Teatro/CRÍTICA
"Náufragos"
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A dor de existir
Lionel Fischer
Como todos sabemos, aqueles que habitam este curioso planeta podem ser enquandrados, a grosso modo, em duas categorias: aqueles que seguem o mesmo, reto e imutável trilho ditado pela moral, pelas convenções e premissas que interessam àqueles que detêm o poder, ou uns poucos que se arriscam a transpor essas cerceadoras fronteiras, embora desconhecendo por completo as paragens que estão à sua espera. Estes últimos normalmente são catalogados como loucos. Mas de fato o seriam? Ou será que podemos encará-los como pessoas que, nessa espécie de terra-de-ninguém, ainda assim insistem em caminhar, mesmo que eventualmente se perdendo, mas certamente buscando traçar uma pista?
No presente caso, estamos diante de dois homens que se recusaram a fazer dos passos convencionais o roteiro obrigatório dos seus. Portanto, nada mais lógico que tenham sido excluídos de nossa salutar sociedade e submetidos a bárbaras torturas, prosaicamente denominadas "procedimentos médicos", em instituições psiquiátricas. Mas um dia ambos escapam da pavorosa prisão e saem pelas ruas, como no passado o fizeram por infinitas paragens Dom Quixote e Sancho Pança, não necessariamente para enfrentar moinhos de vento, mas para se confrontar com eles mesmos e com o mundo que os cerca.
Eis, em resumo, o enredo de "Náufragos", do dramaturgo italiano Massimo Bavastro, que encerra na próxima sexta-feira sua temporada no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea). Com tradução de Nicola Lama e direção de Alessandra Vannucci, a montagem tem elenco formado por Arthur Schreinert (Dom Quixote) e Marcelo Aquino (Sancho Pança) - por razões que não cabe aqui detalhar, Arthur Schreinert substituiu Nicolo Lama no espetáculo que assistimos.
E este, por sinal, certamente deve causar espanto e gerar incertezas no espectador. Sim, pois aqui não se trata de uma tentativa de materializar na cena reencarnações dos dois célebres personagens criados por Cervantes, e assim avaliar como agiriam no mundo atual. Muito pelo contrário. E se estamos diante de duas almas indefesas, sujeitas à humilhação constante, que eventualmente dançam uma dança lenta e irreal e cantam músicas que pouca gente conhece, o que interessa são os seus murmúrios que se insinuam pelos cantos, pelas escadarias de cobre, pelas consciências adormecidas e intactas. Como as nossas, de uma maneira geral.
Em última instância, quem são esses andrajosos que parecem realizar trágicas orgias sobre a campa das próprias sepulturas? Certamente eles representam a muitos de nós, cuja insatisfação nos levou muitas vezes a indagar: de que serve, com a lama até o pescoço, manter limpas as unhas nas pontas dos dedos? E talvez por isso - ao menos no meu caso - me identifiquei tanto com os personagens, e creio que muitos espectadores também o fizeram. Agora, como lidar com a dor de existir, aí trata-se de uma questão pessoal, mas sem dúvida inadiável.
Valendo-se de marcações ousadas e imprevistas, surpreendentes alterações rítmicas e de um universo gestual impregnado de beleza e tragicidade, a encenadora Alessandra Vannuci nos oferece um espetáculo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público - ou ao menos pela parcela de público que não encara o teatro como couvert de inevitáveis pizzas. E isto também se deve à ótima atuação dos intérpretes, que exibem não apenas vastos recursos expressivos, mas também notável capacidade de se entregar apaixonadamente aos complexos personagens aos quais dão vida.
Na equipe técnica, destacamos com total entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Marcelo Aquino (figurinos), Paolo Vivaldi (trilha sonora), Fred Tolipan (iluminação) e Nicola Lama (tradução).
NÁUFRAGOS - Texto de Massimo Bavastro. Direção de Alessandra Vannucci. Com Marcelo Aquino e Arthur Schreinert. Teatro Maria Clara Machado. Sexta-feira, 21h.
segunda-feira, 26 de julho de 2010
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oBRIGADO lIONEL POR SEU OLHAR TÃO PONTUAL E DELICADO SOBRE O TEATRO. ESTE É UM ESPETÁCULO QUE FAZEMOS COM SUOR E MÚSCULOS E É MUITO GRATIFICANTE SABER QUE CONSEGUIMOS TOCAR AS PESSOAS DESTA FORMA. sÓ ME PERMITA UM CORREÇÃO. o ARTHUR SCHEREINERT SUBSTITUIU O ATOR NICOLA LAMA (QUIXOTE) NESTA APRESENTAÇÃO, EU mARCELO AQUINO ESTAVA EM CENA INTERPRETANDO O BOM E VELHO SANCHO!
ResponderExcluirGRANDE ABRAÇO!
marcelo aquino
Ator e diretor