terça-feira, 13 de abril de 2010

Atores e antropólogos:
observadores do mundo

Maria Cláudia Pereira Coelho


Em 1980, Alan Parker retratou em seu filme "Fame" o cotidiano de uma escola de performing arts. Através da trajetória de alguns alunos típicos - a judia reprimida pela mãe, o homossexual enrustido, o tímido talentoso, o negro sensual, talentoso e analfabeto, a moça rica e carente, a cantora pseudo-liberada e o porto-riquenho agressivo porém sensível - o cineasta mostra, acompanhando seus passos desde os testes de admissão até a formatura, o que é tornar-se um artista. E tornar-se um artista é algo mais do que aprender uma profissão artística, seja música, teatro ou dança. É, como diz a professora de dança, um "modo de vida". Um modo de vida dramatizado em pequenas situações do cotidiano, e aprendido nos mínimos detalhes.

Tornar-se artista quer dizer, em primeiro lugar, aderir a um novo estilo de vida, expresso na recusa dos valores das famílias de origem. Doris, a moça judia, é um exemplo típico; quer passar a chamar-se "Dominique", no que enfrenta a oposição da mãe; para esta, "Dominique" simboliza noites fora de casa, o risco de engravidar, em suma, as transformações por que passa Doris e que ela não quer ver consolidadas na mudança de nome. A temática da liberação sexual aparece também no drama do rapaz que decide falar durante um exercício de seus medos e complexos por ser homossexual. Diante do espanto de Doris, justifica-se afirmando que o ator tem que se expor. E ser artista é aprender a se expor e também a se liberar sexualmente, como mostra o caso de Coco: convidada por um falso cineasta francês para um teste de câmera, apavora-se quando ele lhe pede que tire a blusa, e só cede quando ele lhe diz, aborrecido, que a convidara pensando que ela era profissional.

A escola é também cenário da primeira experiência com drogas, no contato com colegas mais experimentados; é o campo onde se dá o confronto entre as cadeiras artísticas, espaço para sensibilidade, intuição e sensualidade, e as teóricas, "matérias chatas", que puxam pelo intelecto; este é menosprezado em favor de categorias subjetivas de avaliação do real - o que mais agrada a Ralph quando sobe num palco pela primeira vez é a troca de energia ao vivo com o público. E é também na escola que surge o que parece ser a questão mais fundamental deste meio artístico para A. Parker: a busca da fama, embasada na crença do próprio talento, ou seja, a crença no ser único.

Na cena final da formatura, em que os alunos apresentam um grande show, o drama escondido daqueles que querem e julgam poder protagonizar o "star system" aparece claramente: um grande coral canta a música-tema, que, entre outras coisas, diz o seguinte: "I sing the body eletric/ I celebrate the me yet to come/ I toast to my own reunion/ When I become one with the sun/ And I'll burn vith the fire of ten million satars / And in time, and in time/ We will all be stars".

Posta em contraste com a cena em que os alunos encontram, trabalhando como garçom, aquele que fora o astro da escola anos atrás, a cena final é um nítido retrato desse drama: todos crêem no seu potencial de estrelas; todos sabem que todos crêem nisto; todos sabem que pouquíssimos serão bem sucedidos; e ainda assim, devido à crença no próprio talento (que de resto todos crêem ter, porque acreditam ser únicos), todos têm certeza de que serão os escolhidos.

O que podem ter em comum um filme e uma tese sobre uma escola de teatro? Na estética, nada; no conteúdo, tudo. Em uma pesquisa realizada em 1988-1999 sobre uma escola de teatro no Rio de Janeiro, procurei mostrar de que maneira os alunos escaravam a profissão de ator, para através disto compreender qual o estilo de vida e a visão de mundo que caracterizam o meio teatral. Os traços mais marcantes que encontrei foram a recusa do mundo "burguês", identificado com hipocrisia, preconceitos, apego a valores materiais, monotonia, rotina etc.

