quarta-feira, 31 de março de 2010

Franz Kafka
(1883-1924)

Lionel Fischer

Fui "apresentado" ao genial escritor nascido em Praga quando tinha 13 anos. A obra em questão era o conto A metamorfose, que me gerou tamanho impacto que meus pais chegaram a levantar a hipótese de que talvez fosse conveniente eu iniciar imediatamente um tratamento analítico, que adiei por sete anos. E nos três anos subseqüentes, li praticamente tudo que Kafka escreveu, obviamente que sem alcançar a profundidade de seus temas e tampouco usufruir, em toda a sua plenitude, a grandeza de sua magistral escrita. Ficaram-me, na época, milhares de dúvidas. Hoje as possuo às centenas, o que não deixa de constituir notável progresso.

Para mim o mais brilhante escritor do século XX, Kafka teve algumas de suas obras adaptadas para o cinema, mas raramente para o teatro, por razões que desconheço. Seja como for, gostaria de recomendar a vocês a leitura de sua obra e, no presente caso, do maravilhoso livro sobre o autor escrito pelo filósofo Leandro Konder, lançado em 1974 por José Álvaro Editor/ Paz e Terra, integrando a coleção "Vida e obra". Trata-se de um "aperitivo" extraordinário, posto que Konder fala tanto da vida como de algumas obras de Kafka, sempre valendo-se de uma linguagem simples e portanto acessível a qualquer leitor, e que certamente servirá de estímulo para aqueles que ainda não tiveram o privilégio de entrar em contato com este genial autor.

Em seguida, transcrevo dois capítulos de Kafka, vida e obra, desejando que os mesmos causem em nossa "confraria" um impacto semelhante ou até maior do que causaram - e ainda causam - em mim. Acho que os que já leram Kafka (ou até o livro em questão) terão prazer com este reencontro. E os que porventura ainda sejam "virgens" em Kafka, desejo que percam imediatamente esta virgindade, para tanto bastando se dirigir à primeira livraria das redondezas.

* * *


O Tema da Alienação

Foi o psiquiatra católico francês Joseph Gabel, segundo é do nosso conhecimento, o primeiro crítico que registrou de maneira clara a presença do tema da alienação na obra de Kafka. O que é alienação? A alienação é o fenômeno que ocorre toda a vez que o homem cria alguma coisa e sua criação escapa ao seu controle, aparecendo diante do criador como uma coisa estranha, dotada de vida própria. Sempre que os homens produzem riquezas e não as aproveitam, podemos dizer que eles se alienaram na produção dessas riquezas, porque as riquezas produzidas escaparam ao controle deles e não serviram àqueles que as produziram.

Sempre que os homens criam leis, instituições etc., e não se reconhecem nessas leis ou nessas instituições por eles criadas, sempre que as leis e as instituições deixam de prestar serviços aos homens e aparecem aos olhos dos homens como emanações opressivas de poderes misteriosos, podemos dizer que os homens se alienaram nas leis e instituições que criaram.

O ser humano é um ser criador, uma criatura capaz de transformar o mundo à sua feição, de acordo com a sua livre conveniência. Os animais só agem impulsionados pelos instintos e seus movimentos são sempre ditados pela natureza; os animais não são livres. Os homens, entretanto, são seres capazes de modificar a natureza, são seres capazes de dominar as forças naturais e de colocá-las, conscientemente, a serviço deles.

Quando a alienação se interpõe entre a atividade criadora do homem e seus resultados, o homem experimenta a sensação desagradável de não ser plenamente dono de si mesmo, de não poder criar livremente a sua própria vida. Sentindo-se tolhido no seu poder de criar, sentindo-se limitado por forças estranhas na manifestação da sua liberdade criadora, o homem é levado a sentir-se reduzido à condição de um animal ou de uma coisa (objeto).

