A CENSURA E O TEATRO
- Uma perspectiva histórica -
J. R. Stephens
(O presente ensaio, extraído do The Cambridge Guide to World Theatre (E. M. Banham), foi escrito em 1988 e por isso algumas de suas colocações já não encontram - felizmente - respaldo na realidade. Entretanto, possibilita uma visão abrangente de todo o processo desta funesta atividade chamada Censura. O ensaio, aqui reduzido, fala da censura desde os seus primórdios até o final do século XIX, mas pode ser lido na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 153/1998. A tradução ficou a cargo de Milena Cunha de Uzeda - Curso de Tradução: Departamento de Letras, PUC-Rio)
O poder do teatro como uma arma no arsenal da propaganda tem sido reconhecido por todas as formas de autoridade, desde democracias liberais a ditaduras totalitárias. Esta crença no impacto persuasivo do palco explica a longevidade da censura teatral, algumas vezes em contraposição a outros tipos de censura. Enquanto a censura literária na Europa Ocidental foi, na maioria dos casos, abandonada (como ocorreu na Inglaterra desde 1695), a censura teatral sobreviveu em algumas democracias ocidentais do século XX. Embora freqüentemente camuflada sob mantos religiosos ou morais, a censura teatral é fundamentalmente um ato político. Um teatro inofensivo é um aliado da máquina do Estado; o indisciplinado é, potencialmente, seu mais feroz crítico e inimigo.
Todo tipo de censura é, por natureza, prescritiva e autoritária. Funesta e ameaçadora em seus aspectos mais severos, irritante e ridícula em suas características mais extravagantes, a censura atual exerce um controle sobre o teatro mundial que talvez jamais tenha exercido anteriormente. Seus agentes são figuras sombrias, kafkianas, cujas decisões raramente são sujeitas a questionamento ou apelação. A censura visa controlar e restringir a liberdade intelectual e artística do dramaturgo. E pode envolver a proibição de uma publicação ou de um espetáculo.
Roma e Grécia Antiga
Talvez os primeiros verdadeiros censores foram os arcontes da antiga Atenas que julgavam, baseados em méritos puramente artísticos, os competidores dos grandes festivais dramáticos. Porém, segundo o modelo moderno, não há evidências totalmente confiáveis de censura teatral na antigüidade clássica. Entretanto, referências esparsas (como a de Cícero em A República) sugerem que a quantidade de sátira pessoal na comédia clássica pode eventualmente ter levado a tentativas de freiá-la, embora não de forma sistemática e nem necessariamente induzida pelo Estado. Por outro lado, a liberdade de expressão era um conceito ateniense extremamente enraizado e Aristófanes, em Os Pássaros, mostra que os limites, se é que existiam, eram muito amplos. Já a natureza mais contida da comédia da Roma Antiga pode ter sido o resultado do aviso sinalizado pela prisão de Névius, ordenada pela família Metelli, a quem ele supostamente insultara em suas peças.
Certamente a lei romana relacionada à calúnia e à difamação (como consta na Lei das XII Tábuas) era bastante rígida e pode ter surtido efeito em dramaturgos como Plauto. Algumas formas de censura estão sugeridas pelas reclamações de Donato, as quais alegavam que na fabula togata (comédia nativa) era proibido mostrar mestres sendo sobrepujados pelos escravos; mas não se sabe ao certo a extensão desta proibição. Apesar de sua popularidade, o teatro era algumas vezes objeto de desconfiança, principalmente no século II a. C, quando o senado desaprovava a disseminação dos teatros. Já nos primeiros sinais da queda do Império Romano, Tertuliano ( De Spetaculis) questiona a crescente animosidade da Igreja cristã relativa ao aspecto da atividade dramática.
Europa do século XV ao XX
As raízes da censura européia estão associadas ao teatro medieval, quando vigoravam forças conflitantes, tanto religiosas como políticas, tanto locais como nacionais. Na Inglaterra, a Igreja Católica exercia considerável controle sobre os conteúdos dos Autos de Mistério e parece ter sido responsável, mesmo antes da Restauração, pela remoção de peças dedicadas à Virgem Maria dos Autos de York e Chester. Mas foram as autoridades laicas de Chester que, em 1531, procuraram remover os Autos da cidade qualquer referência ao poder do Papa. Na França, em 1402, Charles VI tentou afirmar a autoridade da corte sobre a apresentação das peças religiosas concedendo à Confrérie de la Passion o direito de encenar Mistérios, sob a condição de que os próprios representantes pudessem manter um olhar crítico com relação às apresentações.
Tais controles, de efeitos limitados, representavam o começo de tentativas mais agressivas de regulamentação do teatro na Europa Ocidental, ao se tornar mais laicizado. Uma preocupação acerca de elementos profanos, que adulteravam o teatro religioso, era expressa na Espanha, nas Assembléias Eclesiásticas de Aranda (1473) e Henares (1480), enquanto na França as façanhas sarcásticas de companhias de autores como Les Basochiens e Les Clercs deram a deixa para decretos contra eles próprios, em 1442 e 1448. No início do século XVI, autoridades locais ficavam cada vez mais impacientes com companhias de atores itinerantes e com seu potencial para ruptura. Em 1514, proibiram Farcer les Princes; em 1522, atacaram a insolência dos atores e, em 1544, reprimiram Des Jeux Scandaleux.
O teatro religioso, deserdado pela Igreja e vexatório para o Estado, sofreu uma ameaça crescente durante o século XVI, principalmente na Inglaterra e na França. O Parlamento francês introduziu, em 1538, uma forma de censura preventiva que rapidamente resultou na retirada do privilégio da Confrérie de la Passion, em 1548, e em uma subseqüente proibição das apresentações de todas as peças de Mistério. Na Inglaterra, a regulamentação do teatro pelo governo foi um instrumento vital da política dos Tudor, motivando a reviravolta da Restauração inglesa no reinado de Henrique VIII, a reversão temporária ao catolicismo no reinado de Mary Stuart e a criação, no reinado de Elizabeth I, de uma forte nação sob a insígnia protestante.