Este mundo burguês era personificado pelas famílias dos estudantes; estes procuravam desenvolver um estilo de vida "alternativo", caracterizado pela preocupação em manter a "cabeça aberta", ou seja, livrar-se de preconceitos, experimentar de tudo, fugir das rotinas de trabalho e da preocupação com a estabilidade material etc. Por isso, era importante ter uma profissão que não precisasse ser dicotomizada em relação à vida pessoal, que pudesse ser exercida "24 horas por dia" - a profissão de ator, prazeirosa, alternativa e procurada por pessoas de "cabeça aberta".

Assim, o aprendizado da profissão de ator realizava-se paralelamente ao aprendizado de uma nova forma de viver. Além de ser "alternativo" e "cabeça aberta", os estudantes entram em contato com um código que valoriza o hedonismo e as formas sensoriais, não racionais de percepção da realidade. Assim, dá-se mais atenção ao corpo do que à mente, e a emoção e a intuição são muito mais valorizadas do que a razão, que num extremo pode até ser vista como repressora daquilo que é mais genuíno no trabalho do ator: sua sensibilidade e intuição.

Da conjunção destas várias características - a busca do prazer, a importância do sensorial e do corpo, o desejo de ser "alternativo" e "cabeça aberta" - surge um dos traços mais típicos daquele grupo de estudantes de teatro: a valorização da liberação sexual, a importância de estar aberto a qualquer tipo de experiência, sem preconceitos.

Por sua vez, do peso conferido à emoção surge a necessidade de auto-conhecimento. É assim que muitos exercícios de teatro assemelhavam-se a sessões terapêuticas, e a possibilidade de auto-conhecimento oferecida pelo trabalho de ator aparecia como um dos maiores atrativos desta profissão. Esta valorização do íntimo, da subjetividade, era contraposta à técnica, que, a exemplo da razão, era muitas vezes encarada como repressora do prazer de se estar no palco.

Este desprezo pela técnica, aliado à crença nas emoções como capazes de resolverem tudo, engendra uma das situações mais típicas das aulas de teatro: a do aluno que, surpreso com a crítica do professor por não ter expresso adequadamente uma emoção, alega em sua defesa tê-la sentido.

Finalmente, um último traço muito marcante deste universo é a crença no talento, definido como uma qualidade inata que habilita o ator a criar um canal de comunicação com o público que não passa pelo racional - um ator talentoso, pelo seu "brilho", seu "peso", sua "energia". Sendo inato e subjetivo, é portanto individualizante: um ator talentoso é um ator que não pode ser substituído, pois impõe sua marca pessoal ao personagem.

Todas estas características apreendidas pela observação antropológica combinam com aquela descrição do universo artístico de A. Parker: a escola que observei estava cheia de Doris, Ralphs e Cocos. Isto sugere que, por distantes que estes mundos pareçam, existem alguns momentos em que o trabalho do antropólogo e o do ator se tangenciam.

Quando Regina Casé, em um quadro da "TV Pirata", faz uma socióloga, utilizando uma série de termos do jargão científico, um gestual típico do meio acadêmico, idéias e maneiras de olhar não menos características, ela está lançando sobre os intelectuais um tipo de olhar semelhante àquele que lancei sobre os estudantes de teatro: um olhar que estranha aquilo que é familiar e próximo, e que ao fazê-lo permite decupar a realidade observada nos seus menores traços, permitindo um processo de reconstrução minucioso que recupera o real observado acrescentando-lhe uma nova dimensão - a intepretativa.

O olhar antropológico é exatamente isto: estranhar para conhecer melhor. H. Minner, num artigo clássico da antropologia, faz um estranho exercício: descreve a sociedade Nacirema, uma sociedade obcecada pela crença na doença e fealdade intrínsecas do corpo humano, e dominada pelos cuidados para com ele. Assim, desenvolvem os mais estranhos rituais, tais como a laceração diária da face com um instrumento cortante, para os homens; a introdução de um feixe de cerdas de porco untadas com uma substância mágica na boca, várias vezes ao dia, a falta da qual implica no abandono por parte de amigos e amantes; a existência de uma instituição especial em que se vai para morrer, o latipsoh; a consulta ao "escutador", uma espécie de feiticeiro que cura através de um suposto desenlace dos maus tratos infligidos pela mãe ao filho ainda em tenra idade; e muitos outros estranhos hábitos, que ao observador faziam supor que o traço mais característico da tribo fosse o sadomasoquismo, única explicação possível para os maus tratos a que estes nativos voluntariamente se submetiam em nome da saúde e da beleza.