No nosso tempo, a tecnologia se desenvolveu muito. Com a tecnologia, se desenvolveram as possibilidades criadoras do trabalho humano. Utilizando a enegia elétrica e a energia termonuclear, a humanidade pode, agora, mais do que nunca, dominar a natureza e organizar o mundo de acordo com a conveniência dos seres humanos em geral. Mas a humanidade, no século XX, está tremendamente desunida: a atual organização da sociedade e o sistema competitivo primário em que ela se baseia racharam em mil pedaços a unidade humana, a autêntica comunidade dos homens. Por isso, as conquistas tecnológicas não servem diretamente à generosidade dos indivíduos. Por isso, o progresso não faz com que os indivíduos, em geral, se sintam à vontade no mundo que criaram.

A sociedade contemporânea é uma sociedade altamente alienada: é uma sociedade na qual os homens aumentaram grandemente a força criadora do trabalho mas não conseguem empregar esta força em proveito próprio, coletivamente, porque se acham desunidos. Em conseqüência da alienação, os homens se sentem estranhos no mundo que criaram. A obra de Kafka reflete isso: "Os temas kafkianos são, decerto, variados, mas o tema do homem que se sente um estrangeiro dentro do mundo é um tema que volta constantemente" (Joseph Gabel)

Kafka registra o caráter opressivo do nosso mundo alienado, em sua obra, figurando-o na monstruosa organização do Tribunal (O Processo) e na inacessível burocracia do conde West-West (O Castelo). Também o inimigo invisível que leva a intranquilidade ao interior da toca onde se esconde o texugo, no conto A Toca, vale por uma representação das potências da alienação que atuam na sociedade contemporânea.

Um dos recursos mais hábeis que Kafka utiliza, aliás, na representação da alienação com suas histórias, consiste em figurar o protagonista como um animal. Assim, a condição de animalidade a que se vê reduzido o homem esmagado pela alienação é figurada plasticamente da maneira mais expressiva: o homem se torna animal. O herói de A Toca é um bicho que podemos tomar por um texugo. O herói de A Metamorfose se transforma em um inseto repugnante que podemos tomar por uma barata. Em outros contos, o narrador e principal personagem é um rato (Josefina a Cantora ou o Povo dos Ratos), um cachorro (Investigações de um cachorro) ou um macaco (Relatório para uma academia).

Em todos estes casos, o que impressiona os leitores é a violência sofrida por uma condição humana forçada a viver uma vida animal, limitada por uma animalidade que lhe é exterior. Mas o mundo da alienação, que obriga o conteúdo humano a suportar a forma animal é um mundo no qual os animais, sem deixarem de ser animais, podem perfeitamente assumir a função dos homens. E o corolário da tragédia de Gregor Samsa - o homem que se transforma em inseto repugnante - é a sátira do Dr. Bucéfalo, o cavalo de Alexandre o Grande, que hoje, liberto das esporas do seu antigo domador, tornou-se um respeitável jurista e vive às voltas com livros de Direito. No conto O novo advogado, é precisamente isso que acontece: Alexandre o Grande está morto, não há mais ninguém capaz de indicar o caminho para as Índias e seu histórico cavalo, longe do barulho das batalhas, ostenta um imponente saber jurídico.

Há uma lição a ser extraída da história do Dr. Bucéfalo. Num mundo em que há seres humanos violentamente reduzidos à condição de animais (como Gregor Samsa), é natural que os animais, como o cavalo de Alexandre, passem a ditar as regras - jurídicas - para os homens. A vida humana se coloca sob a jurisdição da animalidade.


Senso de Humor

O senso de humor de Kafka é um elemento importante da sua maneira de encarar a vida e desempenha um papel notável na sua obra. Na medida em que se sente isolado, inevitavelmente fraco e incapaz de agir sobre a realidade, dominando-a, o escritor tende a se deixar paralisar pelo pânico em face do mundo real; e sua obra tende a se tornar sufocante, excessivamente pesada, ilegível.

Mas o simples fato de Kafka nunca ter realmente parado de lutar para superar a sua solidão, o simples fato dele nunca ter desistido definivamente de procurar uma saída para os problemas que o afligiam, o simples fato dele nunca ter chegado a interromper o seu trabalho de criar histórias já sugerem que a esperança não morreu completamente dentro de seu espírito. O senso de humor era justamente uma das forças que Kafka possuía para mobilizar e renovar as suas esperanças, para tornar mais ativo o seu profundo inconformismo.

