vai abrir,
sem rumor, uma janela que dá para o jardim. Ouve-se um assobio)
AMÉLIA (A meia-voz, para o jardim) – Podes
vir...(Pausa. Hemrique aparece no jardim, apóis as mãos no peitoril da janela,
dá um salto e entra no boudoir. Amélia fecha a janela)
AMÉLIA – Meu Henrique!
HENRIQUE – Minha Amélia! (Atiram-se nos braços um do
outro e beijam-se longamente) Ele dorme?
AMÉLIA – Profundamente! Queres saber o que me fez
hoje aquele bruto?
HENRIQUE – Dize.
AMÉLIA – Levou-me à Casa da Susana.
HENRIQUE (Com um sobressalto) – Que Susana?
AMÉLIA – É uma peça de teatro.
HENRIQUE (Compreendendo) – Ah!
AMÉLIA – Uma peça do tal gênero livre.
HENRIQUE – Que tem isso?
AMÉLIA – Uma imoralidade que não deve ser vista nem
ouvida por uma senhora honesta.
HENRIQUE – Olha, sabes que mais, meu amor?
Deixemo-nos de hipocrisias! O teatro é ficção, é fantasia, é mentira; e esta
realidade...sim, o que nós estamos fazendo, o que nós vamos fazer, é muito mais
imoral.
AMÉLIA – Pois sim, mas ninguém vê...ninguém
sabe...Meu Henrique!
HENRIQUE – Minha Amélia! (Atiram-se de novo aos
beijos etc.)
UM
CANCRO
(No
quarto de Magalhães, que se veste, ajudado pela senhora)
MAGALHÃES – Até que afinal temos um chefe de
polícia!
SENHORA – por quê?
MAGALHÃES – Porque está disposto a acabar com o tal
jogo dos bichos!
SENHORA – Pois olha, Magalhães, é pena!
MAGALHÃES – Não digas isso, mulher! Pois não vê que
o jogo dos bichos é um cancro da sociedade?
SENHORA – Sim, não duvido, tem-no dito muitas vezes;
mas como tenho sido feliz...
MAGALHÃES – Tu?! Pois tu jogas nos bichos?!
SENHORA – Sim, confesso-te, mesmo porque não quero
por mais tempo guardar esse segredo...Sim, eu sei que tu é contra o jogo, mas
já duas vezes acertei na centena...Nos grupos tenho sido de uma felicidade inaudita...ainda
ontem ganhei 120 mil réis!
MAGALHÃES – Que me estás dizendo, mulher?!
SENHORA – Nada te dizia para te não contrariar; mas
com que dinheiro reformei a mobília da sala de jantar? Com que dinheiro comprei
na Casa Colombo aquele terno que te ofereci no dia dos teus anos e de qye tu
tanto gostas? Tudo dinheiro dos bichos!
MAGALHÃES – Supus que fossem as balas.
SENHORA – Qual! As balas não dão assim tanto lucro.
Olha: tu estás sofrendo do fígado e o médico recomendou-te uma estação em
Cambuquira...
MAGALHÃES – Estação que não posso fazer...
SENHORA – Podes, sim. Em março iremos a Cambuquira.
Já tenho para isso 800 mil réis guardados, e se consentes que eu continue a
jogar, afianço-te que reunirei dois contos de réis, porque sou muito feliz.
Agora, se não consentes, é outra coisa...Sou uma esposa obediente...Só faço o
que meu marido quiser que eu faça...
MAGALHÃES – Mulher, que te hei de dizer? Joga...vai
jogando...
SENHORA – Mas não dizes que o jogo é um cancro da
sociedade?
MAGALHÃES – É um cancro para quem perde.
SENHORA – Hoje tenho um palpite enorme no gato.
MAGALHÃES – Pois joga no gato!
SENHORA – O diabo é o chefe de polícia...
MAGALHÃES – Deixa lá, que o chefe de polícia não
fará maiores milagres que os outros! Era só o que faltava, que por causa do
chefe de polícia eu não fosse em março a Cambuquira tratar do meu fígado!
SENHORITA
DONDOCA – Ó Joaninha!; estava morta por encontrar
você!
JOANINHA – Por que Dondoca?
DONDOCA – Porque, como você é muito instruída, eu
queria saber a sua opinião sobre o grande assunto que atualmente se debate na
imprensa!
