Teatro/CRÍTICA
"Cozinha e dependências"
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Amargo reencontro
Lionel Fischer
Todo reencontro, como sabemos, pode ser maravilhoso ou deplorável, sobretudo quando houve um longo período de afastamento. E por duas razões básicas: se o afastamente se deu de forma civilizada, nossa expectativa é a de que o reencontro tem tudo para ser agradável. Mas se ocorreu o inverso, aí acalentamos a esperança de que o outro possa ter mudado, ou que nós mesmos tenhamos nos modificado, para que então as penosas questões de outrora não venham novamente a aflorar. Seja como for, trata-se de uma situação delicadíssima.
No presente caso, "...cinco amigos se reencontram após uma década. Os anfitriões Martine e Jacques hospedam temporariamente Georges, o amigo intelectual deprimido, e decidem oferecer um jantar a Charlotte e seu marido, um famoso apresentador de TV. Fred, irmão de Martine, e sua noiva Marilyn também comparecem. A tensão no ambiente começa com o atraso de duas horas do principal casal convidado e se estende durante o jantar, o que leva Georges, que não esconde ressentimentos do passado com Charlotte e o marido, a se comportar de forma arredia e descortês...
O clímax do desconforto acontece quando Fred, jogador e malandro incorrigível, propõe ao convidado ilustre uma partida de pôquer a dinheiro, que se prolonga indefinidamente na sala e faz explodir na cozinha as mágoas acumuladas do passado: Georges e Charlotte discutem o fracasso da relação que tiveram no passado, enquanto Martine e seu marido se desesperam, envergonhados, com a situação embaraçosa em que se meteu o apresentador de TV, presa fácil para o jogo de Fred".
Os dois parágrafos acima foram extraídos do release que me foi enviado, e sintetizam o enredo de "Cozinha e dependências", dos mesmos autores de "Um dia como os outros": Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri. Os dois espetáculos estão sendo exibidos no Teatro Poeira, sob a mesma direção (Bianca Byington e Leonardo Netto) e com o mesmo elenco, exceção feita a Analu Prestes, que só participa de "Um dia como os outros": Bianca Byington (Martine), Márcio Vito (Jacques), Kiko Mascarenhas (Georges), Silvia Buarque (Charlotte) e Leandro Castilho (Fred), cabendo registrar que os personagens Marilyn, o marido de Charlotte e o apresentador de TV não aparecem na cena, sendo apenas mencionados.
Ao contrário da peça já analisada, e ainda que contendo algumas passagens engraçadas, nesta o clima é bem mais dramático, e os desencontros, mágoas e agressividades predominam. Jacques e Martine, por exemplo, formam um casal que, se um dia se amaram, no momento apenas se suportam; ele, sempre irascível, destemperado e rígido; ela, completamente perdida em seu presente, desejando conferir um novo rumo à sua existência, mas sem a indispensável determinação para materializá-lo.
Georges, o intelectual deprimido, como já foi dito, é um personagem tipicamente francês - posso estar enganado, mas de uma maneira geral os intelectuais franceses, bem sucedidos ou não, nutrem fervorosa paixão pela melancolia, o que equivale a dizer que flertam muito mais com a morte do que com a vida. Quanto a Charlotte, pessimamente casada com um homem poderoso, tenta inutilmente compensar o vazio desta relação mantendo um caso. E no tocante a Fred, este é o único que escapa à tensão generalizada, em função de sua personalidade totalmente irresponsável e inconseqüente.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e levantando pertinentes questões sobre alguns temas já mencionados, "Cozinha e dependências" recebeu segura versão de Bianca Byington e Leonardo Netto. Mas o grande destaque fica por conta da capacidade dos intérpretes de encarnar, de forma irrepreensível, personagens completamente diferentes dos que interpretaram em "Um dia como os outros". Ou seja: só fazem ratificar minha crença absoluta de que nossos atores nada ficam a dever àqueles que, por terem nascido em países do Primeiro Mundo, adquirem uma visibilidade e um prestígio que os nossos também teriam nas mesmas condições.
Na equipe técnica, Emília Duncan criou novos figurinos que, a exemplo dos anteriores, estão em plena consonância com a personalidade e condição social dos personagens. E valendo-se praticamente dos mesmos elementos cenográficos, Marcelo Lipiani e Lidia Kosovski criaram uma ambientação em total sintonia com o contexto. Paulo César Medeiros ilumina a cena com sensibilidade e Leonardo Netto responde por uma trilha sonora eficiente, cabendo também destacar a fluência da tradução de Bianca Byington e Bárbara Duvivier.
COZINHA E DEPENDÊNCIAS - Texto de Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri. Direção de Bianca Byington e Leonardo Netto. Com Bianca Byington, Leandro Castilho, Kiko Mascarenhas, Silvia Buarque e Márcio Vito. Teatro Poeira. Quinta, 21h. Sábado e domingo, 19h30.
segunda-feira, 4 de abril de 2011
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