quinta-feira, 14 de abril de 2011

Maria Clara Machado


Esta noite sonhei com Maria Clara Machado. E sempre que isso acontece, é um sonho povoado de risos - para os que não tiveram o  privilégio de conviver com a fundadora do Tablado, devo informar que ela era a maior palhaça que já vi. Seja como for, o fato é que me deu uma saudade enorme, indescritível, quase física dessa mulher extraordinária e artista absolutamente genial. Então, partilho agora com vocês alguns fragmentos do livro O Teatro e Eu, por ela escrito e lançado em 1991 pela Editora Agir. (LF)

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Mãe - minha mãe era bonita e apaixonada por meu pai. Os dois às vezes conversavam na mesa em francês. Ou estavam falando mal dos criados ou contando algum fato proibido às crianças. Até hoje a palavra amant me lembra algum caso na época terrivelmente escandaloso de alguém que tinha um amante.

Perda - minha mãe tinha 28 anos quando esperou o sexto filho. Nasceu um menino, mas ambos morreram. Isto foi em 1930. Eu tinha nove anos. Era estranho ser tão abraçada e beijada sem saber por quê. Ou melhor, eu sabia, mas tinha que guardar para mim. Para não quebrar a regra do silêncio sobre o desaparecimento de minha  mãe, me tranquei no banheiro e durante muito tempo chorei sozinha por alguma coisa que não devia saber - para me pouparem do sofrimento, suponho. Até luto nós botamos - mas não se tocava no assunto. Estranha psicologia! Precisei de 20 anos de análise para me livrar do fantasma da perda.

Sexo -  o despertar do sexo foi cheio de medos e romantismo. Enquanto as colegas faziam coleção dos retratos de ídolos da época, eu me apaixonava por todos os homens bonitos que via. No cinema, nas praias, nas revistas. Mas sempre de longe, sofrido, romântico.

Religião - a religião me fazia imaginar as ações mais incríveis. Além de colocar milho no sapato, para sofrer um pouco por amor a Jesus, eu queria ser missionária; mas uma missionária diferente. Ia tomar um avião cheio de bíblias e despejá-las na selva para os índios se converterem.

Filhos - até bem tarde eu não sabia como se faziam filhos. Achava que um beijo de amor era o bastante. Um dia vi minha irmã ser beijada e fiquei aflitíssima. Achei que ela estava grávida.

Bandeirante - a convivência com o bandeirantismo me deu um grande espírito de grupo, de camaradagem, de simplicidade, de valorização da coragem e espírito de aventura. Se naquela época as aventuras eram reais, físicas, como subir em mastros de navios de mais de 30 metros, ou viajar de caminhão até o Paraguai, ou tomar banho em rios barrentos por este Brasil afora, revivendo minha infância na fazenda, aquela coragem mais difícil que é a coragem de viver, de enfrentar o cotidiano com todas as angústias próprias da adolescência, foi também fortificada.

Paixão - uma vez em Paris me apaixonei por um estudante de medicina francês. Ele era muito bonito e muito solicitado. Era o diretor de um espetáculo que fizemos na Cité Universitaire, onde morávamos. Quando me convidou para sair tive tanto medo que durante a viagem de táxi que fizemos da Cité até Montmartre ele  tentasse me beijar, que o fiz ele recitar poemas de Verlaine. Aproveitei da vaidade dele para conservá-lo à distância.

Casa - como meu pai era crítico de arte e amigo de pintores e intelectuais, minha casa ficou famosa por receber toda a espécie de gente. De escolas de samba até companhias entrangeiras de balé e teatro, os domingos em minha casa ficaram conhecidos como um centro de encontros entre gente interessante.

Medo - meu pai gostava de conversar. Tinha o dom de suportar papos infindáveis de toda a espécie de gente. Quando perguntavam a ele por que sendo marxista convicto deixava as filhas serem educadas em colégios de freiras, ele respondia que ainda era cedo para as filhas serem comunistas. Mas cá para mim, acho que ele tinha era medo. A moral cristã era mais garantida para conservar suas seis virgenzinhas protegidas.

Educação - havia uma hipocrisia generalizada numa educação vitoriana numa casa onde freqüentavam Pagu e Oswald de Andrade. Onde a conversa era existencialista, surrealista, moderna, livre, mas a vida em família era regida pelos princípios do colégio de freiras. Buscava desesperadamente o equilíbrio porque admirava muito meu pai. Para mim ele era a pessoa mais sábia que eu conhecia. A solução foi me afastar.

Polícia - de 1951 para cá tive o prazer de conviver com diretores que muito me ensinaram. Martim Gonçalves tinha o dom do detalhe. Tudo tinha que ser bem feito, estético. Ele tinha tanto amor ao detalhe que na hora de estrear as peças ficava em pânico. Nada nunca estava pronto para ele. Uma vez íamos estrear Sara e Tobias, de Paul Claudel. Ele fez tudo para adiar a estréia. Fui contra. Na noite do ensaio geral ele me telefonou dizendo que chamaria a polícia para não deixar a peça entrar em cartaz. Então, no mesmo telefonema, eu respondi que aproveitaria a polícia para mandar prendê-lo!

Palhaço - Descobri uma tremenda vocação para liderar, para mandar, organizar, planejar e ser palhaço. Uma noite cheguei mais cedo para o ensaio. Então resolvi me disfarçar de mendiga. Maquiagem, peruca, roupas velhas e um pau na mão, saí para a rua à espera dos atores. Cada um que chegava eu saía correndo atrás e o ameçava com o porrete. Foi uma correria daquelas! Só me identifiquei quando eles já estavam morrendo de medo e a ponto de chamarem a polícia. Estava exausta. A brincadeira durou quase duas horas, mas eu estava feliz.

100 páginas - doutra vez chegou à nossa sala uma moça querendo comprar o livro que escrevi com Marta Rosman, 100 Jogos Dramáticos. Ela me pediu para comprar o livro 50 Jogos Dramáticos.  - 50 Jogos Dramáticos? - perguntei. Ela respondeu que sim. Então parti o livro pela metade e entreguei à moça. Ela certamente me achou maluca, mas o pessoal na sala morreu de rir. Até hoje contam esta história para não parecer que sou séria demais, acho.

Ação - as explicações pseudoprofundas de alguns teóricos do teatro sempre me aborreceram. Quando ensaio uma peça procuro ir diretamente à ação. É através da ação que passamos ou não a emoção. É sentir que nos faz viver.

Vaidade - sempre achei que o ator é meio infantil. A vaidade, que é a característica mais marcante no teatro, é simpática por que pertence a todos nós. O orgulho separa, afasta o homem de seu meio, torna-o solitário. A vaidade os une mesmo que seja para brigar.

Conhecimento - o teatro é o lugar onde mais se tem oportunidade de conhecer o outro. Por trás do faz-de-conta aparecem todas as qualidades e defeitos do homem-ator.

Convite - se a doença e o cansaço nos espreitam a todos e a irmã morte, como diria São Francisco de Assis, está no fim do caminho, a vida ainda nos convida à alegria do convívio com os amigos, à santa preguiça das leituras inconseqüentes a que temos direito, à música dos mestres e por que não à escuta atenta aos problemas e idéias dos jovens que vêm surgindo com soluções para tudo mas com as mesmas ansiedades e dúvidas da Maria Clara de 1950.
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Um comentário:

  1. Lindo isso!Adoro Maria Clara Machado. Pena não tenha conhecido pessoalmente. Também meu pai nem deixaria chegar perto de alguém assim tão livre e liberdade era tudo que eu queria.Parabens. Abraços

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