JOANINHA – Qual?
DONDOCA – O tratamento que nós devemos ter.
JOANINHA – Nós quem?
DONDOCA – Nós, moças solteiras. Devemos ser meninas,
mademoiselles, doninhas, senhorazinhas, senhorinhas ou senhoritas? Qual é a sua
opinião?
JOANINHA – Eu lhe digo. Não gosto de menina. Houve
lá em casa uma criada portuguesa que só me chamava a menina Joana, e esse
tratamento me soava muito mal ao ouvido.
DONDOCA – Naturalmente! Ora, a menina Joana...Até
parece que é outra pessoa, que não é você!
JOANINHA – Todas as vezes que algum dos nossos
elegantes me dirige um “mademoiselle”, acho-o supinamente ridículo.
DONDOCA – Você está comigo!
JOANINHA – E num dia em que certo jornal me chamou
“demoiselle”, fiquei deveras ofendida.
DONDOCA – Naturalmente.
JOANINHA – Quando me dizem “dona”, sinto-me
envelhecer.
DONDOCA – Realmente, o “dona” só nos assenta depois
que nos casamos, e por isso mesmo, deixe lá, Joaninha (com um suspiro), é o
tratamento que, no fundo, mais nos agrada!
JOANINHA – Antes de casadas, poderíamos ser
“doninhas”, diminutivo de “donas”, mas se fôssemos “doninhas”, os rapazes
quereriam ser sapos.
DONDOCA – Para nos fascinarem...
JOANINHA – Assim pois, como “senhorinha” e
“senhorazinha” são desgraciosos, o melhor é “senhorita”. É delicado e sonoro.
DONDOCA – Mas dizem que não é português...
JOANINHA – Se não é, fica sendo. E não é português
por quê? Se “senhorita” não é português, também não o são “mosquito”, “palito”
e outros diminutivos em Ito, como, por exemplo...
DONDOCA – Periquito.
JOANINHA – Não, Dondica, “periquito” não é
dominutivo.
DONDOCA – Perdão, Joaninha; você está enganada;
“periquito” é diminutivo de “papagaio”.
QUERO
SER FREIRA!
(o
Sr. Nogueira tem entrado da rua e conversa com D. Águeda, sua mulher)
ÁGUEDA – Sabes de uma grande novidade, Nogueira?
Nossa filha quer entrar para o convento de Santa Teresa!
NOGUEIRA – Dize-lhe que faz mal; que entre antes
para o da Ajuda.
ÁGUEDA – Por quê?
NOGUEIRA – Porque está na avenida Central. Deve ser
mais divertido. Pode ver o presidente quando for ao palávio Monroe.
ÁGUEDA – Não gracejes. Diz ela que está resolvida a
tomar o véu. Já lhe pedi que se esquecesse disso, mas não há jeito de lhe tirar
semelhante idéia da cabeça!
NOGUEIRA – Para o que lhe havia de dar!
ÁGUEDA – Depois que leu nos jornais a notícia da
tomada de véu da filha do Dr. Lourenço da Cunha, anda toda mística, tem
êxtases, e creio que lhe aparece Jesus cristo quando está sozinha.
NOGUEIRA – Olha, não vá ver algum malandro!
ÁGUEDA – Por esse lado, descansa.
NOGUEIRA – Dize-lhe que para o convento só entram as
mulheres que nada mais esperam do mundo. Tu, por exemplo, que de vez em quando
embirras comigo e dizes: “Maldita a hora em que me casei!” – tu farias bem se
para lá fosses e me deixasse em paz. Eu pagaria com muito prazer o dote e o
lunch aos convidados e representantes da imprensa.
ÁGUEDA – Oh, Nogueira! Pois tens ânimo de me dizer
isso a mim, tua esposa?
NOGUEIRA – Subirias muitos furos: serias esposa de
cristo.
ÁGUEDA – Prefiro ser mulher do Nogueira. Mas não se
trata de mim, trata-se de nossa filha. Ela teve um grande desgosto quando te
opuseste ao seu casamento com o Vieirinha.
NOGUEIRA – Então como não tomou estado, toma o véu!
Ela que tome juízo!
ÁGUEDA – Fala-lhe.
NOGUEIRA – Fala-lhe tu, que és mãe.
