quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Nelson Rodrigues
- a obra -

Hélio Pellegrino


A obra teatral de Nelson Rodrigues compõe-se de duas vertentes nítidas, cuja fisionomia complementar lhes confere plena unidade. Uma vertente prepara a outra, cava os alicerces da seguinte e ambas, numa síntese que jamais está ausente do conjunto da obra de qualquer artista importante, revelam a visão complexíssima que tem do mundo este teatrólogo robusto, sem dúvida dos maiores até agora surgidos em língua portuguesa.

Ao primeiro movimento da obra de Nelson Rodrigues, poderíamos chamar de mitológico. Aí encontramos este "mural primitivo, pintado com sangue e com excremento, onde se espoja toda a brutalidade poética do bicho-criatura humano", para usarmos a excelente expressão de Pompeu de Sousa. As grandes peças iniciais de Nelson Rodrigues - Vestido de noiva, Anjo negro, Senhora dos afogados, Álbum de família - pertencem a esse ciclo inaugural, genesíaco, onde o autor, voltado para as raízes mais profundas do seu inconsciente, busca encontrar a sua mitologia pessoal, fundante, ao mesmo tempo que, nesta pesquisa, exprime problemas e situações essenciais da espécie.

Essas peças do "ciclo mitológico" significam o movimento que faz o autor no sentido de sua interioridade, numa sondagem vertical das estruturas, a partir das quais a sua obra - e a sua própria personalidade - passam a conhecer-se e a construir-se. Claro está que a direção criadora dessa fase do teatro de Nelson Rodrigues tem repercussões na linguagem por ele usada e, além disso, se reflete na recorrência com que, numa mesma peça, as mesmas situações básicas se repetem, numa pseudo monotonia que, longe de significar simplificação e empobrecimento, tem todo o sentido de um trabalho humano, poético e dramático que traz em si a fatalidade de esgotar-se - para surgir à luz em toda a sua grandeza.

O autor escava os seus temas, gira em torno deles, exacerba-os para clarificá-los e, a uma crítica menos avisada, este esforço poderá parecer sobrecarga rebarbativa quando, em verdade, obedece apenas aos movimentos da sístole e diástole que caracterizam a pulsação do espírito em seus níveis inconscientes mais arcaicos. Amor e ódio, nascimento e morte, incesto e crime, gênese e apocalipse - tais são as massas incandescentes que giram no universo dramático de Nelson Rodrigues, na primeira fase do seu teatro, sem nenhum compromisso com a verossimilhança e sem pretender qualquer transcrição realista do mundo objetivo.

Este dado é muito importante para se compreender a estrutura dramática das peças de Nelson Rodrigues, na primeira etapa de sua criação. Acima da realidade está o mito, no que comporta de essencial e universal. Não se trata, aqui, de utilizar como substância dramática a situação concreta do homem no mundo, mas de iluminar, poética e intuitivamente, o feixe mais profundo de sua possibilidades conflitivas fundamentais. Em Álbum de família, por exemplo, - e escolho esta peça por considerá-la central dentro da obra de Nelson Rodrigues, e sua mais importante criação mítica - não se vai encontrar a história de uma família determinada, sofrendo a influência mediadora do seu tempo, do seu meio e apresentando, portanto, uma fisionomia, conflitiva, específica e historicamente condicionada.

Nessa obra, o que importa é o mito do incesto, tratado em todas as direções possíveis, desdobrado nos dilaceramentos e nos ódios que lhe são intrínsecos. Senhorinha, Nonô, Jonas, Glorinha não são pessoas de carne e osso, são símbolos, são arquétipos, solenes e terríveis na sua grandeza e na sua miséria super-humanas, e o não-entendimento deste fato gera equívocos ingênuos e grosseiros - como o da estupidez policial que interditou a peça por considerá-la imoral.
O homem, na sua marcha para a consciência, ou melhor, na sua busca dos Logos, arranca sempre do mito, do chão fecundo e obscuro de sua alma, onde fervem as situações fundantes em toda a sua ingênua e terrível crueldade.

É esse mundo, e esse humus pré-lógico que Nelson Rodrigues, no seu esforço de estruturação de si mesmo e de sua obra, procura trabalhar e transcrever. Neste sentido, sua obra é tão imoral como a mitologia grega ou a mitologia de qualquer povo, crivada de incestos, de crimes, de sangue e excremento. E, ao chamar-se de tarados os personagens arquétipos de Nelson Rodrigues, cai-se no mesmo e profundo ridículo que corresponderia a uma acusação desse tipo feita a Édipo, no Édipo Rei, de Sófocles. A moral convencional se aplica aos humanos, não aos heróis míticos da espécie.

Eles são tão imorais ou tão elementares como um grande rio em plena enchente, destruindo casas, alagando campos, afogando crianças e rebanhos. E, ao mesmo tempo, esses heróis são profundamente morais, porque exemplares na sua coragem superhumana de descer aos abismos, clareando as trevas que dormem no fundo de cada ser humano e que nós - por não sermos heróis - não conseguimos suportar.

Do ponto de vista da linguagem, as peças míticas de Nelson Rodrigues se adequam à matéria-prima dramática que lhes dá substância. A linguagem é solene, poética, encantatória. O verbo do mito participa de sua condição supra-racional. As imagens e os símbolos verbais estão carregados de sentido intuiitivo, iluminante, supra-coloquial. Não há nada, nessas peças, da banalidade cotidiana do prosaísmo sufocante que, depois, na sua segunda fase criativa, será a matéria de trabalho do grande damaturgo.

