segunda-feira, 22 de março de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Blitz"

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Uma ferida que não fecha

Lionel Fischer


Durante uma blitz em um colégio tido como extremamente violento e perigoso, já que nele existiam gangues rivais e muitos alunos levavam armas em suas mochilas, um menino de 12 anos é morto pela Polícia Militar. Como estava ao lado do menino nesse momento, o cabo Rosinha é responsabilizado pela morte. Mas ele nega, embora sua esposa, Helô do Pãozinho, não lhe dê crédito. E jamais o tenha perdoado por algo que tem como certo.

Quando a peça se inicia, vemos a mulher, ansiosa e angustiada, imóvel diante de uma mesa, sobre a qual estão colocados dois pratos e uma tigela contendo uma sopa. Ao lado da mulher, uma pequena mala. Cansada de esperar, num dado momento ela toma a sua sopa. O cabo Rosinha entra, senta-se à mesa. Mas permanece em silêncio, até explodir num gesto inesperado e de extrema violência, atirando longe a dita tigela. A partir daí, entramos em contato com um texto que, embora muito curto, aborda de forma sensível e pertinente alguns temas da maior relevância. Em cartaz no Porão da Laura Alvim, "Blitz" leva a assinatura de Bosco Brasil, estando a direção a cargo de Ivan Sugahara e o elenco formado por Janaína Ávila e Marcello Escorel.

Disposta a abandonar o marido, levando a platéia a crer que em função de sua violência, logo percebemos que muitas outras questões estão em causa. O casal perdeu um filho quando ele tinha sete anos, ao que parece por ser hemofílico, como o pai, a quem, ainda que involuntariamente, caberia a responsabilidade por tal perda. E esta ferida jamais cicatrizara.
E se somada à suposta violência do marido, conluímos que Helô estaria tomando a decisão correta ao anunciar que iria embora para sempre.

No entanto, em meio a muitos silêncios, eventuais explosões e súplicas, exacerbadas tentativas feitas pelo cabo Rosinha no sentido de demonstrar que não apenas não matou o garoto, como também tem horror à violência, num dado momento somos por ele informados de que, numa blitz em um morro, dera dois tiros em um bandido e que este, pouco antes de morrer, se concentrara numa pequena ferida em um dos dedos, tentando estancar com a boca o sangue que teimava em escorrer, como fazem os hemofílicos quando se cortam. Mas isso é apenas o preâmbulo do essencial: a revelação feita a Rosinha de que, a partir deste fato, sempre andara com o revólver descarregado, assim demonstrando que não poderia ter matado o dito garoto. Então, a barreira que separava o casal, aparentemente intransponível, começa a ser desfeita.

Estamos, portanto, diante de um texto que fala de violência, intolerância, medo, idéias preconcebidas e que se cristalizam como verdades, enfim, de muitas das mazelas de que padecemos, seja qual for nossa classe social, seja qual for a profissão que exercemos, seja qual for nossa crença ou não em um Deus capaz de tudo compreender e, em alguns casos, segundo dizem, tudo perdoar. Cabo Rosinha e Helô do Pãozinho, em última instância, talvez possam e devam ser encarados mais como símbolos de uma realidade intolerável do que propriamente como personagens individualizados. E nisto reside a enorme grandeza do presente texto, assinado por um dos dramaturgos mais sensíveis e politizados deste país.

Com relação ao espetáculo, Ivan Sugahara realiza aqui um de seus melhores trabalhos, evidenciando uma compreensão perfeita das propostas do autor, trabalhando de forma exemplar os tempos rítmicos, os muitos silêncios (sempre preenchidos de grande carga emocional) e também valorizando na medida certa as explosões do casal. Este, cumpre registrar, interpretado de forma irretocável pelos dois intérpretes. Janaína Ávila consegue valorizar todas as características de uma personalidade atormentada pela dúvida e pela mágoa, com Marcello Escorel demonstrando, mais uma vez, porque merece ser considerado um dos melhores atores de sua geração, já que tudo que faz nos convence por sua enorme capacidade de entrega e por sua inteligência cênica, que o faz optar por caminhos que causariam pânico em atores apenas medianos e que se contentam com o óbvio. Sem dúvida, uma atuação brilhante.

Na equipe técnica, Natália Lana assina uma cenografia simples e despojada, mas que atende a todas as necessidades da montagem. Renato Machado ilumina a cena valorizando todos os climas emocionais em jogo, sendo corretos os figurinos de Patrícia Muniz e a trilha original de Rebello Alvarenga.

BLITZ - Texto de Bosco Brasil. Direção de Ivan Sugahara. Com Janaína Ávila e Marcello Escorel. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.

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