ÁGUEDA – Fala-lhe tu, que é pai. Olha, ela aí vem.
(Entra Luísa, de penteador branco, soltos os cabelos, os olhos baixos).
NOGUEIRA – Então, menina, o que é isso? Preferes “soror” a “senhorita?”
Tua mãe disse-me que queres ir para o convento. (Pausa) É exato? (Luísa não
responde e ergue os olhos ao céu) Então? Responde!
LUÍSA (com voz arrastada à Sarah Bernhardt) – Quero
ser freira!
NOGUEIRA – A tua vontade será feita, mas não
imaginas como isso me contraria, e então agora que, melhor informado sobre as
qualidades do Vieirinha...
LUÍSA (Vivamente) – Hein?
NOGUEIRA – Disse-lhe hoje que ele seria teu
marido...
LUÍSA – papai consente?
NOGUEIRA – Consentiria, se não quisesse ser freira.
LUÍSA – Que freira que nada! Eu só seria freira se
não me casasse com ele!
NOGUEIRA – Pois bem! Serás esposa do Vieirinha!
ÁGUEDA – E antes do Vieirinha que de cristo!
NOGUEIRA – Apoiado! – mesmo porque o Cristo, tendo
que aturar tantas esposas, um dia acaba por perder a paciência!
A
ESCOLHA DE UM ESPETÁCULO
(diálogo
entre marido e mulher)
MULHER – Fazes-me um favor?
MARIDO – Dize.
MULHER – Leva-nos hoje ao teatro.
MARIDO – Que idéia a tua! Há muito tempo que não
vamos a espetáculos! A última peça que vimos foi O Conde de Monte Cristo. Já lá vão dois anos.
MULHER – Não é por mim; é pelas meninas;
prometi-lhes que se elas me dessem aquele vestido pronto sexta-feira, eu te
pediria que nos levasse domingo ao teatro. Domingo é hoje.
MARIDO – Enfim...Mas a que teatro querem vocês ir?
MULHER – A qualquer. Escolhe tu.
MARIDO Cá está o jornal. Vejamos. (Lendo os anúncios
do teatro na quarta página) Procuremos em primeiro lugar o S. Pedro, que é o
teatro mais próprio para a família...Bonito! não há espetáculo no nS.
Pedro...Vejamos o Lírico...Também não há espetáculo no Lírico.
MULHER – Vê o Apolo.
MARIDO – Também não há espetáculo no Apolo.
MULHER – Vê o S. José.
MARIDO – Também não há espetáculo no S. José.
MULHER – Vê o Lucinda.
MARIDO – Só há matinê.
MULHER – Não gosto de matinês.
MARIDO – Representa-se O Macaco.
MULHER – Também não gosto de macacos.
MARIDO – Só nos resta o Recreio – sim, porque
naturalmente não irei levá-la ao Palace-Theatre, nem ao Moulin-Rouge, nem à
Maison Moderne...
MULHER – Que há no Recreio?
MARIDO – Dois espetáculos em matinê e à noite.
MULHER – Já disse que não gosto de matinê.
MARIDO – Nem eu as levaria a uma peça que se
intitula O Homem das Tetas.
MULHER – E qual é a peça da noite?
MARIDO – Adivinha.
MULHER – Dize.
MARIDO – O Conde
de Monte Cristo!
MULHER – Ora sebo! A mesma que vimos há dois anos!
MARIDO – É o único espetáculo. O melhor é adiarmos a
festança...A que estado chegou o teatro no Rio de Janeiro!
MULHER – Pudera! Se há tanta gente que faz como nós!
SULFITOS
(Em
casa do Dr. Gambrino, que está sentado numa cadeira, melancólico e triste.
José, o seu criado, vem ter com ele)
JOSÉ – Que é isso, patrão? Que tem? Por que está
triste?
GAMBRINO – Pois não sabes da grande desgraça?
JOSÉ – Que desgraça?
GAMBRINO – No Laboratório Municipal de Análises
descobriram que a minha querida cerveja é um veneno!
JOSÉ – Deveras?
GAMBRINO – Cada litro tem 100 miligramas de ácido
sulfuroso anidro. José, tu sabes o que é ácido sulfuroso anidro?
JOSÉ – Não, senhor.
GAMBRINO – Nem eu, mas deve ser um veneno terrível!
