sábado, 30 de janeiro de 2010

A poesia, linguagem do teatro

José Javorsek


Em um estudo muito interessante sobre o "Teatro nos infernos" - é assim que Morvan Lebesque caracteriza o teatro de Artaud, de Beckett e de alguns outros - encontramos uma divisão bem simplificada da história do teatro em três grandes períodos.


Primeiro período

No início de sua história, o homem, esmagado pela sua insignificância e rodeado de mistérios, se dirige aos deuses e lhes lança um apelo patético: ele lhes suplica que desçam à terra para explicar o que ele, o homem, faz aqui na terra, ou melhor, para lhe determinar o que não deve fazer. É o tempo da invocação religiosa que se inicia pela simples dança sagrada e através da representação egípcia e em seguida grega, vai aos poucos se lacaizando. A poesia, na sua forma mais primitiva e ao mesmo tempo mais expressiva, oferece ao teatro da época seus verdadeiros meios de expressão. Se compreendemos a tragédia como uma presença mágica e fatal de realidades que só se manifestam indiretamente, ou melhor, que não são jamais representadas, então podemos estar quase certos que a poesia e a tragédia têm uma fonte de inspiração comum.


Segundo período

Cansado de apelar aos deuses, o homem afasta seu olhar do céu e o dirige para dentro dele mesmo. Ele se escolhe como espetáculo, acaricia seu retrato no espelho, planta-se audaciosamente no centro da cena. Se tentarmos compreender o papel da poesia neste segundo grande período do teatro, constatamos que foi rechaçado para um segundo plano e que perdeu seu antigo poder ativo. O primeiro plano é ocupado pela ação, pela intriga, pela história, enfim, caracteres humanos e pelos conflitos que daí resultam. É o teatro literário que lança suas raízes, e o teatro elisabetano é o único que ainda conserva uma parte de sua antiga magia poética. Este teatro literário se degrada, transformando-se lentamente em um teatro psicológico, numa fotocópia da vida real. Aos poucos, o teatro, que escolheu a sociedade dos homens como assunto de seus espetáculos, torna-se por sua vez um jogo da sociedade e muito freqüentemente um empreendimento só para a diversão. A poesia foi totalmente banida dele.


Terceiro período

Peço desculpas por citar mais uma vez Morvan Lebesque, cujas formas de simplificação me parecem excelentes: "Milênios se passaram e o homem não se tornou talvez semelhante aos deuses, como ele desejaria, mas penetrou, abrindo uma brecha, em seu vasto domínio. Graças aos recursos de seu cérebro, primeiro conheceu o universo e sua forma, em seguida lançou-se no espaço e agora possui o privilégio essencialmente divino de habitar os planetas e destruí-los. O homem se tornou seu próprio deus, e se ele se contempla, ele o faz das alturas, do plano elevado de máquinas onde antes ele colocara Zeus e o Cristo - das altitudes vertiginosas onde sua inteligência se instalou, precedendo seu corpo". Tentaremos demonstrar como neste terceiro período, quer dizer, na época moderna, a poesia reencontrou seu papel ativo, função que havia perdido durante alguns séculos.

Mas é preciso imediatamente reconhecer que a arte do teatro vem entre as últimas artes que progrediram no sentido ditado pela época moderna. Há um século já a poesia penetrara no mundo novo, a pintura seguiu-a de perto, o mesmo acontecendo com a música. Só a arte do teatro continuou até a pouco tempo presa às tradições antigas. Claudel, por exemplo, um grande poeta dramático, foi obrigado a esperar quase meio século para que lhe fizessem justiça, permitindo que sua obra fosse levada à cena. Mesmo um movimento literário tão forte e também tão revolucionário como o surrealismo não conseguiu revolucionar uma arte que se aburguesara tão profundamente.

Antonin Artaud, o teórico-mártir da renovação poética do teatro, morreu sem ver realizadas suas idéias, que só tomaram corpo depois de 1950 através do chamado teatro de vanguarda ou teatro do absurdo - ou seja, teatro moderno. E mesmo hoje subsiste nos lugares mais diferentes do mundo um teatro tipicamente burguês, por conseguinte um teatro falsamente realista, pretensiosamente psicológico ou psicanalítico, um teatro totalmente desprovido de poesia. Eis porque o teatro moderno teve que ser em primeiro lugar e antes de mais nada um protesto contra o incrível estreitamente imposto à cena.

Mas não sejamos vítimas de um malentendido: como a poesia não é sinônimo da versificação, assim também a poesia no teatro não se confunde com a poesia de teatro. Desde a idade clássica até "Chantecler", conhecemos milhares de versos, e pode ser que estes versos conduzam a alma ao transcendente invisível, mas não se trata em quase nenhum dos casos de poesia do teatro. Trata-se talvez de uma sucessão de temas líricos, idílicos, épicos, dialogados de uma maneira mais ou menos feliz, eis tudo.

Entretanto, a obra teatral não é somente texto; a obra teatral se compõe de gritos, de lamentações, de aparições, de surpresas; de marcações de cena de toda a espécie, da beleza mágica dos figurinos, do jogo de luz fantástico e quase perturbador, da beleza das vozes também: vozes de timbre e de forças diversas, vozes roucas, vozes suaves, vozes augustas, vozes ingênuas, vozes que parece enfeitiçar...e ainda de gestos, mímicas, danças, acrobacias, cores, pinturas, cenário, música - e mesmo de intrigas e histórias.

