domingo, 7 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"O homem inesperado"


..............................................
Deliciosa e emocionante viagem



Lionel Fischer


Como se sabe, toda viagem contém potencialmente alguma dose de risco. Não me refiro, evidentemente, a desastres concretos, como a queda de um avião ou o descarrilhamento de um trem. Por "risco" entendo a possibilidade de entrarmos em contato com realidades fora do roteiro previsto, que podem ser maravilhosas ou catastróficas. No pesente caso, um escritor famoso e uma mulher que muito o admira dividem a cabine de um trem que vai de Paris a Frankfurt.

Durante a viagem, ele tece considerações sobre sua vida e carreira literária, enquanto ela fala de seu passado e deixa claro que gostaria de estabelecer algum contato com o escritor. E este também, após algum tempo, manifesta o mesmo desejo. No entanto, tais confissões são feitas para a platéia e só nos instantes finais da viagem eles efetivamente se falam. Só no final da viagem. Por que seria?

Bem, a possível resposta virá mais adiante. Por ora, cabe registrar que "O homem inesperado", da escritora francesa Yasmina Reza, está em cartaz no Teatro Fashion Mall, com direção assinada por Emílio de Mello (supervisão de Daniel Filho) e elenco formado por Paulo Goulart e Nicette Bruno.

O presente texto pode ser encarado de diversas maneiras. E embora aborde uma série de temas, o principal me parece ser o tempo. Tanto no sentido do que já vivemos, de todas as recordações armazenadas, das reflexões que fazemos sobre o rumo que adotamos para nossas vidas, como também, e sobretudo, pelo tempo que consumimos tecendo inúteis considerações até termos coragem de materializar nossos impulsos.

No mundo atual, é facílimo para pessoas de todas as idades - e não apenas para os jovens - estabelecer uma infinidade de contatos via e-mail, messanger, orkut, torpedos etc. E isto por uma razão muito simples: valendo-se destes recursos, as pessoas utilizam apenas a palavra escrita, que pode ser elaborada com relativa calma e alguma prudência. Mas quando se trata de um contato ao vivo, a suposta e anterior espontaneidade cede lugar a um certo desconforto, uma espécie de timidez fruto da impossibilidade de se camuflar quem realmente somos. A palavra agora é falada, os olhares se encontram, e aí não há muita escapatória. A anterior empatia ou atração podem desaparecer numa questão de segundos.

No presente caso, os dois ótimos personagens perdem um tempo precioso, quando já poderiam ter estabelecido algum contato logo no início da viagem. E quando chegam a fazê-lo, o trem já está chegando a Frankfurt e eles provavelmente nunca mais se verão. Ou seja: optaram pelo discurso interno, por especulações solitárias de múltiplas naturezas, assim desperdiçando um encontro que poderia ser fundamental em suas vidas. E, não custa nada registrar, não se trata de dois adolescentes, mas de pessoas maduras...

Com relação ao espetáculo, o excelente ator Emílio de Mello trabalha a cena de forma simples, priorizando o essencial: a meticulosa exposição do caráter dos dois personagens, que ora se materializa com muito humor, ora de forma um tanto melancólica. Mas sempre interessando profundamente a platéia, dadas as questões que ambos levantam e também porque todos os espectadores torcem avidamente para que ambos finalmente parem de divagar e assumam claramente o múto interesse.

No que diz respeito a Paulo Goulart e Nicette Bruno, o que ainda pode-se dizer sobre dois intérpretes tão maravilhosos? São casados na vida real, todos sabemos, mas isso não garantiria
uma contracena tão intensa, cúmplice e afetuosa como exibem. E vê-los juntos no palco sempre foi, e continuará sendo, um motivo de grande emoção. E como acredito que teatro e vida caminham de mãos dadas, Nicette e Paulo são um perfeito exemplo desta minha crença.

Assim, só posso parabenizar de forma entusiasmada a performance de ambos, irretocável sob todos os aspectos, cabendo registrar o longo e apaixonado beijo que trocam no palco durante os aplausos - como tenho a singular propriedade de chorar por razões que a outros fariam rir, devo confessar que, aplaudindo de pé a atuação do casal, me percebi com os olhos marejados; e só não cheguei a carpir como uma lavadeira grega por pura timidez...

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a contribuição de todos os profissionais envolvidos neste projeto tão oportuno e emocionante - Daniel Filho (supervisão), Flávio Marinho (tradução), Marcos Flaksman (cenografia e concepção de imagens), Marília Carneiro e Antonio Araújo (figurinos), Aurélio de Simoni (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (direção musical e trilha sonora original).

O HOMEM INESPERADO - Texto de Yasmina Reza. Direção de Emílio de Mello. Com Paulo Goulart e Nicette Bruno. Teatro Fashion Mall. Sexta e sábado, 21h30. Domingo às 18 e 20h.

Nenhum comentário:

Postar um comentário