JOSÉ – Não haverá engano?
GAMBRINO – Não há engano possível. A reação de
Boedeker...José, tu sabes o que é a reação de Boedeker?
JOSÉ – Não, senhor.
GAMBRINO – Nem eu, mas diz que é a reação
característica dos sulfitos.
JOSÉ – Ah! Bom! Agora já sei; não há nada como
explicar as coisas.
GAMBRINO – Pois bem: a reação de Boedeker não admite
dúvidas. Já não se trata da reação do hidrogênio nascente. É a reação
definitiva. A minha pobre cerveja está completamente desmoralizada.
JOSÉ – E nesse caso a venda vai ser proibida?
GAMBRINO – Naturalmente! Pois hão de consentir que
vendam uma cerveja que tem sulfitos? Eu já não a quero nem de graça!
JOSÉ – Pois é pena, porque ainda aí estão umas três
dúzias de garrafas!
GAMBRINO – Três dúzias? Que me dizes? Vai buscar uma
garrafa, José!
JOSÉ – Pois o patrão quer envenenar-se?
GAMBRINO – Quero despedir-me da minha pobre cerveja.
Demais, até hoje os sulfitos nunca me fizeram mal, e não há de ser agora
que...Anda, José! Vai buscar uma garrafa! É a última!
JOSÉ (à
parte) – A última! Pois sim! Quem não te conhecer...
HIGIENE
(Na
sala de jantar de Sousa, no momento em que este vai sentar-se à mesa com sua
esposa, D. Candinha. O Madureira aparece à porta do jardim. É um sujeito
escanifrado e lívido. Dir-se-ia um defunto ambulante.
SOUSA – Ó Madureira, bons ventos te tragam! Há
quanto tempo não nos aparecias! Olha, chegaste em boa ocasião: vamos agora
mesmo para a mesa. Candinha, manda pôr mais um prato e um talher para o nosso
Madureira! Ora, o Madureira! Senta-te, Madureira! Um guardanapo, Candinha!
(sentam-se todos à mesa)
MARUREIRA – Confesso que vim papar-te o jantar. No
Rio de Janeiro não há o que se coma senão em casa dos amigos. Não tenho
confiança nos hotéis. Estou com uma fome de três dias! (Recusando um prato de
sopa que Candinha lhe oferece) Sopa? Deus me livre! Pois vocês ainda são do
tempo em que tomava sopa?
SOUSA – Um jantar sem sopa não é jantar.
MADUREIRA – Nada! O Chpot Prevost disse-me que a
sopa só serve para dilatar o estômago. Dispenso-a. (Sousa e Candinha tomam a
sopa. O copeiro traz outro prato)
SOUSA – Olha, esta fritada de ostras está com uma
cara.
MADUREIRA – Ostras? Mas vocês enlouqueceram! Não
comam ostras!
SOUSA – Por quê?
MADUREIRA – Podem estar envenenadas!
SOUSA – Deixa-te disso, e come.
MADUREIRA – Nem coberta de ouro.
CANDINHA – A fritada está deliciosa.
MADUREIRA – Não duvido, mas não como ostras.
SOUSA – Então espera pelos bifes. Temos hoje bifes
de panela.
MADUREIRA – Também não como carne de vaca. Foi uma
recomendação especial do defunto Benício.
CANDINHA – Deste modo o senhor não janta!
MADUREIRA – Paciência! (O copeiro traz os bifes)
SOUSA – Ao menos come as batatas.
MADUREIRA – Um farináceo? Boas! Olhe o que diz dos
farináceos o Rocha Faria!
CANDINHA – Até agora o senhor não tem comido nada,
nem mesmo o pão.
MADUREIRA – O pão é coisa que dilata o estômago. O
Crisciúma disse-me que não comesse pão senão bem tostado.
SOUSA – Nesse caso, atira-te a estas lingüiças!
MADUREIRA (Dando um pulo da cadeira) – Linguças!
Livra! Pois vocês não viram que a Prefeitura consentiu que um fabricante de
lingüiças abatesse o gado rejeitado pela diretoria de higiene? Pois vocês
querem comer carne de animais tuberculosos? Com efeito! A isto é que se chama
vontade de morrer!
SOUSA – Ao menos bebe. Prova deste vinho.
MADUREIRA – O Miguel Couto proibiu-me o uso do
áscool.
