Teatro/CRÍTICA
"Tomo suas mãos nas minhas"
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Paixão e delicadeza no Leblon
Lionel Fischer
Têm-se como certo que a radicalidade - qualquer que seja ela - não é muito produtiva, posto que, apoiada em extremos, inviabilza o diálogo e engessa o pensamento. E isto não deixa de ser verdade. Em contrapartida, em alguns aspectos a radicalidade torna-se imperiosa. Por exemplo: eu não posso ser medianamente contra uma criança passar fome. Tenho que ser radicalmente contra isso. E se não sou, é porque compactuo com essa abjeção ou ela me é indiferente, sendo a indiferença, como todos sabemos, o mais pérfido dos sentimentos.
Mas antes que alguém imagine que pretendo desenvolver uma tese sobre o assunto, faço questão de ressaltar que o prólogo acima se deve a uma radicalidade minha, qual seja: excluindo os gregos e Shakespeare, considero Tchecov (1860-1904) o dramaturgo mais brilhante dentre todos os demais, autor de obras-primas extraordinárias, tais como "A gaivota", "Tio Vãnia", "As três irmãs" e "O jardim das cerejeiras" - afora ter sido um contista não menos fantástico.
Mas o espetáculo em questão não aborda nenhuma de suas peças, tampouco teatraliza um de seus contos, e sim constrói uma narrativa baseada nas mais de 400 cartas que Tchecov trocou com sua mulher, a atriz Olga Knipper (uma das estrelas do Teatro de Arte de Moscou), com quem viveu os últimos seis anos de sua breve existência. E a abundância de cartas se deve ao fato de que Tchecov, sempre combalido pela doença (morreria de uma infecção pulmonar), se via obrigado a passar longas temporadas em lugares menos frios do que Moscou, e na maior parte delas sem a companhia da esposa, já que a mesma tinha que atuar quase sempre na gélida capital.
Em cartaz no Teatro do Leblon, "Tomo suas mãos nas minhas" chega à cena com dramaturgia de Carol Rocamora, tradução, adaptação e direção de Leila Hipólito e elenco formado por Roberto Bomtempo e Miriam Freeland, ele no papel de Tchecov e ela no de Olga, sendo que a atriz, em breves passagens, encarna alguns dos mais belos papéis criados pelo autor.
Mesmo para os que não conhecem a vida e trajetória artística de Tchecov, o presente espetáculo haverá de causar profunda emoção. A começar pelo trabalho de dramaturgia feito por Carol Rocamora, que constrói uma estrutura narrativa (é possível que em estreita parceria com a diretora) que mescla informação, contracena "à distância" - quando os personagens lêem e ao mesmo tempo respondem às mútuas cartas, não raro sem se olharem - e passagens em que ambos estão efetivamente no mesmo espaço. Tal estrutura tem o curioso mérito de nos aproximar e simultaneamente nos afastar do que vemos e ouvimos, quem sabe com o objetivo de evitar que uma história tão linda, mas ao mesmo tempo tão dramática, enveredasse para o melodrama, o que certamente minimizaria seu alcance.
Com relação ao espetáculo, Leila Hipólito impõe à cena uma dinâmica feita de delicadeza e paixão, criando marcas poéticas e outras tantas que nos geram desconfortável angústia, mas sem jamais investir em um tom exacerbado, o que, por sinal, nunca está presente nas obras de Tchecov. Afora isso, cabe registrar sua excelente adaptação e as ótimas atuações que extraiu do elenco.
Na pele de Tchecov, Roberto Bomtempo exibe desempenho irretocável, em especial no tocante ao seu excelente trabalho vocal e corporal à medida que a doença do autor se agrava, e também no que diz respeito ao inabalável humor e otimismo de Tchecov, mesmo nos momentos em que o trágico se avizinhava de forma inexorável. A mesma eficiência está presente na atuação de Miriam Freeland, que materializa uma figura ao mesmo tempo doce e determinada, em permanente divisão entre sua carreira e sua vontade de estar sempre ao lado do marido. Certamente Tchecov e Olga formaram um belo casal, o mesmo aplicando-se a Roberto e Miriam, casados no palco e na vida real.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o belíssimo trabalho realizado por todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Fernando Mello da Costa e Rostand Albuquerque (cenografia), Fernando Nello da Costa (objetos de cena e adereços), Kika Lopes (figurinos), Maneco Quinderé (iluminação), Alexandre Pereira (trilha musical), Paula Águas (preparação corporal) e Leila Hipólito (tradução e adaptação).
TOMO SUAS MÃOS NAS MINHAS - Dramaturgia de Carol Rocamora. Tradução, adaptação e direção de Leila Hipólito. Com Roberto Bomtempo e Miriam Freeland. Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
segunda-feira, 22 de março de 2010
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Caro Leonel.
ResponderExcluirSou fã de sua inteligência,cultura, sensibilidade e texto. Fiquei comovidíssima com sua crítica. Fizemos este espetáculo com grande paixão por Tchekhov,pelo lindo texto da Carol e por amor ao teatro. Obrigada Leila Hipólito. PS: tenho traduzido mais alguns trechos de cartas que não estão na peça no blog tomosuasmaosnasminhas.blogspot.com caso vc se interesse