quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Navalha na carne":
documento dramático


por Sábato Magaldi



Plínio Marcos irrompe na dramaturgia brasileira com uma verdade e uma violência que de súbito deslocam os valores sobre os quais repousavam nossas experiências realistas. Dois perdidos numa noite suja já provocara esse impacto, desnudando o comportamento de dois indivíduos que se dilaceram numa strindberguiana "luta de cérebros", até a destruição. Navalha na carne retoma o mesmo procedimento de sondagem psicológica e ruptura brusca de um abscesso, para que a catarse traga o alívio final.

Com a autenticidade do levantamento que Plínio Marcos faz das situações sociais e dos caracteres em jogo, as figuras do submundo pintadas pela nossa ficção se tornam de repente românticas, líricas, próximas do róseo. Nunca um escritor nacional se preocupou tanto em investigar sem lentes embelezadoras a realidade, mostrando-a ao público na crueza da matéria bruta. A primeira impressão que se tem é a do documento - a fatia de vida cortada ainda quente do cenário original, o flagrante íntimo surpreendido de um buraco de fechadura.

O ato único de Navalha na carne reúne apenas três personagens: uma prostituta, o cafetão e o empergado homossexual do hotel de quinta classe. Neusa Suely, voltando ao quarto, encontra Wado na cama, a ler uma revista em quadrinhos. Ele nem havia saído: sem dinheiro, que fazer lá fora? Antes de revelar a Suely o motivo do mau humor, Wado exercita seu sadsimo, e ela acredita numa intriga da vadia do 102.

Garantindo Suely que deixou no criado-mudo o dinheiro, ocorre a suspeita de furto, e só Veludo seria o responsável por ele. Interrogatório nos mais persuasivos métodos policiais, e Veludo acaba confessando que tirou a quantia destinada a Wado: a metado fora para o resistente rapaz do bar e a outra metade para a maconha. A entrega do cigarro de erva a Wado será o princípio da reconciliação, com a promessa de que o dinheiro será devolvido. Veludo quer apenas uma baforada e se inicia uma cena ambígua entre os dois, cortada por uma explosão de Suely, que expulsa do quarto o homossexual.

Ele deixara escapar o xingatóriio de "galinha velha", que Wado depois retoma para feri-la e humilhá-la. Com sadismo implacável, Wado menciona as pelancas de Suely e tira-lhe a maquiagem do rosto, para esfregar nele o espelho denunciador dos 50 anos (ela diz não ter mais de 30, gastos e envelhecidos naquela vida triste). Ao reconhecer, arriada, a própria miséria, Suely tenta uma saída pela verdade: se não tem beleza para assegurar a correspondência de Wado, que ele cumpra o papel de quem recebe dinheiro feminino.

Prostituta, Suely inverte a situação, tornando consciente o jogo prostituído de Wado. E apoia o desejo de tê-lo à força na cama. Ao ver-se acuado, o homem de fala macia tenta uma nova sedução e a Suely se rende, desfazendo-se da arma. Seguro, Wado acaba por sair tranquilamente. Quando se apagam as luzes, Suely tira a pelinha de mortadela no sanduíche, companheiro único da solidão.

Demo-nos ao trabalho de resumir a sucessão de episódios para que os leitores saibam realmente o que se passa no texto, sem iludi-lo com implicações inverídicas ou com atenuantes descabidas. Acrescente-se a esse esquema, revelador na sua crueza, uma linguagem fiel ao meio, com o inventário dos palavrões conhecidos, e se completará a fisionomia de Navalha na carne. Quais as lições a tirar?

Uma primeira virtude da peça é a sua concentração, a ausência de delongas inúteis e de artifícios de qualquer natureza. A economia verbal, representada pelo mínimo de palavras que as personagens balbuciam ou vomitam, intensifica a relação dramática, num ritmo bem equilibrado de clímax e relaxamento. A procura da exatidão vocabular resvala às vezes para o pitoresco, mas não o condenamos, porque permite um desafogo cômico, em meio ao mal-estar sufocante.

O público é contundentemente desafiado pela interpelação implícita nos diálogos, participando à força de uma realidade exposta sem véus. Outro mérito dessa narrativa franca é que ela não prescinde da sutileza, dos subentendidos e das alusões. As personagens se dizem tudo o que têm a dizer, com uma dureza proposital, que dispensaria a extrapolação. Mas há ainda uma carga subjetiva em seus atos e suas palavras que o autor manipula com visível mestria.

Cite-se a mistura do prazer masoquista e de afirmação de honra que há na recusa de Veludo fumar o cigarro que Wado quer impingir-lhe. Veja-se, principalmente, a ambigüidade que salta da aparente repulsa de Wado pelo homossexual - uma atração disfarçada pela surra que pretende aplicar-lhe, negando-lhe de início o cigarro. E acompanhe-se o desmascaramento que Suely faz da cena, investindo contra o amante. Com o mesmo vigor antiilusionista que é a marca de uma parte ponderável da melhor ficção contemporânea, Plínio Marcos realiza obra de arte verdadeira.