Quando a situação se apresentava diante dele como exageradamente negra, o senso de humor fazia com que ele não a tomasse exageradamente a sério. Em Kafka, tal como em Charles Chaplin, o senso de humor aparece misturado com elementos de lirismo e de melancolia. Só que, nas comédias de Carlitos, não há lugar para o peso trágico e para a complexidade dramática que encontramos na literatura de Kafka.

Kafka não é autor de comédias. Nem pode ser considerado um humorista, no sentido rigoroso da palavra. Em suas histórias, os elementos de comicidade são, em geral, bastante sutis. A comicidade de Kafka se manifesta, por exemplo, na forma lógica e minuciosamente exata pela qual são descritas situações obviamente absurdas. Manifesta-se, ainda, nas pretensões "racionalistas" com que os comportamentos irracionais procuram se justificar; e nas razões pseudo-humanitárias que os atos de desumanidade sabem invocar em sua defesa.

O que acaba por prevalecer na leitura de Kafka, em geral, não é o riso, e sim um sentimento de consternação: a realidade que as suas histórias nos põem diante dos olhos é grotesca, sombria, abafada. No entanto, quando a literatura kafkiana ameaça tornar-se demasiado sufocante, o senso de humor de Kafka faz com que se atenue a tensão produzida no espírito do leitor, criando condições psicológicas capazes de facilitar o prosseguimento da leitura.

Do fato de que Kafka não é um humorista não se deve concluir que devemos desprezar os aspectos francamente engraçados das duas histórias. Há na obra de Kafka uma dimensão satírica que é inegável: o ridículo é uma arma que Kafka utiliza com freqüência na representação artística da desumanidade do nosso mundo. Kafka tinha uma sensibilidade extraordinariamente desenvolvida para notar tanto as condições trágicas como os aspectos cômicos da vida que vivemos no presente século.

Sabemos por Max Brod que, quando Kafka lia para os seus amigos mais íntimos algumas das suas histórias, os amigos "estouravam de rir". Segundo Brod, a cena inicial do romance O Processo - a cena em que o personagem central é detido em seu quarto por dois investigadores de polícia, em virtude de uma acusação que não lhe dizem qual seja - provocou gargalhadas quando lida para os íntimos: "Todos foram tomados de um irresistível acesso de riso e o próprio Kafka ria tanto que, por alguns instantes, não pôde continuar a leitura".

Às vezes, o senso de humor de Kafka assume a forma da ironia e até da caricatura. Basta ver, por exemplo, na cena inicial do romance América, o herói Karl Rossman chegando ao porto de Nova Iorque e contemplando a famosa estátua da Liberdade, que lhe parece empunhando...uma espada!

Robert Fuchs, um amigo de Kafka, relata um episódio curioso e bem revelador da auto-ironia kafkiana: logo depois da publicação do livro de contos Contemplação (o primeiro livro de contos de Kafka, editado em janeiro de 1913), Fuchs encontrou o autor numa das ruas de Praga e este lhe disse que vinha de uma livraria, na qual já se haviam vendido 11 exemplares da obra recém distribuída. "Só eu comprei 10 - disse Kafka - e gostaria de saber quem terá comprado o décimo-primeiro".

O Diário de Kafka - que é um documento doloroso e, em geral, de leitura nada amena - também encerra notas em que o senso de humor do escritor se manifesta de maneira bastante direta. É o caso da anotação feita em 24/08/1911, quando Kafka vê um casal sentado num restaurante e percebe que o marido está lendo algo como uma revista em quadrinhos. Ele registra no Diário uma observação mais ou menos assim: "A rigor, permite-se que, sentado em uma mesa de restaurante ao lado da sua mulher, um homem leia um jornal; mas nunca uma revista em quadrinhos!"

