sábado, 2 de janeiro de 2010

O Teatro e a História
do pensamento educacional

Richard Courtney


A característica essencial do homem é a sua imaginação criativa. É esta que o capacita a dominar seu meio de modo tal que ele supera as limitações de seu cérebro, de seu corpo e do universo material. É este "algo mais" que o distingue dos primatas superiores.

A imaginação criativa é essencialmente dramática em sua natureza. É a habilidade para perceber as possibilidades imaginativas, compreender as relações entre dois conceitos e captar a força dinâmica entre eles. A criança em desenvolvimento tem um primeiro ano de vida que é essencialmente motor; e então - com algumas crianças isso acontece de maneira súbita - ocorre a mudança: passa a jogar, desenvolve seu humor, finge ser ela mesma ou outro alguém.

A criança passou por outras mudanças anteriormente, algumas extremamente importantes, mas este é o desenvolvimento específico que difere o homem de outras criaturas vivas - a habilidade para compreender o ponto de vista de outrem, perceber em uma situação suas possibilidades cômicas, perceber as qualidades inerentes a duas diferentes idéias e a possível ação entre elas.

Fingir ser outra pessoa - atuar - é parte do processo de viver; podemos "fazer de conta", fisicamente, quando somos pequenos, ou fazê-lo internamente quando somos adultos. Atuamos todos os dias: com nossos amigos, nossa família, com estranhos. A imagem mais comum para esse processo é "a máscara e a face": nosso verdadeiro "eu" está escondido por muitas "mascaras" que assumimos no decorrer de cada dia.

Atuar é o método pelo qual convivemos com nosso meio, encontrando adequação através do jogo. A criança pequena, ao deparar-se com algo do mundo externo que não compreende, jogará com isso dramaticamente até que possa compreendê-lo. Podemos observá-la assim atuando várias vezes ao dia. À medida que ficamos mais velhos, o processo se torna cada vez mais interno, até que, quando adultos, passa a ser automático e jogamos dramaticamente em nossa imaginação - a tal ponto, inclusive, que podemos nem mesmo perceber que o fazemos. Logo, o processo dramático é um dos mais vitais para os seres humanos. Sem ele seríamos meramente uma massa de reflexos motores, com poucas qualidades humanas.

Cada época e cada sociedade desenvolve sua própria forma de educação. Em contraposição à Igreja medieval que desenvolveu um sistema educacional voltado para a manutenção do sacerdócio, e ao sistema educacional do século XIX, que realçou determinadas práticas acadêmicas no sentido de prover uma força clerical para a sociedade industrial, precisamos proporcionar uma educação que habilite os homens para desenvolverem suas qualidades humanas. É esta a maior necessidade de nosso tempo.

A crescente especialização de nossa sociedade científica tende a não se concentrar nas qualidades essencialmente humanas. Tanto em nossa educação quanto em nosso lazer precisamos cultivar o "homem total" e nos concentrarmos nas habilidades criativas do ser humano. A imaginação dramática deve ser ajudada e assistida por todos os métodos modernos de educação.

Esta atitude com relação ao processo educativo desenvolveu-se paulatinamente através dos séculos. Dentro da história do pensamento humano, a natureza educacional do jogo dramático tem sido compreendida por vários pensadores em diferentes épocas - mas, em seus próprios termos. A educação esteve relacionada com a estrutura global do pensamento dentro do qual o indivíduo esteve inserido. Assim, a postura de Platão desenvolveu-se a partir do pensamento grego exatamente como Ascham o fez a partir do pensamento renascentista.


O MUNDO ANTIGO

A educação ateniense do século V a.C. baseava-se na literatura, música e esportes. A literatura incluía leitura, escrita, aritimética e declamação das obras dos poetas - particularmente Homero. Este foi a suprema autoridade em religião e letras, e passagens inteiras de sua obra eram decoradas e então recitadas com todos os recursos teatrais - inflexão, expressão facial e gestos dramáticos. A música incluía o estudo do ritmo e harmonia e o domínio da lira e da flauta, enquanto que os esportes recebiam grande incentivo, das corridas ao jogo de bola, da luta de boxe à equitação e dança.