CANDINHA – Prefere cerveja?
MADUREIRA – Cerveja? Depois do que tem havido?
SOUSA – Mas que diabo! O Laboratório...
MADUREIRA – Pelo sim, pelo não, é melhor não beber
cerveja, mesmo porque essa é a opinião do Barbosa Romeu.
SOUSA – Pois, meu velho, nada mais tenho que te
ofereça.
CANDINHA – Só temos carne assada.
MADUREIRA – Comam, não se importem comigo, já estou
habituado a não comer. (Sousa e Candinha comem em silêncio as lingüiças e
depois o assado)
SOUSA – Bem, agora à sobremesa. Temos aqui geléia
inglesa.
MADUREIRA – Também não como disso. Sei lá como são
feitos esses doces. Não meto no estômago nada dessas coisas que vêm do
estrangeiro em latas.
CANDINHA – Aceita uma laranja?
MADUREIRA – Laranjas nesse tempo? Boas! Deviam ser
proibidas!
SOUSA (Depois da sobremesa) – Ao menos tome uma
xícara de café.
MADUREIRA – Foi moído em casa?
CANDINHA – Não.
MADUREIRA – Então não vai...não tenho
confiança...andam agora a misturá-lo com milho...Depois, o Daniel Almeida é
contra o café...(Cai desmaiado no chão)
CANDINHA – Meu Deus!
SOUSA – Deixá-lo! Ao menos morre em perfeita saúde.
LIQUIDAÇÃO
(Numa
casa de negócio. Silva e Sousa, os sócios da firma, conversam, aproveitando a
ausência de freguesia)
SILVA – Você leu os jornais? Houve ontem mais um
incêndio!
SOUSA – É uma verdadeira epidemia!
SILVA – E não há meio de acabar com isso.
SOUSA – Se nós não fôssemos honrados...
SILVA – Que tem?
SOUSA – Deitaríamos fogo ao negócio. O seguro é de
50 contos e atualmente não temos em casa nem dez em fazenda...
SILVA – Sim, mas isso é se não fôssemos honrados.
Felizmente o somos.
SOUSA – Ninguém diz o contrário, nem ninguém diria
dpois que houvéssemos metido o dinheiro no bolso.
SILVA – O momento não podia ser mais favorável: a família
que mora no sobrado está em Caxambu e o nosso primeiro caixeiro despediu-se há
dois dias.
SOUSA – Pois sim, mas ainda temos o Agapito, que
dorme na loja.
SILVA – Despedi-lo-íamos.
SOUSA – Seria um indício contra nós. A coisa era
deitar fogo na casa e continuarmos a ser honrados...silêncio! Aí vem o Agapito.
AGAPITO (Vindo do fundo do armazém) – Eu queria
pedir um grande obséquio aos senhores dois.
SILVA – Diga!
SOUSA – Fale!
AGAPITO – Queria que me dessem licença para
recolher-me hoje depois da meia-noite. Minha irmã casa-se em Niterói e eu...
SILVA – Vá. Vá ao casamento de sua irmã, mas não
fique lá toda a noite. Não nos convém a loja sozinha. Não temos grande
confiança na guarda noturna.
AGAPITO – Esteja descansado. Muito agradecido.
(Afasta-se)
SOUSA – Parece que tudo concorre para tentar-nos.
SILVA – Sabe que mais? Diabos levem os escrúpulos!
Nós podemos levar toda a vida a trabalhar, que jamais ganharemos 50 contos!
SOUSA – Mas é tão perigoso...
SILVA – Qual perigoso qual nada! Deixe tudo por minha
conta. Há de ser hoje mesmo. Vá você para a chácara.
SOUSA – Mas para deitar fogo a casa é preciso
petróleo! Onde irá você buscá-lo sem despertar suspeitas?
SILVA – Há muito tempo estou prevenido. Aquela caixa
fechada que tenho no escritório, e todos aqui supõem que que é uma caixa de
vinho, está cheia de garrafas de
querosene!
SOUSA – Mas se descobrem...
SILVA – Qual descobrem, qual nada! Hoje às onze
horas da noite não existirão senão as quatro paredes, e nós continuaremos a ser
honrados.