Porque é importante reconhecer que, se nos esquecemos que o teatro possui sua linguagem própria, sua poesia própria, a culpa é de Aristóteles que descreveu as fissuras do teatro e substituiu a loucura divina por fórmulas matemáticas. E estas mesmas fórmulas matemáticas acabaram dissecando o teatro, torcendo-lhe o pescoço e abaixando o seu nível até o ponto onde encontramos hoje em dia um pouco por toda a parte. Não faz muito tempo que, sentindo-nos atraídos pela verdadeira obra teatral, começamos a pesquisar as tradições mais antigas do teatro. Estas tradições conservaram a escritura teatral primitiva, o que explica que a nossa curiosidade de hoje em dia esteja orientada para as civilizações antigas e que procuremos pacientemente compreender a história e a beleza do "Nô" japonês, das cerimônias hititas, do teatro do antigo Egito, do antigo teatro hindu, da ópera chinesa, do teatro de Java e de Bali, da dramaturgia do México antigo.

Não se explica este fato pelo gosto do exótico ou pelo processo atual de integração das civilizações. Mas a causa deste novo interesse está no fato de que podemos encontrar nas obras teatrais destas civilizações antigas a inspiração de uma criação nova, através da qual reaparecerá o verdadeiro teatro com todo o seu brilho original. Por conseguinte, iremos também salvar a poesia, esta poesia que por múltiplas razões, encontra cada vez menos aceitação pelo espírito de nossa época, mas que no teatro conservará seu poder comunicativo, pois que o teatro é uma arte coletiva.

O teatro é a poesia no espaço, é o maior dos mistérios da poesia, por o Verbo, este veículo impalpável da poesia, se fez carne, se incarna diante dos olhos dos espectadores. E assistimos a este espetáculo maravilhoso que é o verbo se tornando gesto, ritmo, luz, enfim, se materializando diante de nós. Ficamos maravilhados observando como o teatro desperta as imagens adormecidas e as faz surgir no movimento e no espaço tal como Lázaro retornando à vida. O teatro ressuscita a poesia, dá-lhe novamente a vida. Antonin Artaud comenta muito bem: "Esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra deve satisfazer em primeiro lugar aos sentidos. Existe uma poesia para os sentidos, assim como existe uma poesia para a linguagem, e esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que ela exprime escapam à linguagem articulada".

Sabemos hoje em dia que Antonin Artaud exagerou intencionalmente a perseguição à linguagem no teatro. Na verdade, esta linguagem articulada invadiu demasiadamente o palco e quase que anulou inteiramente a verdadeira expressão teatral. Daí este ódio injusto de Antonin Artaud. Mas hoje em dia a linguagem articulada encontra cada vez mais o seu justo lugar no teatro e inicia uma aventura sem precedentes. Muitas vezes a palavra se torna ela própria espetáculo e encontramos então palavras-bombas, palavras-estrelas, palavras-poeira, palavras-damas, palavras- cachorros, palavras que cantam e palavras que silenciam.

Aqueles que são apaixonados pela palavra podem ficar satisfeitos, pois o teatro com sua cores, suas luzes e sua maravilhosa atmosfera veste a palavra com roupagens suntuosas e lhe oferece o lugar mais prestigioso para se mostrar. Esta palavra está para o teatro assim como um soberbo manequim está para uma grande"boutique" de costureiros. Ela tem muito que fazer e muito que apresentar.

Há também uma linguagem do teatro moderno que poderíamos denominar de linguagem congelada, e que é o contrário da linguagem em festa, da linguagem musical, da linguagem-maravilha. Esta outra linguagem é uma linguagem dissecada, uma linguagem mecânica, uma linguagem-clichê, uma linguagem aborrecida, de um tédiio contagiante. É uma linguagem derrisória através da qual inúmeros problemas do homem moderno se manifestam de uma maneira teatral. Vemos por conseguinte que a palavra como veículo de comunicação guarda sua posição. Ela somente mudou seu papel literário e se investiu do papel feito para o palco. Nem poderia ser de outra maneira. O teatro é um fenômeno coletivo, que é produzido pela comunicação, que, naturalmente, pode ser feita de várias maneiras. A linguagem articulada continua, pois, sendo o elo mais divino de nossas comunicações.

Somente quando consideramos tudo que se passa no palco como imagens materiais da poesia é que chegamos à verdadeira obra teatral. Se nos convencermos que o público não procura o teatro burguês, mas que através dos crimes, do amor, das guerras, das intrigas e das infelicidades, ele procura um estado poético, um estado que transcende a vida, um estado que, pelo seu caráter coletivo, popular e quase físico só o teatro pode oferecer, se tudo isto é verdade, então a vanguarda do teatro de hoje será - esperemos - o começo de uma grande época do teatro moderno.
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Artigo extraído e um pouco reduzido da revista "Esprit" (dezembro de 1964). O artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 38/1967, edição já esgotada.

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