Bebês irados
de Lionel Fischer
Personagens
B1
B2
B3
B4
B5
(Os cinco bebês estão sentados, em semicírculo, cada um instalado em seu bebê-conforto. Quatro bebês estão inquietos com a expressão irada do quinto)
B1 – Mas afinal, Antônia Eugênia: a que se deve essa expressão tão carregada?
B2 – Sim, por que essa cólera, que chega mesmo a deformar teus delicados traços?
B3 – Quando de bom humor, em tudo te assemelhas a uma princesa. Mas agora...
B4 – Partilha conosco aquilo que te inquieta. Afinal, somos amigas há onze meses!?
B5 – É verdade, desde que nascemos. Uma amizade que já dura toda uma vida.
B1 – Mais uma razão para te abrires conosco.
B2 – Além do quê, somos irmãs.
B3 – As únicas quíntuplas do planeta.
B4 – Todas saídas da mesma buceta!?
B5 – É verdade. Da mesma vulva emergimos. Mas tal prodígio em nada aplaca a ira que ora me invade. E ela se deve a muitas causas...
B1 – Terão a ver com as insossas papinhas que mamãe nos impinge glote abaixo?
B2 – Ou com os lencinhos ridículos que ornamentam nossas cabecinhas?
B3 – Ou com as roupinhas que usamos, sempre exibindo variações de um mesmo tom?
B4 – Ou quem sabe com a exasperante curiosidade que despertamos quando ao ar livre?
B5 – A tais martírios já me acostumei e com eles lido com a sábia resignação dos que compreendem a inutilidade de contrariar os desígnios traçados pelo destino.
B1, B2, B3 e B4 – Mas então, irmã querida e irmã mais velha: se contra o destino não te insurges, a que atribuir tal carranca?
B5 – Se no momento minhas feições estão evidentemente deformadas, isto se deve a dois fatores, sendo um deles a ausência de papai. Eu ainda não me conformei totalmente...
B1, B2, B3 e B4 – Pobre homem...ao saber que mamãe dera à luz a cinco meninas, atirou-se da janela da maternidade, se esborrachando contra o solo e tendo morte imediata.
B5 – Era miolo pra tudo quanto é lado...
B1 – Papai estava endividado.
B2 – E não vislumbrava qualquer possibilidade imediata de quitar as dívidas.
B3 – Muito menos de achar um emprego que lhe permitisse sustentar a imprevista prole.
B4 – Então, optou por dar cabo de sua malograda existência.
B5 – E no arborizado pátio permaneceu estendido por muitas horas...
B1, B2, B3 e B4 – Despertando a mórbida curiosidade dos visitantes e de todo o corpo médico.
B5 – Sobretudo dos enfermeiros e enfermeiras, que são sempre muito abelhudos. (Tempo)
B1 – Mas, por favor, irmã!
B2 – Isso já aconteceu há muito tempo!
B3 – Nós temos que aprender a lidar com o inexorável!
B4 – Ficar remoendo o passado torna nebulosa qualquer perspectiva de um luminoso futuro.
B5 – Que seja... falemos então do tempo presente!
B1 – Isso, voltemos à tua carranca.
B2 – Ela certamente não se deve apenas a uma súbita...
B3 – ...e imprevista lufada de saudade do papai...
B4 – ...que, por sinal, nenhuma de nós chegou efetivamente a conhecer.
B5 – É claro que não. Minha carranca tem muito mais a ver com a iminente visita de nosso “tio Flávio!”
B1, B2, B3 e B4 – Tio Flávio? Como assim? Ele está pra chegar?
B5 – Exatamente. E justo hoje, quando completamos onze meses de vida e papai onze meses de morto!
B1, B2, B3 e B4 – Mas estás certa do que dizes?
B5 – Certíssima!
B1, B2, B3 e B4 – Por Deus!? Teria ele a petulância de em nossa residência aparecer justamente num dia em que nos vemos acossadas por emoções tão conflitantes?
B1 – Não só teria como terá! Ouvi quando mamãe falava com ele no celular, ao mesmo tempo em que martirizava minhas orelhas com aquela porra daquele cotonete!