AS
RETICÊNCIAS
(Na
sala de jantar da família Melo. A senhorita Dadá lê, num jornal, os anúncios
dos teatros; mamãe cose;papai não chegou ainda da repartição)
Dada – Mamãe?
MAMÃE – Que é, minha filha?
DADÁ – A senhora já viu o título da peça que se
representa no Lucinda?
MAMÃE – Não, qual é?
DADÁ – “Sorte de...”
MAMÃE – Como?
DADÁ – “Sorte de...” reticências.
MAMÃE – Que título esquisito!
DADÁ – Estas reticências estão aqui em lugar de uma
palavra. Que palavra será?
MAMÃE – Como queres tu que eu saiba, se não conheço
a peça?
DADÁ – Aí está uma coisa que me aguça a curiosidade!
Não dormirei hoje sem saber o que querem dizer estas malditas reticências!
MAMÃE – olha, aí vem papai. Pergunta-lho.
PAPAI (Entrando) – Ora muito boa tarde. (Beija a
mulher e a filha).
MAMÃE – Oh Melo, a Dadá estava à tua espera para lhe
explicares o que quer dizer “Sorte de...”
PAPAI – “Sorte de...”?!
MAMÃE – Sim, “Sorte de...” três pontinhos; é o
título de uma peça que se representa no Lucinda.
PAPAI – Ah! Já sei...”Sorte de...” (À parte) Que
entalação! (Alto) Isso quer dizer...isso não quer dizer nada...É para não
gastar papel que puseram ali aqueles três pontinhos...”Sorte de...” sorte de
nada...sorte de coisa nenhuma...sorte de cacaracá!...isto é, nenhuma
sorte.percebes?
DADÁ – Não senhor.
MAMÃE – Nem eu.
PAPAI – Pois bem, minha filha, ali há realmente uma
palavra oculta, mas uma palavra feia...uma palavra que tu não podes saber...foi
por isso que a substituíram por tr~es pontinhos...
DADÁ – Mas papai...
PAPAI – Não insistas! (A Mamãe) Imagina que tal
palavra quer dizer...(Diz uma palavra ao ouvido de Mamãe)
MAMÃE – Que horror!
PAPAI – Vejam a que estado chegou o teatro no Rio de
Janeiro! Já nem mesmo os títulos das peças podem ser explicados às senhoritas,
quanto mais as próprias peças!
MAMÃE – Não sei realmente onde vamos parar com tanta
liberdade! (A Dada) Papai tem razão, Dadá...Tu só poderás saber o que encobrem
aquelas reticências depois que tiveres marido...
DADÁ – Pois sim! Quem me há de dizer é o primo
Zeca...
ECONOMIA
DE GENRO
(Em
casa do Silva. Na sala de jantar, o Silva tem acabado de tomar café, e está
sentado numa cadeira de balanço a fumar seu cigarro e ler seu jornal. Entra D.
Ana, sua mulher)
ANA – Com efeito! Você é de muita força!
SILVA – Por quê?
ANA – Não me pergunta por mamãe! Viu que ela ontem
se recolhei tão doente, e nem ao menos indaga como passou a noite!
SILVA – Desculpa...eu estava a ler uma coisa muito
interessante...e justamente a lembrar-me dela.
ANA – Pois devia interessar-se; é minha mãe!
SILVA – É tua mãe, mas é minha sogra; se fosse minha
mãe eu me interessava um pouco mais; se fosse tua sogra quem não se interessava
eras tu,
ANA – Não sei que mal fez a pobre velha para você a
tratar assim!
SILVA – Assim?! Assim como? Como é que eu a trato?
ANA – Não pergunta por ela quando está doente.
SILVA – Não perguntei, mas ia perguntar.
ANA – Quel perguntar! Qual nada!
SILVA – Francamente: uma vez que me obrigas a falar,
dir-te-ei, minha filha, que tua mãe não tem nenhuma razão de queixa contra mim.
Não tenho obrigação nenhuma de aturá-la e, no entanto, suporto resignado todas
as suas impertinências, porque, não há dúvida, ela é uma sogra clássica! Outro
qualquer, sofrendo o que tenho sofrido, há muito tempo se teria livrado dela!
Eu, pelo contrário, mostro-me cada vez mais solícito. Sou eu quem lhe dou casa,
sou eu quem lhe dou de comer e beber, sou eu que a visto, sou eu...