A dança recebia especial ênfase na medida em que era fundamental a todas as religiões e cerimônias dramáticas; sua forma era intensamente dramática e exigia grande habilidade. Cidadãos ricos treinavam o coro das festas religiosas e as crianças, muitas vezes pobres, eram submetidas a um rigoroso programa de poesia, religião, canto e dança - um programa coordenado, de fato, que expressava a harmonia de pensamento do indivíduo através do exercício rítmico.

Além do mais, o próprio teatro foi um importante instrumento educacional na medida em que disseminava o conhecimento e representava, para o povo, o único prazer literário disponível. Os dramaturgos eram considerados pelos professores tão relevantes quanto Homero, e eram recitados de maneira semelhante. O teatro, em todos os seus aspectos, foi a maior força unificadora e educacional no mundo ático.


PLATÃO

Platão considerava que a educação deveria estar calcada no jogo e na não-compulsão, e que:

...as crianças, desde tenra idade, devem participar de todas as formas mais lícitas de jogo, pois se elas não se encontram cercadas de tal atmosfera jamais crescerão para serem bem educados e virtuosos cidadãos.

A educação deve começar desde cedo, mas "de maneira lúdica e sem qualquer constrangimento", principalmente para que as crianças possam desenvolver "a tendência natural de seu caráter'.

Platão divide seu sistema educacional em duas partes: "música" e "ginástica". O uso que faz do termo "musical" é abrangente:

...os mais jovens de qualquer das espécies não podem manter seus corpos e vozes quietos, estão sempre querendo movimentar-se e gritar; uns saltando e pulando, e expandindo-se com esportividade e prazer; outros emitindo todas as formas de grito. Mas, enquanto que os animais não têm nenhuma percepção de ordem em seus movimentos, isto é, de ritmo e harmonia como são chamados, a nós, os deuses, que foram indicados para serem nossos companheiros na dança, nos deram o aprazível senso de harmonia e ritmo; assim eles nos estimularam para a vida, e nós os seguimos dando-nos as mãos em danças e músicas; e estes são chamados coros, que é um termo que expressa naturalmente a alegria. Começaremos, então, com a admisão de que a educação nos é dada primeiramente através de Apolo e das Musas...(para) aquele que sendo bem educado seja capaz de cantar e dançar bem.

A educação "musical", equilibrada com a recreação física, incluía canto, dança e literatura, e deveria ser enfocada a partir da tendência para o jogo. Sua razão para atribuir tal importância a este aspecto é que "ritmo e harmonia submergem mais profundamente nos recessos da alma" e, dessa maneira, discernimento, julgamento, benevolência e justiça se desenvolverão.

Embora Platão advogue por uma educação liberal baseada no jogo, ele não encontra lugar para o teatro em sua República. Para ele, o ideal é a verdade, e a realidade é uma cópia (ou imitação) dela. O teatro está ainda mais longe da verdade, porque imita a realidade. O ator também imita uma personagem - imitar, porém, é transgredir. Além disso, um ator pode ter que imitar uma personagem má, o que pode levá-lo a "contaminar a realidade". O teatro apresenta um grande perigo para a platéia: pode levá-la a sucumbir a emoções que deveriam ser subjugadas.

Ele distingue o jogo, que deveria ser a base da educação, do teatro, que é mau porque é imitação. Embora tenha sido contestado por Aristóteles, a influência de Platão expandiu-se durante a Idade Média, período no qual a obra de Aristóteles esteve perdida.


ARISTÓTELES

Aristóteles também deu destaque ao jogo na educação mas, sendo um cientista, o fez de um modo específico. O movimento lúdico deveria ser encorajado para prevenir a indolência, enquanto que o jogo em geral "conviria não ser nem liberal, nem muito árduo, nem muito ocioso". Era indicado também para o relaxamento "como um remédio". Define esses dois propósitos do jogo porque faz distinção entre entre atividades que têm um fim em si mesmas e podem ser desfrutadas por seus próprios objetivos (que é a felicidade) e aquelas que são recursos para um fim. Como a educação deve preparar para a vida prática e ao mesmo tempo proporcionar lazer, o jogo é de máxima importância. Até aqui, ele estaria de acordo com Platão.

Mas é na Poética, com sua discussão sobre o teatro, que a discordância tem início. A Poética permanece como um dos maiores trabalhos de crítica dramática da literatura mundial, embora seja tanto limitada quanto incompleta. Tem exercido grande influência em todos os períodos da história e não menos hoje, a despeito do fato de que algumas passagens são de origem duvidosa. Oferece uma resposta completa à crítica de Platão ao teatro.

Platão equivocou-se quanto à natureza da imitação, diz Aristóteles. O teatro não imita os fatos mas as idéias abstratas - o ator não imita o Édipo real, mas uma versão idealizada de seu caráter. Personagens dramáticas não são apresentadas como realmente são; a comédia as torna piores e a tragédia as torna melhores do que são na vida real. Além disso, imitação é natural à raça humana:

A imitação é natural no homem desde a infância, sendo esta uma de suas vantagens sobre os animais inferiores, pois ele é uma das criaturas mais imitativas da terra e aprende primeiro por imitação.

E mais, aprender através da imitação é um prazer intelectal:

É também natural para todos deleitarem-se em trabalhos de imitação...embora os fatos em si possam ser penosos de serem vistos, nós nos deliciamos em assistir a suas mais realistas representações na arte...(porque) estar aprendendo alguma coisa é o maior dos prazeres, não apenas para o filósofo mas também para todos os demais homens, por menor que seja a sua capacidade.

Para desenvolver sua tese, Aristóteles introduz sua teoria da Catarse; que a tragédia propicia a "purgação" das emoções:

Uma tragédia...é a imitação de uma ação que é importante, e também, em possuindo magnitude, é completa em si mesma, em linguagem e acessórios agradáveis, cada uma de suas formas empregadas separadamente nas partes da obra, não de forma narrativa, mas dramática; com incidentes despertando piedade e medo, recurso para efetuar sua catarse de tais emoções.

Sua explanação não nos chegou em sua íntegra, e o que temos é decepcionantemente incompleto. Mas é correntemente aceito que Aristóteles considerava que as emoções despertadas pela tragédia purgavam a alma como um remédio. Ao testemunhar uma tragédia, emoções impuras são experimentadas e dessa maneira expurgadas, de modo que nobres emoções de piedade e medo são realçadas. A influência da teoria da catarse foi dupla; primeiro, provendo o drama de um significado emocional; e, segundo, definindo a atitude trágica como contendo os elementos opostos de piedade e medo. (Kierkegaard preferiu tristeza e dor, I. A. Richards adotou piedade e terror, e outros escritores usaram seus próprios termos).


O PENSAMENTO ROMANO

De influência aristotélica, o conceito romano mais comum foi o de que a imitação tinha uma relação direta com arte e teatro. Cícero descreveu o teatro como "uma cópia da vida, um espelho dos costumes, um refelxo da verdade", um conceito que iria ecoar através dos séculos e eventualmente alcançar a idéia de Shakespeare de que a meta do teatro era "levantar, por assim dizer, o espelho para a natureza". Para os romanos, o teatro era imitação e teria um propósito educacional se pudesse ser de utilidade e ensinasse lições morais.

Horácio considerava que o teatro precisava tanto entreter quanto educar:

Todo o louvor obtém aquele poeta que une informação com prazer, ao mesmo tempo iluminando e instruindo o leitor.

Ele ordenou a visão clássica em uma série de regras para o teatro, realçando decoro e forma claramente definida: a comédia e a tragédia deveriam ser diferenciadas; as personagens criadas de acordo com o tipo; ações violentas não deveriam ser apresentadas; a estrutura deveria ser a de cinco atos - e assim por diante. Em Roma, as regras tomaram o lugar da especulação dos gregos.

Sêneca condenou o palco porque ele desviava o povo da séria ocupação de aprender e escreveu seus próprios dramas não para o teatro, mas para o estudo; estavam repletos de carnificinas e longas moralizações e, quando redescoberto durante a Renascença, teve uma influência que foi além de seus próprios méritos.

Dois escritores romanos assumiram os princípios do pensamento platônico, e, com seus escritos, à oposição ao teatro foi dada uma base intelectual, perdurando por séculos. Quintiliano exerceu sua influência durante o último período medieval e começo da Renascença - sobre Erasmo e Lutero, por exemplo. Plotino também reinterpretou o pensamento de Platão, mas sua influência foi principalmente junto aos primeiros padres católicos, e, com o neoplatonismo, afetou profundamente o pensamento católico até o século XII.
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Texto extraído do livro "Jogo, teatro e pensamento".

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