segunda-feira, 5 de abril de 2010

O Teatro de Protesto

O título acima é o mesmo de um livro cuja leitura julgo indispensável para os amantes do teatro. De autoria de Robert Brustein, o volume disseca de forma admirável as obras de Ibsen, Strindberg, Tchecov, Shaw, Pirandello, O'Neill, Artaud e Genet, certamente alguns dos mais geniais dramaturgos da história do teatro. Lançado no Brasil em 1967 pala Zahar Editores, com tradução de Álvaro Cabral e prefácio de Paulo Francis, o livro continua sendo reeditado, e pode ser encontrado em livrarias que dedicam algum espaço à arte teatral.

Como sou completamente encantado com a obra de Tchecov, reproduzo aqui um pequeno trecho dedicado ao autor russo, à guisa de aperitivo, que espero suscitar nos parceiros deste blog, que ainda não leram "O Teatro de Protesto", o desejo de entrarem imediatamente em contato com uma obra que, como já disse, considero indispensável. (LF)


Capítulo IV

Anton Tchecov

Sendo Anton Tchecov o mais delicado, o mais sutil e desapaixonado de todos os dramaturgos modernos, presta-se a discussão se ele tem ou não, apropriadamente, cabimento nesta análise. Creio que o seu título de dramaturgo rebelde pode ser estabelecido, efetivamente, nem que o seja apenas de um modo parcial. Contudo, mesmo isso precisa ser provado.

É certo que, à superfície, a arte de Tchecov não promete qualquer evidência sobre suas inclinações rebeldes. Um arranjo aparentemente arbitrário das paisagens, pormenores de caracterização dos persongens, diálogos despretensiosos, silêncios, mutações de ritmo e pendor poético, eis a superfície que constitui a tentativa mais convincente de verossimilhança dramática de todo o teatro moderno; e em vez de ser agitado pelas energias da dissenção, impressiona muitos observadores por sua natureza singularmente suave e plácida.

Por outro lado, a superfície tchecoviana induz ao engano e, apesar de toda a sua densidade e contextura, não é impenetrável. Por baixo, existem abismos de teatralidade, fervor moral e revolta; e entre a superfície e esse substrato há uma constante tensão irônica. Isto não significa, porém, que a superfície tchecoviana possa ser ignorada; é por demais essencial à compreensão do todo harmônico de sua arte, para que a consideremos simples subterfúgio.

Ao procurarmos compreender os motivos e intenções íntimas de Tchecov, devemos ter cuidado em não menosprezar suas mais óbvias realizações estéticas; ao tentarmos desenterrar as raízes de sua revolta, devemos escavar delicadamente, para não perturbar aquela harmonia em que a realidade e a rebelião coexistem, em perfeita postura e equilíbrio.

Na verdade, a revolta em Tchecov assume uma forma inteiramente diferente de qualquer outra já considerada. É uma revolta por caminhos indiretos - muda, objetiva, desapaixonada. Ibsen e Strindberg, sustentados ambos por um romantismo revolucionário, estiveram ocupados com o atrito entre suas rebeldias pessoais e as forças antagônicas da realidade social, religiosa e metafísica. Mas Tchecov, excluindo inteiramente as afirmações pessoais, está totalmente desinteressado, ainda que de maneira indireta, numa arte autobiográfica.

Além de ser o mais modesto e menos presunçoso dos homens, Tchecov é o mais impessoal dos autores dramáticos. E em vez de entrar em conflito com o princípio da realidade, contenta-se em fazer da realidade a soma e substância de sua arte. Assim, Tchecov não usa o drama como um veículo de auto-realização individualista (Ibsen) nem como um meio de auto-expressão exorcista (Strindberg), mas, pelo contrário, como uma forma de descrição daquele mundo fluido para além do eu, em que o autor funciona apenas como testemunha imparcial.

Isto soa a naturalismo e, com efeito, Tchecov (pelo menos na parte incial de sua carreira) define seus objetivos de acordo com os princípios naturalistas: "A literatura chama-se artística", escreveu ele em 1887, "quando descreve a vida como realmente é. Sua finalidade é a absoluta e honesta verdade". Noutro lugar, ele declara que o escritor deve ser "tão objetivo quanto um químico, renunciando a todas as atitudes subjetivas ao apreender a qualidade da vida como ela é". Em sua resistência ao romantismo subjetivo, Tchecov vai ainda mais longe. Afirma que as personagens de ficção devem ter uma existência completamente independente do juízo e opiniões pessoais do autor.

A missão do talento consistiria, portanto, em ser um "bisbilhoteiro" ideal - um neutro escrivão de justiça que comunica os fatos a um "júri" sem desvirtuar nem comentar. Esta é a linguagem do cientista literário e Tchecov certamente faz jus a considerar-se um escritor científico. Sejam quais forem as modificações que ocorram em seu credo estético, ele nunca abandona a sua devoção desinteressada ao natural nem a sua fidelidade "à absoluta e honesta verdade".

Contudo, Tchecov não é, realmente, um naturalista. Apesar de seu distanciamento - sua extraordinária capacidade para imitar a realidade - ele não pode suprimir inteiramente suas atitudes pessoais nem abster-se de julgar suas personagens. Suas peças refletem simpatia pelo sofrimento humano e sua indignação pelo absurdo humano, alternando entre estados de indisfarçável, patética emoção, e lampejos de humor irônico, assim desqualificando-as como simples fragmentos de vida.

Na verdade, se Tchecov é um realista desprendido, permitindo que a vida prossiga de acordo com suas próprias leis, ele é também um moralista comprometido, dispondo a realidade de um modo particular a fim de suscitar algum comentário sobre a mesma. Em 1890, afirmava: "Quando escrevo, confio plenamente no meu leitor, partindo do princípio que ele próprio adicionará os elementos subjetios que faltam na narrativa".

Tchecov, o moralista, paira nas profundidades de suas peças, expressando-se através de uma ação oculta que, por vezes, redunda em melodrama, e de um ataque satírico que, algumas vezes, explode em farsa. Mas, por mais subterrâneo que possa ser, o moralista está sempre ditando o caráter, ação e tema, enquanto o realista reelabora-os a fim de excluir tudo o que pareça maneirismo, sibjetivismo ou inaturalmente teatral.

Como David Magarshack observou corretamente, a própria estética naturalista de Tchecov mudará no curso ulterior de sua carreira, pois sua preocupação com "a vida tal qual é" é finalmente modificada por sua crescente convicção de que "a vida tal qual é" é a vida como não devia ser.

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