ANA – Grande coisa! Não é a pobre velha que aumenta
as despesas! A casa é grande e mais um talher à mesa não custa nada.
SILVA – E a roupa?
ANA – Você só lhe dá roupa quando a pode comprar
baratinho nalguma liquidação.
SILVA – Censuras-me ser econômico.
ANA – Não!
SILVA – Pois se posso comprar aqui por três, porque
ei de comprar ali por quatro? Ainda agora, lendo o jornal, estava pensando numa
dessas economias. Tua mãe está doente, não está?
ANA – Está muito doente; está mais doente do que
você imagina!
SILVA – Tanto melhor!
ANA – Como tanto melhor?
SILVA – Tanto melhor para a economia que me lembrou
fazer. Há na Alfândega um objeto abandonado que naturalmente vai ser vendido
por uma bagatela, e com certeza ninguém quer senão eu, se não houver por aí
outro genro que me passe a perna.
ANA – Que objeto é esse?
SILVA – Um caixão de defunto. Agora dize que não me
lembro de minha sogra...
QUEM
PERGUNTA QUER SABER
(No
terraço. O Machado e sua esposa, repimpados em cadeiras de balanço, fazem o
chilo de saboroso jantar)
ELA – Ô Machado?
ELE – Vai dizendo.
ELA – Que coisa é esta de centenário da abertura dos
portos?
ELE – Quer dizer que há cem anos os portos foram
abertos.
ELA – Mas que portos?
ELE – Os portos do Brasil.
ELA – Então os portos do Brasil foram abertos?
ELE – Foram.
ELA – Dantes eram fechados?
ELE – Certamente que sim; se não fossem fechados,
não poderiam ser abertos.
ELA – O nosso porto, o porto do Rio de Janeiro, por
exemplo, era fechado?
ELE – O nosso e os outros – o porte de Santos, o
porto da Bahia, o porto do Pará...
ELA – O porto Alegre, o porto das Caixas, o porto
novo do Cunha...
ELE – Cala-te! Não digas asneiras! Falo dos grandes
portos!
ELA – Mas vem cá, Machado...por que é que eles
estavam fechados?
ELE – Estavam fechados porque não estavam abertos.
ELA – E não estavam abertos porque estavam fechados.
Fiquei na mesma. O que eu quero saber é como eles estavam fechados! Sei como se
fecha uma porta, mas não sei como se fecha um porto!
ELE – É estilo figurado, minha tola! Não se diz que
uma questão é aberta? Não se diz que a discussão está fechada? Não quer dizer
que haja uma chave para abrir a questão ou a discussão...assim um porto pode
estar fechado. Percebeste?
ELA – Não.
ELE – Ora aí tens! Cara fechada! Estilo figurado!
Estou de cara fechada, mas não preciso de uma chave para abri-la! Que quer
dizer xará fechada? Cara de alguém que se zanga! Há diversos modos de estar
fechado! Uma discussão, uma cara ou um porto não podem estar fechados pelo
mesmo processo ou pelo mesmo sistema que um quarto ou uma gaveta! Está visto
que não se põe uma tranca nem um cadeado num porto!
ELA – Bom, não insisto. (À parte). Ele sabe tanto
quanto ei o que é porto fechado.
DOUTOR (Entrando) – Ora, muito boa tarde! Cheguei a
tempo para o café?
ELA – Chegou à deixa! Ele aí vem. (Entra um criado
com a bandeja do café e serve)
DOUTOR – Vim hoje um pouco mais tarde, porque fui
ver um doente, e não me demoro porque o tempo está se fechando!
ELE – Ouves? “O tempo este se fechando”! Quedê a
chave do tempo?
ELA – Basta!
DOUTOR – O que é isso? Vocês estão a disputar?
ELE – Não faça caso, meu sogro, ela...
ELA – O caso é este, papai: como é hoje o centenário
da abertura dos portos, eu perguntei-lhe o que são portos abertos; ele não
soube me explicar, começou a falar à toa, eu impacientei-me...
DOUTOR – A explicação é fácil: portos abertos são
aqueles em que é permitida a entrada de embarcações estrangeiras e portos
fechados são aqueles onde as embarcações não podem entrar.
ELA – Ah! Isso sim! Agora sei o que é um porto
aberto! Obrigada, papai...
ELE – Uff!
_____________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário