As sombras e o mundo contemporâneo
Mariana Schmitz
Um breve histórico
Há controvérsias sobre o local de origem da tradição do Teatro de Sombras, mas certamente foi no Oriente que este fenômeno encontrou o contexto adequado para o seu surgimento e desenvolvimento, tornando-se um evento incorporado às práticas artísticas das sociedades em que aparece e desenvolvendo-se também enquanto tradição cultural.
Na China, uma das mais prováveis origens do Teatro de Sombras, encontramos uma relação íntima do fenômeno das sombras com a Ópera Chinesa. Pode-se perceber também a nítida relação das sombras com o universo mítico ancestral do povo chinês. Ainda na China encontramos exímios manipuladores, dotados de um invejável apuro técnico, capazes de manipular inúmeras silhuetas, totalmente articuladas, ao mesmo tempo.
A Turquia, com o seu original Karagoz, traz na essência da sua tradição de sombras uma intensa manifestação popular, onde aparecem as inovações no uso da palavra, a sátira política e social como temática e o improviso como fonte de criação. Ainda que o Karagoz possa ser configurado como uma forma popular de diversão, ligada às datas comemorativas e festejos da sociedade, ele representa também um desejo sincero de expressar artisticamente a existência do homem no mundo e suas angústias e paixões diante deste mundo.
Na Índia, outra provável origem do fenômeno, encontramos a manifestação do Teatro de Sombras intimamente ligado à vida religiosa do povo, sendo que muitos dos temas utilizados são de origem religiosa, ou são histórias antigas já incorporadas ao universo mítico do povo. Os manipuladores cantam e recitam além de manipular as silhuetas, sempre acompanhados por instrumentos musicais. Nesse contexto, o Teatro de Sombras tem como objetivo despertar no espectador o prazer estético, efeito alcançado também através da presença dos personagens cômicos e do espaço reservado pelo manipulador ao improviso, o que garante uma constante atualização da temática e da relação das sombras com o público.
Na ilha de Java encontramos a tradição dos Dalang, manipuladores que confeccionam e são responsáveis tanto pelas silhuetas quanto pela integridade dos temas abordados na tradição das sombras. Os Dalang devem possuir um repertório vasto de "Lakan", enredos existentes para o Teatro de Sombras, e são vistos não somente como artistas, mas como intermediários entre os homens e os Deuses, sendo assim muito respeitados pela sua experiência e sabedoria. Mais que uma diversão, o Teatro de Sombras javanês é um encontro entre arte e filosofia cuja relação com a cultura local é intrínseca. Sempre representa o triunfo do bem contra o mal e traz também uma parte reservada para as improvisações e o humor.
Atualmente, o Teatro de Sombras oriental tem sido influenciado pelas mudanças técnicas vindas principalmente do Ocidente, como por exemplo a utilização de lâmpadas elétricas ao invés de lamparinas a óleo, a utilização de toca-fitas ao invés da orquestra ao vivo, o foco móvel e múltiplo e a tela também móvel. Estas alterações promoveram outra ordem de mudanças como a formação do manipulador, que hoje não necessita mais de um treinamento tão exigente, uma vez que as silhuetas perderam boa parte das articulações e a maioria dos manipuladores não atua mais individualmente.
Técnica e expressividade
Tecnicamente, difere muito das outras formas de expressão artístico-cênica, utilizando elementos que tornam esta tradição um fenômeno com características únicas. A tríade técnica essencial do Teatro de Sombras é configurada pela existência de um foco luminoso, uma tela e uma silhueta, isto é, um objeto cuja sombra é projetada na tela. A partir desta simples combinação o artista constrói um outro mundo, um mundo repleto de magia. Segundo Lescot,
A imaterialidade da sombra lhe dá um caráter mágico. Seguindo o jogo imposto no recorte pela relação com a fonte luminosa, a vida de uma silhueta pode assumir dimensões muito expressivas. (LESCOT, 1986: 265).
A expressividade da silhueta, bem como a expressividade da linguagem enquanto conjunto é estabelecida de maneira singular, tanto na relação foco/silhueta, quanto na relação manipulador/foco e manipulador/silhueta. O investimento em cada um dos elementos independentemente sugere um tipo diferente de expressividade, estando a critério do manipulador esta escolha. Seja qual for a opção do artista, a linguagem das sombras sempre estará ligada a uma visão do mundo e da existência que supera um simples decalque da realidade. O lirismo e universo onírico estão sempre presentes, pois a sombra enquanto elemento imaterial, conduz a uma visão poética da realidade, uma visão expressa através da metáfora que a própria sombra representa.
A representação está mais intimamente relacionada com a imaginação do que com a racionalidade, o que pode ser interpretado como explicação para a estranheza que esta linguagem causa no Ocidente, onde o mais confortável é interpretar a realidade logicamente. Segundo Montecchio, o problema na relação entre o Teatro de Sombras e o Ocidente foi a transposição ocorrida desta linguagem, do Oriente para o Ocidente, sem que existisse uma releitura da sua essência.