B1, B2, B3 e B4 – Às nossas orelhinhas também impõe o mesmo e cotidiano martírio!
B5 – Mas por que será, irmãs queridas, que todos os nossos orifícios têm que ser diariamente vasculhados?
B1, B2, B3 e B4 – Tanto os de cima como os de baixo!
B5 – De onde vem essa obsessão de remover o menor resquício de um mísero prurido?
B1, B2, B3 e B4 – Temor de variadas infecções, é o que mamãe diz!
B5 – Mas será que ela tem, com relação aos seus próprios orifícios, o mesmo zelo que dedica aos nossos?
B1, B2, B3 e B4 – Não sabemos, Antônia Eugênia. Mas é possível que sim.
B5 – Que seja. Mas voltemos ao tio Flávio.
B1 – Que nem nosso tio de verdade é.
B2 – Ele apenas copula com mamãe.
B3 – Simulando que a namora.
B4 – E por isso tenta angariar nossa simpatia.
B5 – Ele é um cínico e se aproveita da proverbial ingenuidade de mamãe, assim como de seu furor uterino, para manuseá-la a seu bel-prazer. E mamãe parece gostar muito de tal manuseio.
B1 – É o que deduzimos em função de seus gritos.
B2 – Gemidos.
B3 – Arfares.
B4 – E expressões indecorosas.
B1 e B2 – Que atravessam as paredes e chegam até nosso quartinho.
B3 e B4 – Molestando nossos ouvidos e gerando sonhos obscuros.
B5 – Pois é justamente isso o que mais me intriga. Como pode alguém reagir tão favoravelmente a algo que, visto com imparcialidade e distanciamento, só pode ser descrito como a perfeita materialização do ridículo?
B1,B2, B3 e B4 – Como assim, Antônia Eugênia? Por acaso estás insinuando que viste mamãe e tio Flávio...
B5 – Nada insinuo: eu realmente os vi em seu grotesco processo de cópula!
B1, B2, B3 e B4 – Não!!!
B5 – Sim!!!
B1, B2, B3 e B4 – E quando foi isso?
B5 – Há três dias. Todas vocês já haviam se entregado aos delicados braços de Morfeu. Menos eu, atormentada por gases que insistiam em permanecer alojados em meu ventre, gerando insuportável desconforto. Então mamãe me tirou da caminha e começou a gingar comigo na sala, dando-me porradas alternadas nas costas e na barriga, ao mesmo tempo em que me infernizava os ouvidos com aquela merda daquela musiquinha de sempre.
B1, B2, B3 e B4 – “Boi da Cara Preta”!
B5 – Exatamente.
B1, B2, B3 e B4 – É a única cuja letra completa ela sabe.
B5 – Mas ainda que soubesse várias, o objetivo permaneceria inalterado: induzir-me ao sono através do terror!
B1, B2, B3 e B4 – É verdade! Todas as cantigas de ninar, ou pelo menos a maioria, têm como premissa básica a de nos gerar o mais indescritível pânico!
B5 – E então o interfone toca. Mamãe me reboca até a cozinha e eu fico sabendo que tio Flávio está prestes a subir. Atônita e arfante, mamãe fica indecisa quanto ao que fazer, porque até então eu não soltara um mísero arroto ou escasso peido, e obviamente que continuava gemendo e choramingando.
B1, B2, B3 e B4 – E então? Por Deus, irmã, renuncia aos detalhes e faz progredir a narrativa!
B5 – Pois bem: a campainha toca. Ela abre a porta, comigo em seus braços, tio Flávio entra e inteiramente indiferente ao meu óbvio sofrimento, começa a beijar mamãe na boca e em seguida lambe seu pescoço com sua língua estranhamente comprida e pontuda.
B1, B2, B3 e B4 – Ele tem a língua comprida e pontuda?
B5– Tem. E ao mesmo tempo em que beija e lambe mamãe, ele a apalpa em todos os seus quadrantes e profere frases obscenas.
B1, B2, B3 e B4 – Na tua frente!?
B5 – E só depois de saciado em seu ímpeto inicial é que ele se dá conta de que o bizarro amasso tivera por testemunha uma pessoa que sequer completara onze meses.