No Diário, ainda, Kafka ataca seriamente a monogamia. Depois, atentando para a sua instabilidade afetiva e para a existência de múltiplas mulheres em sua vida, muda de tom. Refere-se às moças, em geral, de modo faceto; e conclui por um arroubo de efeito gaiato: "Não posso resistir ao desejo de admirar todas as que são dignas de admiração e ao desejo de amá-las até esgotar essa admiração".

Em outra anotação, Kafka relata a sua visita ao Dr. Rudolf Steiner, mestre de teosofia e autor de um livro intitulado Como alcançar o conhecimento dos mundos superiores. Naquela ocasião, Kafka estava interessado pela teosofia e impressionado com as doutrinas do Dr. Steiner. Chegava a suspeitar de que o Dr. Steiner fosse dotado de poderes quase miraculosos. É levado a reproduzir, com respeito, em seu Diário, a seguinte anedota: um dia, uma francesa se despediu do Dr. Steiner dizendo "até breve", e o teósofo lhe respondeu dizendo "adeus" e a francesa morreu dois meses depois...

Pois bem: quando descreve a visita que ele próprio fez ao Dr. Steiner, a despeito da sinceridade de propósitos com que então o procurara, o senso de humor de Kafka não deixa de se manifestar. Kafka conta como expôs longamente ao teósofo as suas preocupações e conclui descrevendo a atitude do Dr. Steiner em face do que lhe expusera: "Ele me escutava com a maior atenção, sem parecer absolutamente me observar, todo entregue às minhas palavras. De vez em quando, dormitava; coisa que considera um meio eficaz para provocar forte concentração. No início, incomodava-o um resfriado silencioso: o nariz corria e ele, pondo um dedo em cada naina, atendia-o sem cessar, enfiando-lhe o lenço adentro". (Diário, 28/03/1911)

Queremos lembrar, ainda, para encerrar este capítulo, uma outra anotação do Diário: a de 27 de janeiro de 1922. Doente e já com quase 40 anos (ele não pensou que chegaria até lá), Kafka se instala em um hotel de Spindelmüche. Ao se registrar como hóspede, passa-lhe pela cabeça uma impressão absurda: a de que o haviam confundido com o personagem principal de um seu romance inédito (O Processo). É esta impressão que Kafka registra no Diário com agudo senso de humor: "Embora eu tenha dado diversamente o meu nome na portaria do hotel, embora eles até já tivessem escrito corretamente o nome que lhes dei, foi Joseph K o nome que apareceu inscrito no quadro lá de baixo. Devo esclarecê-los? Ou devo deixar que eles me esclareçam?

2 comentários:

  1. Querido mestre. Sou realmente virgem de Kafka, e vou providenciar a leitura do mesmo. Me identifiquei completamente com a alienação de mim mesma. Incrível né? Mas tenho me reconhecido assim.
    bj

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  2. Lionel!!!

    Achei seu blog por acaso,procurando sobre O Tablado e fiquei feliz de encontrá-lo!!!
    Não sei se lembra de mim....Maria Clara Machado(loira,de oculos...a Massachusetts,fui sua aluna em 2005...cheguei a ensaiar mas sai uma semana antes da peça. Por varios motivos tive que abandonar tudo derepente....uma pena,pois adorava suas aulas e voce. Sempre tão carinhoso,sincero,gentil....com aulas inteligentes,passando o verdadeiro proposito do curso que e a improvisação! Lembro ate hoje das musicas no inicio de cada aula e de todas as suas histórias de vida!
    QUE SAUDADES DE VOCE!
    Enfim,foi bom ter achado seu blog e poder te falar isso tudo...desde a epoca que tive que abandonar a peça,queria ter te procurado mas fiquei sem graça pois foi tudo tao derepente e acabei deixando voces na mao.
    Te vi em Viver a Vida e deu pra amtar um pouco da saudade!!!
    Bom,gostaria muito de reencontra-lo e quem saber ser sua aluna de novo!!!
    Caso tenha lembrado de mim e queira entrar me contato segue meu email:machadoclaramaria@gmail.com

    Beijos,

    Maria Clara

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