Nelson Rodrigues, na fase inaugural de sua obra, persegue o "autêntico real absoluto", de Novalis, a poesia que se identifica à verdade ideal e, por isto mesmo, ultrapassa o homem de carne e osso, encravado dentro do mundo, pojado do cotidiano que revela a sua pequenez e, ao mesmo tempo, a sua grandeza. Os personagens míticos de Nelson Rodrigues são sempre grandes, desmesurados, uma vez que - habitantes do Olimpo - participam da perenidade dos deuses antigos. Eles são intemporais, pois lançam suas raízes na matriz da alma humana - também intemporal - e deles não se pode esperar que sejam o retrato do homem histórico, mas a sua transposição transfigurada para o plano do mito.

Já na segunda fase de sua obra, Nelson Rodrigues, tendo encontrado em si mesmo, através da vertente mítica, os temas fundamentais de sua equação pessoal e de sua dramaturgia, caminha ao encontro não do homem imortal, mas do homem que morre. "Esse bicho da terra tão pequeno", mergulhado na sua ecologia específica, morador do subúrbio, crivado de contradições, envenenado de banalidade, mas vivo, vivo na sua condição trágica de ser marcado pelo pecado e pela morte, será o barro a partir do qual Nelson Rodrigues, apos A falecida, passará a esculpir sua obra teatral.

É claro que existe uma unidade essencial entre ambos os movimentos dessa obra. A comédia mítica se sucede à comédia humana. Ao homem como pura interioridade, se sucede o homem carioca, o homem do subúrbio, o ser humano particularíssimo nascido do homem geral mitológico. Esta marcha para a realidade, cujo primeiro lance, como vimos, é expresso através de A falecida, não significa uma ruptura de significados, mas um desdobramento analítico dos significados anteriores.

Da síntese intuitiva, isto é, da poesia, Nelson Rodriges parte para a análise de caracteres, isto é, para a prosa. E esta passagem da poesia para a prosa corresponde ao domínio, conquistado pelo autor, de sua temática pessoal profunda, de tal forma que já lhe é possível surpreender a poesia na prosa, as situações exemplares dentro do que é peculiar, particular, específico. Como Balzac, Nelson Rodrigues sabe agora que, no ambiente provinciano, nos pequenos meios afogados pela rotina, no subúrbio - que é a província do dramaturgo - se escondem as mais intensas paixões humanas.

A partir de A falecida passamos a assistir, na obra de Nelson Rodrigues, ao desfile dramático dos mesmos temas que fazem a pletora de sua fase mítica, mas já com outra conotação, com outra estrutura, com outra linguagem. Amor e ódio, nascimento e morte, gênese e apocalipse continuam a ser os assuntos que o obsedam. Mas esses movimentos da alma estão encarnados, ganham finitude, miséria, cotitianeidade, através da galeria de tipos criados pelo autor. Seus personagens descem do Olimpo, se aproximam de nós, exprimem a presença, em nós, dos grandes temas configurados à nossa dimensão humana e, nesse sentido, nos comovem e nos horrorizam mais - pois já agora ouvimos, por intermédio deles, a voz de nossos próprios horrores pessoais.

A grande novidade, a meu ver, dessa fase "balzaqueana" na obra de Nelson Rodrigues reside na linguagem. É óbvio que, a uma guinada tão intensa, qual seja a passagem da comédia mítica para a comédia humana, correspondeu necessariamente uma mudança decisiva e orgânica da linguagem. É admirável a maneira pela qual essa mudança foi feita. A linguagem de Nelson Rodrigues, em sua segunda fase criativa, possui uma formidável plasticidade, participa intrinsicamente do processo vivo dessa fase, chega a exprimi-lo - e, nas suas peças sucessivas, cada vez com mais força.

Pode-se caracterizar a obra de Nelson Rodrigues, desde A falecida, a partir da linguagem. Esta, à semelhança de seus personagens, desceu do Olimpo e se plantou no subúrbio, criou raízes neste ambiente, desceu até a sua terra mais profunda para brotar com um vigor e uma originalidade absolutos. É magnífica a forma pela qual Nelson Rodrigues, abandonando a semântica solene e hierática do mito, chegou libérrimo à expressão coloquial que colhe a palavra na sua fonte popular mais pura, sem nenhum recurso "literário", sem qualquer contrafação que revele o artifício ou a busca da simplicidade.

Sua linguagem é simples, porque é perfeita. E nesta medida, sendo simples, é complexíssima, pois traz consigo os meios expressivos que lhe possibilitam a revelação dramática de caracteres humanos e de situações metafísicas profundas. Acredito que Nelson Rodrigues, para realizar uma tal proeza semântica, se apoiou na experiência literária que para ele representa A vida como ela é, crônica diária de gosto quase sempre duvidoso, mas que lhe serve às mil maravilhas para afiar seus instrumento verbal. E, assim, sua crônica tem, dentro de sua obra, um papel auxiliar de primeira importância.
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Extraído de Nelson Rodrigues - Teatro quase completo, volume IV (tempo brasileiro/1966)

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