B1, B2, B3 e B4 – E então? Ele fez o quê?
B5 – O que todos os adultos fazem, estejam ou não arrebatados pelo tesão, sempre que se deparam com uma criança: falou não sei quantas vezes “bilubilú” e toda uma série de variantes debilóides!
B1, B2, B3 e B4 – Beliscou tuas bochechas?
B5 – Beliscou.
B1, B2, B3 e B4 – Te pegou no colo?
B5 – Pegou.
B1, B2, B3 e B4 – Te atirou várias vezes para o alto?
B5 – Atirou, sendo que numa dessas decolagens quase atinjo o lustre principal da sala, o que certamente causaria irreversíveis danos à minha ainda frágil ossatura craniana!
B1, B2, B3 e B4 – E depois?
B5 – Depois me devolveu pra mamãe, ao mesmo tempo em que a obrigou a apalpar sua mais do que visível ereção, dando a entender que a mesma só seria aplacada desde que iniciassem imediatamente o coito.
B1, B2, B3 e B4 – Mas como haveriam de coitar na tua frente? E ainda mais com você gemendo e choramingando?
B5 – Foi o que pensei. Mas então resolvi reprimir o mais possível qualquer exteriorização dos males que internamente me afligiam, pois tive certeza de que, assim agindo, poderia testemunhar o que logo lhes relatarei.
B1, B2, B3 e B4 – Relata logo, irmã!
B5 – Como eu me aquietasse um pouco, mas não totalmente, mamãe me levou para o seu quarto, juntamente com esse bebê-conforto em que ora me vejo instalada. E nele ela me instalou, na esperança de que viesse a adormecer. Sim, pois de nada adiantaria ela me colocar junto de vocês, já que a qualquer momento eu poderia iniciar um berreiro que haveria de interromper o que se avizinhava.
B1, B2, B3 e B4 – Ela deve ter pensado: “É possível que Antônia Eugênia, tendo consciência de que mamãe está pertinho, se comporte como convém, ou seja, ferre no sono para que mamãe possa trepar”.
B5 – Exatamente. Eu percebi tal ardil com absoluta clareza e então comecei a fingir que dormitava. Pois bem: foi o bastante para que mamãe e tio Flávio dessem início a algo impossível de ser descrito em palavras!
B1, B2, B3 e B4 – Mas se assim é, como nos contarás o que ocorreu?
B5 – Talvez me valendo de gestos ou explorando meu potencial mímico!
B1 – Não, irmã!
B2 – Nada de gestos!
B3 – Muito menos de mímica!
B4 – Tens ótimo vocabulário para a tua idade!
B1, B2 e B3 – Utiliza o verbo!
B5 – Pois bem. Desprezando detalhes dispensáveis, o que presenciei resume-se ao seguinte: visando o ápice, mamãe e tio Flávio empreenderam um espantoso contorcionismo seqüencial de piruetas, uma multiplicidade de ações simultâneas que só contribuíam para inviabilizar a beleza que, presumo eu, deveria ser inerente ao ato de amar. Impotentes do gozo pleno, faziam absoluta questão de se converter em algo que poderia definir como um “rocambole incandescente”!
B1, B2, B3 e B4 – Rocambole incandescente?
B5 – Uma espécie de bololô chispante!
B1, B2, B3 e B4 – E chegou a bom termo essa refrega lúbrica?
B5 – Isso eu ignoro. Tudo que sei é que, lá pelas tantas, e depois de proferirem palavras cujo pudor me impede de reproduzir, mamãe e tio Flávio urraram em uníssono, como se integrassem um coral razoavelmente ensaiado. E depois se calaram.
B1, B2, B3 e B4 – E em nenhum momento atentaram para o fato de que este lamentável espetáculo poderia estar sendo assistido por alguém que, além de pequenina, precisava urgentemente se livrar dos gases que a atormentavam?
B5 – Em momento algum levaram em consideração que eu efetivamente precisava arrotar ou peidar.
B1, B2, B3 e B4 – E você? Finalmente conseguiu liberar o que urgia ser liberado?
