segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"La musica"

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Belíssima reflexão sobre o amor


Lionel Fischer


"Tentei preservar o lado mais racional para que a discussão seja clara ao público. É uma peça repleta de silêncios, onde as pausas falam mais do que as palavras. Quando o casal se cala, a gente vê o grande significado da relação deles. Quando não há palavras, temos a sensação de ouvir os sentimentos que estão guardados dentro de cada um". Este trecho, extraído do release que nos foi enviado, foi escrito pelo diretor da montagem, Marcos Loureiro. E revela algo não muito comum em encenadores, sobretudo nos que se auto-definem como "de vanguarda": uma compreensão irretocável daquilo que é mais essencial em "La musica", de autoria da escritora, dramaturga e roteirista francesa Marquerite Duras (1914-1996).

Em função do que acaba de ser dito, só mesmo uma direção desastrada e/ou um elenco completamente desprovido de talento seriam capazes de impedir que o público usufruísse a extraordinária qualidade do texto. Mas, como ocorre exatamente o inverso, estamos diante de algo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público carioca. Após cumprir temporada em São Paulo, "La musica" está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, interpretada por Xuxa Lopes (Anne-Marie Roche) e Hélio Cícero (Michel Nollet).

Casados durante 15 anos e separados há três, Michel e Anne-Marie marcam um encontro no saguão do hotel onde viveram um tempo, com o pretexto de definirem questões relativas a móveis. No entanto, o que está em causa vai muito além da partilha de bens. Torna-se evidente que ambos, ainda que já estejam se relacionando com outras pessoas, ainda não conseguiram libertar-se dos fortes laços que os uniram no passado, apesar das mútuas traições que ambos perpetraram a partir de um determinado momento. Os dois desejariam, possivelmente, reatar o relacionamento, mas ao mesmo tempo sabem que isso jamais ocorrerá. Por quê?

Bem, aí cada espectador poderá fazer a sua leitura. A nossa, que não pretende ser definitiva e nem mais pertinente do que outras, resume-se ao seguinte: quando o pacto de fidelidade entre um casal se rompe - desde que este pacto tenha sido colocado como uma premissa e supondo que ambos sejam íntegros e éticos - é porque está em causa algo muito mais significativo do que a mera busca do prazer com um estranho ou estranha. E aí podem ser infinitas as razões, mas acreditamos que uma das principais seja a ruptura de algo essencial: o respeito pela singularidade do outro. Isto pressupõe a convivência com eventuais diferenças e não uma tentativa de moldar o outro em função de nossos desejos. Sempre que enveredamos por esse caminho, renunciando à parceria e cumplicidade entre corpos e almas, e priorizamos o que poderíamos definir como uma tentativa de "domesticar" o outro, podemos estar certos de que já se descortina o caminho da separação.

Contendo ótimos personagens e diálogos que nos atingem como punhais e que ficam reverberando em nossas entranhas, "La musica" é um texto sublime, não apenas por sua beleza, mas pela possibilidade que nos oferta de refletirmos sobre nós mesmos e então, quem sabe, empreendermos algumas inadiáveis transformações em nossa maneira de olhar a vida, em geral, e o amor, em particular.

Com relação à encenação, esta sabiamente abdica de qualquer firula formal e, como bem definiu o diretor, se concentra nos personagens, no que eles dizem e sobretudo no que eles calam. Marcos Loureiro explora com grande sensibilidade as pausas, que aqui não são tempos mortos, mas impregnados de múltiplos significados. Aliás, aqueles minimamente familiarizados com a música, sabem que não são apenas as notas que importam, mas também os intervalos entre elas. Na música, como no teatro e na vida, as pausas não significam que não se tenha o que dizer ou tocar. Muito pelo contrário: às vezes a interrupção de uma fala, a dificuldade para se completar um pensamento ou verbalizar um sentimento, constituem momentos muito mais expressivos do que o seriam se a fluência permanecesse inalterada.

Quanto ao elenco, Xuxa Lopes exibe aqui uma das melhores atuações de sua carreira, conseguindo materializar todas as características de uma mulher ao mesmo tempo apaixonada e profundamente dilacerada por muitas dúvidas. O mesmo se dá com Hélio Cícero, cabendo apenas um pequeno registro: embora possuidor de belíssima voz, o ator, nas passagens mais dramáticas, quando se vale de um tom muito forte, às vezes torna parcialmente incompreensível o que diz.

No tocante à equipe técnica, aplaudimos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Marcos Ribas de Faria (tradução), Aurora dos Campos (cenografia), Cássio Brasil (figurinos) e Tomás Ribas (iluminação) - cuja contribuição é decisiva para o êxito inquestionável desta montagem imperdível.

LA MUSICA - Texto de Marguerite Duras. Direção de Marcos Loureiro. Com Xuxa Lopes e Hélio Cícero. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta e sábado às 21h. Domingo, 20h.

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