quarta-feira, 17 de março de 2010

Breve passagem de um livro fundamental:
A preparação do ator,
de Constantin Stanislavski


Representação Mecânica

Com o auxílio do rosto, da mímica, da voz e dos gestos, o ator mecânico apenas oferece ao público a máscara morta do sentimento inexistente. Para tanto foi elaborado um grande sortimento de efeitos pitorescos que pretendem representar toda espécie de sentimentos por meio de recursos exteriores. Alguns desses clichês estabelecidos ficaram tradicionais e são transmitidos de geração a geração, como, por exemplo, espalmar a mão no peito para exprimrir amor, ou escancarar a boca para dar idéia de morte. Outros são tomados, já prontos, de atores contemporâneos de talento (como esfregar a testa com as costas da mão, tal qual fazia Vera Komissarjevskaia nos momentos trágicos). Outros, ainda, são inventados pelos atores para seu próprio uso.

Há modos especiais de recitar um papel, métodos de dicção e de fala. Por exemplo: usar tons exageradamente agudos ou graves nos momentos críticos do papel, executando-os com um tremolo especificamente teatral ou com especiais adornos declamatórios. Há, também, processos de movimentação física (o ator mecânico não anda; desfila pelo palco), de gestos e ação, de movimentação plástica. Há métodos de exprimir todos os sentimentos e paixões humanas (mostrar os dentes e revirar o branco dos olhos quando se tem ciúmes ou esconder os olhos e o rosto entre as mãos ao invés de chorar; quando desesperado, arrancar os cabelos). Há modos de imitar toda espécie de tipos e pessoas de diferentes classes sociais (os camponeses cospem no chão, assoam o nariz na aba do paletó; os militares fazem tinir as esporas; os aristocratas ficam brincando com as suas lorgnettes). Alguns outros caracterizam épocas (gestos operísticos para a Idade Média, passinhos miúdos para o século XVIII). Esses métodos mecânicos já prontinhos podem ser facilmente adquiridos por meio de exercícios constantes, de modo a se tornarem uma segunda natureza.

Com o tempo e o hábito constante até as coisas deformadas e sem sentido se tornam familiares e caras. Como, por exemplo, o consagrado erguer os ombros da Opéra-Comíque, as velhas que procuram passar por moças, as portas que se abrem e fecham automaticamente quando o herói da peça entra ou sai. O balé, a ópera e, principalmente, as tragédias pseudo clássicas estão repletas dessas convenções. Com esses métodos sempre imutáveis esperam reproduzir as mais complexas e elevadas experiências dos heróis. Por exemplo, arrancando o coração do peito nas horas de desespero, sacudindo os punhos na vingança ou erguendo as mãos aos céus em prece.

Segundo o ator mecânico, o objetivo da fala teatral e da movimentação plástica - como a doçura exagerada nos momentos líricos, a opaca monotonia na leitura da poesia épica, os sons sibilantes para exprimir o ódio, as falsas lágrimas na voz para representar sofrimento - é salientar a voz, a dicção e os movimentos, tornar os atores mais belos e dar mais força ao seu efeito teatral. Infelizmente, no mundo, o mau gosto é muito mais comum do que o bom gosto. Ao invés da nobreza, foi criada uma espécie de ostentação vistosa, boniteza ao invés de beleza, efeito teatral em lugar de expressividade.

De todos os fatos o pior é que os clichês preencherão todos os pontos vazios do papel que não estiver solidamente impregnado do sentimento vivo. Mais ainda, os clichês muitas vezes se antepõem ao sentimento e lhe barram a passagem. É por isto que o ator precisa proteger-se com o máximo de consciência contra esses recursos. Isto se aplica até mesmo aos atores talentosos, capazes de verdadeira criatividade.

Por maior habilidade que o ator demonstre na escolha das convenções de cena, ser-lhe-á impossível comover os espectadores por intermédio delas, devido à qualidade mecânica que lhes é inerente. Terá de contar com algum meio suplementar para despertá-los e então busca refúgio naquilo que nós chamamos de emoções teatrais. Estas são uma espécie de imitação artificial da periferia dos sentimentos físicos.

Cerrando os punhos com força e endurecendo os músculos de seu corpo ou respirando espasmodicamente, você poderá provocar em si mesmo um estado de grande intensidade física. O público, muitas vezes, pensa que isto é a expressão de um forte temperamento movido pela paixão. Atores do tipo nervoso conseguem despertar emoções teatrais dando corda, artificialmente, aos nervos. Isto causa a histeria teatral, um êxtase doentio, que costuma ser tão desprovido de conteúdo quanto a excitação física artificial.

Um papel construído à base de verdades cresce,
ao passo que fenece o que se baseou em clichês.

Nenhum comentário:

Postar um comentário