quinta-feira, 15 de abril de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Do fundo do lago escuro"

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Comovente e hilariante autobiografia


Lionel Fischer


"O Brasil de 1950 visto através do espelho de uma família carioca, regida por uma severa matriarca, ouvinte assídua dos discursos de Carlos Lacerda. A peça narra um dia na infância de Rodriguinho, filho de Conceição, neto de D. Mocinha, matriarca exemplar. Seu pai, Henrique, é o rapaz pobre que entrou para a família. Seu único pecado é a ambição. Orlando é o tio, bêbado e lúcido. Embora com 40 anos, vive às custas da mãe. No mesmo dia em que morre a cachorrinha de Rodrigo, que comeu as naftalinas que a avó insiste em botar nos armários, vem à tona o fato de que Henrique, como procurador de D. Mocinha, vendeu sem permissão dois terrenos da severa senhora. Tudo ocorre sob a expectativa do discurso de Carlos Lacerda, em meio às tensões do momento que precedeu a queda de Getúlio Vargas".

Extraída do ótimo e abrangente release que nos foi enviado, a sinopse acima retrata com precisão o contexto essencial de "Do fundo do lago escuro", de autoria de Domingos Oliveira. A peça, em cartaz no Teatro das Artes, chega à cena com direção do autor e elenco formado por Paulo Betti (Henrique), Domingos Oliveira (D. Mocinha), Priscilla Rozenbaum (Conceição), Ricardo Kosovski (Orlando), Fernando Gomes (Manoel), Renata Tobelem (Iracema) - os dois últimos empregados da casa - José Roberto Oliveira (Pinheiro, amigo da família), Victor Navega Motta (Rodrigo) e João Vithor Oliveira (Ricardo, primo de Rodrigo).

Domingos Oliveira supõe ser esta sua melhor peça. Quanto a mim, não tenho a menor dúvida. E minha opinião não se prende tanto a possíveis paralelos - certamente pertinentes - entre a família em questão e o momento vivido pelo país na época, mas à capacidade do autor de materializar suas recordações a elas conferindo um caráter universal. Partindo-se da premissa de que não escolhemos nossa própria família, torna-se inevitável conviver com diferenças mais difíceis de administrar do que aquelas que ocorrem em um outro contexto. Pode-se, por exemplo, mandar às favas um patrão autoritário que nos maltrata, mas é bem mais complexo fazer o mesmo com alguém com quem temos laços de sangue, com alguém que fez parte da nossa história desde sempre, ainda que essa história possa eventualmente conter mais lágrimas do que risos.

E o que me parece mais contundente e emocionante neste texto é que ele mostra, por um lado, que todos os personagens (ou a maioria) têm seus conflitos internos, assim como conflitos com os demais personagens, mas ainda assim, em meio a tantas diferenças, fica evidente a força dos sentimentos que os une, capaz de ao menos apaziguar temporariamente as muitas contradições e ameaças de ruptura. Não estamos, evidentemente, diante de uma família abençoada com permanente felicidade, plena de harmonia e que possa servir de exemplo. Mas será que alguém possui uma com tais predicados?

É óbvio que não. Mas isso não significa que a convivência familiar seja sempre um martírio, que não contenha momentos de cumplicidade e parceria, amor e compaixão, solidariedade e identificação. E negar essa possibilidade equivale a acreditar ser possível levar um barco sem temporais, ou imprecar contra o oceano pela inconstância de suas marés. A vida, seja em família ou não, possui uma dialética que pressupõe alternâncias de múltiplas naturezas, que muitas vezes escapam ao nosso controle, mas são elas - sobretudo as mais amargas - que possibilitam salutares transformações.

Contendo ótimos personagens, temas de grande pertinência e uma trama que prende a atenção do espectador desde o início, "Do fundo do lago escuro" chega à cena com ótima versão de Domingos Oliveira, cabendo destacar a fluidez da encenação, o preciso trabalho no tocante aos tempos rítmicos e a capacidade do autor/diretor de extrair irrepreensíveis atuações de todo o elenco. Mas antes de esmiuçá-las, cabe uma breve reflexão sobre a opção de Domingos de representar D. Mocinha.

A primeira hipótese (risível) seria a de que não encontrou uma atriz capaz de interpretar a personagem, pois todos sabemos que podemos carecer de tudo, menos de grandes intérpretes - de ambos os sexos. A segunda hipótese (também risível) seria a de que Domingos, na qualidade de autor/diretor, "resolveu fazer a personagem e pronto". Restaria uma terceira: o desejo de encarnar uma mulher de suma importância em sua vida, enxergando-a agora de dentro e não de fora, como fizera em sua infância. Trata-se, sem dúvida, de uma escolha corajosa, sujeita a múltiplos "bombardeios". Seja como for, tudo o que tenho a dizer sobre tal opção é que Domingos está engraçadíssimo no papel, sem com isso deixar de valorizar suas demais características, dentre elas o curioso pragmatismo de D. Mocinha e sua nostalgia de um tempo menos conflituoso do que aquele que vive no presente.

Com relação aos demais atores, Paulo Betti, Priscilla Rozenbaum, Fernando Gomes, Tatiana Muniz, José Roberto Oliveira, Victor Navega Motta e João Vithor Oliveira exibem atuações seguras e convincentes. Mas gostaria de ressaltar a excelente performance de Ricardo Kosovski, que esgota todas as possibilidades de seu amargo, cínico e lírico pesonagem, assim como a de Renata Tobelem, absolutamente hilariante na pele da criada.

Na equipe técnica, Ronald Teixeira assina uma cenografia expressiva e funcional, a mesma expressividade presente na sensível luz de Maneco Quinderé, nos figurinos de Kika Lopes e na trilha sonora do diretor. Gostaria ainda de registrar o excelente trabalho de preparação corporal feito por Joana Ribeiro e Marito Olsson-Gorsberg com Ricardo Kosovski, certamente determinante para que o ator exibisse uma performance tão brilhante.

DO FUNDO DO LAGO ESCURO - Texto e direção de Domingos Oliveira. Com Domingos, Priscilla Rozenbaum e outros. Teatro das Artes. Segunda a quarta, 21h. Quinta, 21h30.

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