As personagens são talhadas com espírito de síntese, o que fortalece seus traços essenciais. Marginalizadas no submundo em que vivem, por assim dizer rastejam os seus sentimentos, e não é à toa que frequentemente são jogadas ao solo. A matéria primordial que as dintingue é a tristeza, caracterizada em variadas formas. Veludo e Wado, além de prisioneiros do vício, alimentam-se de uma melancólica ilusão: o primeiro obrigado a roubar o dinheiro com que tentaria obter o afeto de um rapaz, e o segundo, querendo parecer condescendente, porque arranjaria mulheres mais bonitas do que Suely, mas na verdade tirando o sustento da canseira dela.

Nem a desforra do sarro deixado pelo mundo, com o encontro agradável de Wado, Suely consegue, e daí seu sentimento de que são seres reduzidos à imanência: "Às vezes chego a pensar: poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo somos gente? Chego até a duvidar! Duvido que gente de verdade viva assim, aporrinhando o outro, um se servindo do outro". A condição de objeto, de criaturas exiladas no mundo (no submundo), que Suely intui, implica numa bonita nostalgia de transcendência, que engrandece a personagem e a recupera para uma ética superior. Aliás, a insubmissão a desvios, ressaltada no texto, já caracterizara a moralidade congênita de Suely, nao obstante o trabalho a que se dedica.

Por isso parecem-nos infelizes os consideranda do Departamento de Polícia Federal, ao proibir a encenação total ou parcial de Navalha na carne em todo o País (Portaria de 14 de junho, publicada no Diário Oficial da União no dia 19). Pode-se ler no documento:

"Compete à censura federal a seleção de espetáculos públicos, visando a preservar a sociedade de influências lesivas ao consenso comum, tendentes a aviltar os padrões de valores morais e culturais coletivamente aceitos. Os aspectos ofensivos ao decoro público inseridos em função de entretenimento popular tornam a representação antiestética e consequentemente comprometem-lhe o mérito artístico. Há uma profusão de sequências obscenas, termos torpes, anomalias e morbidez explorados na peça, a qual é desprovida de mensagem construtiva, positiva, e de sanções a impulsos ilegítimos, o que a torna inadequada a platéia de qualquer nível etário".

Permitimo-nos julgar que essas considerações foram feitas com base no que Navalha na carne tem de mais aparente e superficial. Desde que se adimita ser a peça uma obra de arte autêntica, está claro que não teve o intuito de chocar gratuitamente o público. Pode-se até concluir que, denunciando uma realidade, que precisa ser corrigida, ela acabaria por resguardar a sociedade dos males que a solapam. O tratamento artístico de uma situação nunca é antiestético, mas analisa em profundidade um fenômeno social.

A linguagem, se fosse amenizada, falsearia a caracterização psicológica e o ambiente. A piedade que as criaturas provocam no autor e nos espectadores traz uma mensagem construtiva, de amor e compreensão pelos seres marginalizados, que devem ser trazidos para o sadio convívio humano. O horror que a protagonista sente de tudo, repelindo com náusea os impulsos equívocos do homem que a explora, já representa uma sanção moral contra o meio em que vive. Ademais, cabe-nos discordar da exigência da mensagem construtiva e positiva. Ela se confunde, em geral, com as palavras de ordem, no campo da arte, dos regimes totalitários.

Os limites de Navalha na carne decorrem das próprias intenções do autor, cujo objetivo foi o de documentar uma realidade. A peça se inscreve, assim, dentro das fronteiras do realismo, ou de um neo-realismo, quando a literatura moderna procura abrir-se numa expressão mais ampla. O texto ainda se prende à idéia da ficção como forma de conhecimento e acreditamos que, nesse território, o ensaio pode ser muito mais eloqüente e conclusivo do que o teatro. Mas, sobretudo na dramaturgia brasileira, que experimenta numerosos caminhos, ela se impõe como estágio salutar para quebra de tabus e preparo do terreno em função de vôos mais altos. É uma inútil hipocrisia querer interditar para um público adulto a visão dessa realidade.
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O presente artigo foi extraído do livro Moderna Dramaturgia Brasileira (Editora Perspectiva/1998), leitura obrigatória para todos aqueles que desejam se aprofundar no entendimento da obra de alguns dos mais renomados dramaturgos nacionais, já que o livro é de autoria de um dos maiores críticos e ensaístas do País. O volume analisa textos de:

Oswald de Andrade
Nelson Rodrigues
Jorge Andrade
Ariano Suassuna
Vicente Catalano
Vinícius de Moraes
Pedro Bloch
Gláucio Gill
José Celso Martinez Corrêa
Augusto Boal
Dias Gomes
Domingos Oliveira
Oduvaldo Vianna Filho
Lauro César Muniz
Bráulio Pedroso
Plínio Marcos
José Vicente
Leilah Asssunção
Isabel Câmara
Consuelo de Castro
Mário Prata
Maria Adelaide Amaral
Juca de Oliveira
Edla van Steen
David George
José Eduardo Vendramini
Mara Carvalho
Alberto Guzik.

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