B5 – Sim. E poderia tê-lo feito antes, mas optei por esperar o término daquele bizarro festival acrobático. Uma vez saciado seu furor uterino, mamãe pousou seu saciado olhar na minha pessoa, que a contemplava com expressão enigmática. Então, depois de um tempo que julguei conveniente, liberei meus tormentos através das vias disponíveis. Mamãe sorriu, Tio Flávio também, sendo que este último ainda teve o descaramento de dizer: “Antônia Eugênia é realmente um encanto de menina”.
B1, B2, B3 e B4 – Filho bastardo, de meretriz oriundo!
B5 – Então mamãe pegou o bebê-conforto, ao qual eu estava acoplada, me levou para nosso quarto, me botou na caminha e ainda me brindou com um trechinho do famigerado “Boi da cara Preta”. Eu simulei que adormecia. E logo ela se escafedeu...(Tempo)
B1 – Que experiência dolorosa, irmã.
B2 – Que experiência dolorosa e marcante, irmã.
B3 – Que experiência dolorosa, marcante e determinante, irmã.
B4 – No que depender de mim, jamais consentirei em me transformar num rocambole incandescente.
B5 – Que nenhuma de nós empreenda contorcionismos seqüenciais de piruetas quando no leito estiver com a pessoa amada.
B1, B2, B3 e B4 – Jamais!
B5 – E se palavras forem indispensáveis, que brotem em delicadas rimas!
B1, B2, B3 e B4 – Rimando foderemos!
B5 – E nunca haveremos de fazê-lo com um homem de língua comprida e pontuda!
B1, B2, B3 e B4 – Nunca! Porque eles não respeitam as crianças! (Toca o interfone)
B5 – É ele!!!
B1, B2, B3 e B4 – É o tio Flávio!!! O que faremos, Antonia Eugênia?
B5 – É muito simples: como ele só vem aqui para foder, é bem provável que já esteja com o membro encrespado, pleno de urgência. Então nós vamos ficar quietinhas, como se adormecidas estivéssemos. Mamãe virá até aqui para conferir se de fato Morfeu já nos arrebatou e uma vez convencida de que tal se deu, em seu quarto se enfurnará na companhia deste abominável fauno, já com suas partes baixas gotejando.
B1, B2, B3 e B4 – Mamãe adora gotejar!
B5 – Então, após alguns minutos de silêncio absoluto e pétrea imobilidade, começaremos a resmungar, inicialmente bem baixinho, mas logo empreenderemos um crescendo que, ao atingir sua plenitude, haverá de acordar toda a vizinhança. E não contentes, simularemos espasmos em tudo semelhantes aos portadores de malária. Em meio a todo este caos, duvido que mamãe reúna condições psicológicas para usufruir o prazer que tanto almeja!
B1, B2, B3 e B4 – Mas...e se tio Flávio não revelar idêntica sensibilidade e ainda assim quiser...(Toca a campainha)
B5 – Se ainda assim ele insistir em consumar o ato e tentar convencer mamãe de que é perfeitamente possível ter prazer com quíntuplas urrando, então só nos restará uma alternativa: abandonaremos nossas caminhas e tal qual uma tropa bem treinada, assaltaremos a alcova e privaremos tio Flávio do asqueroso pedúnculo que ostenta!
B1, B2, B3 e B4 – Mas como nos deslocaremos, se ainda não aprendemos a andar?
B5 – É possível que na hora o consigamos, já que nobilíssima é a causa que nos move!
B1, B2, B3 e B4 – Silêncio, então, posto que em nossa casa o fauno já está!
B5 – E que Deus permita que nossas mãozinhas não tremam, se necessário for colocar em prática a estratégia prevista! (As quíntuplas fecham os olhos. Escutam-se as vozes da Mãe e do tio Flávio, que trocam obscenidades à meia voz. Ele quer ir logo pro quarto, mas a Mãe diz que primeiro precisa conferir se as filhinhas estão dormindo. Ouvem-se passos, ela diz baixinho pra ele que está tudo em paz etc., sempre transmitindo a sensação de que está sendo sarrada. Os passos do casal revelam que ambos se afastam da porta do quarto das quíntuplas. Neste momento, elas abrem seus olhos esgazeados e sorriem malévolas)
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sábado, 10 de janeiro de 2009
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