Visto como uma espécie de "vestido muito justo", nunca foi objeto de uma total redefinição tanto no que se refere à forma quanto ao que se refere ao conteúdo. Persistiu como uma espécie de anomalia antropológica-teatral: arte da ilusão pré-cinematográfica, ou brinquedo para as crianças. (MONTECCHIO, 1922).
A partir disso é possível perceber que houve, nesta transposição, uma perda significativa de sentido. Enquanto que no Oriente a essência deste fenômeno já está deteminada culturalmente e a sua forma está intrinsicamente ligada à maneira como os povos Vêem e recriam o mundo, no Ocidente o Teatro de Sombras encontrou-se solitário e anulado no seu sentido mais profundo e poético.
Enquanto que no Oriente ele pouuía valores filosóficos, religiosos e culturais muito claros, no Ocidente o Teatro de Sombras foi convertido num mero divertimento, um espetáculo visualmente interessante porém destituído de significado que ligasse sua essência à sua manifestação concreta. A sua expressão formal foi transportada, já que este conjunto de significados, que lhe conferiam importância dentro das culturas orientais nas quais se manifestava, não pôde acompanhar a transposição. Então, O Ocidente recebe o Teatro de Sombras como uma simples manifestação de imagens projetadas numa tela.
Dessa maneira, o Teatro de Sombras passou a ser visto como um "primo pobre" da fotografia e do então recém-nascido cinema. A partir do rápido desenvolvimento que ambas as técnicas obtiveram, o Teatro de Sombras foi esquecido e relegado a simples diversão infantil.
Atualmente, a situação do Teatro de Sombras, enquanto manifestação artística na sociedade ocidental contemporânea, reflete muito desse processo de descoberta e esquecimento sofrido ao longo dos anos. Desconhecido do grande público e visto por boa parte da classe teatral como mero recurso visual, é utilizado como acessório-enfeite em espetáculos de linguagem e estética distantes do lirismo intrínseco à linguagem das sombras.
Autonomia perdida
Entretanto, apesar do contexto mostrar-se desfavorável ao desenvolvimento dessa prática, alguns grupos isolados na Europa e nas Américas pesquisam este tipo de linguagem seriamente, procurando restituir-lhe a autonomia perdida. Num mundo onde a informação é transmitida numa velocidade sem precedentes, onde as imagens são utilizadas mais como meio de venda e alienação que como meio de alimentar o universo imaginário e filosófico do ser humano, onde poderá encaixar-se o Teatro de Sombras com toda a sua delicadeza formal, o seu lirismo sugestivo, a sua poesia essencial?
O lugar do Teatro de Sombras não é ao lado do cinema, competindo por um espectador ávido, faminto por uma corrida de imagens que lhe absorva totalmente. O Teatro de Sombras deve buscar a sua essência e deve acima de tudo admitir que mesmo acompanhando avanços técnicos e temáticos, ele está ligado a um outro tipo de relação entre ser humano e mundo, uma relação tão esquecida atualmente como ele próprio.
Segundo Roland Schohn, a relação entre espectador e tela no Teatro de Sombras e no cinema, são muito diferentes.
Diferentemente do cinema, que faz de tudo para provocar a adesão completa do espectador à ilusão, o espetáculo de sombras convida o público ao prazer frágil de jogar com a ilusão a partir dos signos de uma presença escondida. Este sutil fluxo e refluxo da ilusão, esta exacerbação de emoção de um mundo inacessível, no exato momento em que a miragem parece sobrepôr-se à realidade dá ao espetáculo de sombras a riqueza e a profundidade do fazer teatral. (SCHOHN, 1986).
Esta diferença, que distancia o espetáculo de sombras do cinema, mas aproxima-o do teatro, leva-nos a um outro tipo de reflexão. O que há no teatro que falta no cinema? Que relação é estabelecida entre público e ator no teatro que não pode ser estabelecida pela furiosa tela do cinema? A relação da presença física do ator. O evento simultâneo que envolve ator e espectador numa partilha conjunta de uma mesma experiência. E esta relação o Teatro de Sombras possui, intrinsicamente ligado à sua essência. Segundo Annie Gilles, apesar da estranheza causada por esta relação, o Teatro de Sombras tem nessa característica, algo a seu favor.
Enfim, apesar da separação que a tela estabelece entre o público e os profissionais do teatro, toda representação do Teatro de Sombras implica sua presença simultânea, uma comunicação entre ator e público, um trabalho teatral. (GILLES, 1986).
O Teatro de Sombras parece, atualmente, encontrar nos solitários e poucos artistas dedicados a ele uma nova chance de ranascimento, uma possibilidade de renovação técnica, formal e filosófica. Existe agora a possibilidade de que a linguagem das sombras finalmente encontre uma razão para a sua manifestação no Ocidente, e de que, enfim, restitua o seu conteúdo artístico, lírico, onírico e mágico novamente.
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Artigo extraído da revista Cadernos de teatro nº 171/2004.
quarta-feira, 28 de julho de 2010
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Olá. Estou procurando Manifestações do Teatro de Sombras,tenho um trabalho para amanhã. Você poderia me ajudar??
ResponderExcluirGrata,
Fernanda