O olhar antropológico treinado logo reconhece nesta descrição uma brincadeira: quantos homens não "laceram a face diariamente" (fazer a barba), quem não introduz cerdas de porco na boca com uma substância mágica para não perder amigos e amantes (escovar os dentes para evitar mau-hálito) e quem não conhece o latipsoh (hospital ao contrário) e o "escutador" (o psicanalista e seu complexo de Édipo)? Aliás, "nacirema" é "american" ao contrário...

Ângulo novo, realidade nova. É este estranhamento voluntário, controlado, marca registrada do olhar antropológico, que permite perceber facetas essenciais da realidade, a que estamos excessivamente acostumados para conhecer bem.É é esta observação cuidadosa do mundo, uma observação que estranha, decupa e recupera renovado o real que se exige do artista.

Por falar nisto, não é outra coisa que faz Tardieu em dois textos muito representativos do Teatro do Absurdo: "Um gesto por outro" e "Uma palavra por outra", duas verdadeiras teses antropológicas ambulantes. O que me faz pensar que talvez o teatro e a antropologia sejam como aqueles irmãos gêmeos separados as nascer, muito diferentes na educação que tiveram, mas portadores de uma semelhança essencial.

Mas a semelhança entre o teatro e a antropologia não se esgota no jeito de olhar o mundo, mesmo porque os atores e antropólogos não são apenas voyeurs, mas intérpretes que mergulham em mundos desconhecidos para apreendê-los de dentro. Esta viagem ao universo do outro, contudo, se tem encantos, também oferece riscos.

A antropologia batizou estes riscos de anthropological blues; para Roberto da Matta, anthropological blues é a sensação de solidão absoluta que toma conta do antropólogo quando, no processo de investigação do outro, sente-se temporariamente um exilado cultural, nem antropólogo, nem nativo, um híbrido perdido na fronteira de dois mundos culturais. Conhecer o outro é penetrar em outra lógica sem abrir mão da sua: paradoxo delicado, pois o movimento deve ter mão dupla. O antropólogo que vira índio para melhor fazer o seu trabalho não é mais que um antropólogo, portanto não fez o seu trabalho. Que o diga Carlos Castañeda...

A clássica associação entre arte e loucura é uma versão individualizada deste dilema cultural. O ator precisa compreender as motivações de um outro indivíduo, um ser fictício a quem precisa tornar real; para isso, deve empreender também uma viagem a um outro mundo, desta vez mais psíquico do que cultural., mas igualmente capaz de aprisionar o viajante. O ator que se metamorfoseia no personagem precisa ter absoluto controle sobre este processo, poder voltar a ser ator a qualquer momento. Caso contrário, não é mais um ser de mil faces, pois para trocar de máscaras é necessário um rosto que a envergue.

Uma arte e uma ciência; dois interesses, dois mundos, o mesmo olhar, o mesmo risco. Com contornos tão díspares, há muito em comum entre o teatro e a antropologia. Quando A. Parker olha para uma escola de teatro, ele faz um filme; posso olhar para este filme como sendo uma etnografia; Regina Casé transforma esta etnografia num quadro humorístico, e a sua forma de fazer teatro/televisão pode por sua vez ser objeto de uma tese antropológica. O jogo poderia prosseguir indefinidamente.

Mas, a cada início, é sempre bom lembrar que o filme e a tese sobre a escola de teatro viram de saída a mesma coisa. A sensibilidade artística apreende facetas sutis do real que se perdem nos hiatos da rigidez dos conceitos científicos, mas por sua vez impede que outras facetas, talvez grandes demais para a malha fina das coisas intuitivas, cheguem a ser consideradas. O método antropológico de observação do mundo tem muito de uma técnica que pode ser usada no aperfeiçoamento do mundo do ator.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 124/1990. A autora é Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ, Professora do Departamento de Comunicação Social da PUC/RJ e do Curso de Formação de Atores da Faculdade da Cidade.

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