A primeira tentativa de coibir o teatro a nível nacional pode ser detectada no ato "Para o avanço da verdadeira religião e para abolição do contrário" (1543), que proibia todas as peças propensas a desafiar a religião recém-estabelecida. Em 1581, Elizabeth I conseguiu estabelecer a proibição completa dos Autos de Mistério, seguida por uma interdição (por mais de 300 anos) de qualquer peça bíblica ou referente às Escrituras.
Segredo
O segredo para a censura eficaz era o poder centralizado. Em muitas partes da Europa Ocidental (como na Alemanha e na Itália) a situação política fragmentada impossibilitava isso. A França teve alguns êxitos através de seu Parlamento, em Paris, e a Espanha teve a sua Inquisição (embora o teatro nunca figurasse em destaque nas listas de condenação). Mas o método mais habilidoso de censura aconteceu na Inglaterra no período Elizabetano. Em 1559, autoridades locais foram instruídas a proibir peças "onde tanto questões de religião, como de decisão do Estado sobre o bem-estar comum fossem abordadas", embora Elizabeth I reconhecesse que o controle apropriado significava uma supervisão ativa pela própria corte. Os poderes do Mestre dos Foliões, nominalmente submetido ao Lorde Chamberlain, são mencionados pela primeira vez na patente concedida à Companhia dos Atores do Conde de Leicester, em 1574, que teve permissão de apresentar somente peças "assistidas e autorizadas" pelo Mestre.
O advento dos primeiros teatros permanentes em Londres (1576) impôs uma maior definição do Conselho dos Foliões e, em 1581, uma patente real deu ao titular, Edmund Tilney, plenos poderes "para ordenar e restaurar, autorizar e proibir, seguindo seu próprio juízo ou aconselhado por seus representantes" qualquer obra considerada prejudicial aos interesses do Estado. Na época em que Shakespeare chegou a Londres, vigorava um sistema canalizador de censura. Mas decretos reais de 1598, 1603 e 1622, além do ato de 1606, proibindo juramentos profanos, asseguraram ao Mestre dos Foliões o poder de principal árbitro do teatro até meados do século XVII, interrompido somente pelo fechamento dos teatros por Cromwell, de 1642 a 1660.
Cadeia
A supervisão da corte tinha efeitos positivos e negativos sobre o teatro. Enquanto ela oferecia às companhias de teatro uma proteção contra a interferência de autoridades hostis, isto também significava que as peças estavam sujeitas ao severo exame oficial antes de serem licenciadas. Até mesmo algumas das primeiras edições das peças de Shakespeare parecem ter sido afetadas, com alguns dramaturgos sendo presos por apresentar questões sediciosas - dentre eles, Ben Johson, Chapman e Martson, cujo Eastward Ho despertou cólera em James I, por abordar com irreverência seus cortesãos escoceses.
O poder de censura na Inglaterra do século XVII contrasta com sua relativa fraqueza em outros lugares, mesmo na França, onde a censura era limitada. Em 1609, os comediantes do Hôtel de Bourgogne foram impedidos de encenar comédias ou farsas sem a aprovação prévia do procurador do rei. Mas em 1641, Luís XII aboliu qualquer tipo de censura. Entretanto, os autores ainda poderiam ser punidos por indecência - Molière causou tanta polêmica com Tartufo que Luís XIV, embora pessoalmente solidário com Molière, foi obrigado a proibir a peça. Somente após muitas modificações ela foi liberada para apresentação pública, na presença do rei, em 1669.
Vítimas
Durante o século XVIII, a censura teatral se solidificou mais fortemente na Europa Ocidental, principalmente na Grã-Bretanha e na França, onde se implantaram medidas (com periódicas remissões, no caso da França), que se estenderiam até o final do século XX. Em 1701, Luís XVI reiplantou a censura formal, com uma ordem para que todas as novas peças fossem oficialmente examinadas antes da apresentação. O princípio foi confirmado em um outro decreto (1706), que inaugurou com sucesso o mecanismo de controle da pré-Revolução do palco, presidido por uma sucessão de censores, como Jolyot de Crébillon e seu filho, Marin, além de Suard (famoso por seus pontos de vista moderados), que moldou a prática do século XVIII. A principal vítima foi Beaumarchais (O Barbeiro de Sevilha e O Casamento de Fígaro).
O sistema de censura britânico sofreu uma drástica e abrangente reestruturação no começo do século XVIII, com a implantação de novos e extensos poderes no Ato de Licenciamento de palco introduzido por Robert Walpole, rapidamente incluído nos livros de estatuto, como resultado de difamações danosas ao governo, por Henry Field e outros. Embora inspirada na prática do Conselho dos Foliões, a nova lei estava nas mãos de Lorde de Chamberlain, que passou a ter plenos poderes para proibir "quantas vezes ele considerar pertinente" qualquer peça dramática apresentada "para fins lucrativos" em qualquer lugar da Grã-Bretanha - uma autoridade que, segundo a opinião de seu arqui-opositor, Lorde Chesterfeld, "desconhece nossas leis e é incoerente com nossa Constituição". Modificado em alguns detalhes pelo Ato de Regulamentação do Teatro, que o substitui em 1843, o ato de Walpole formeneu todas as fundações para o controle do teatro nos 231 anos seguintes.
Aliança
Em outras partes da Europa, o teatro também vinha sofrendo uma vigilância intensa. Nenhum sistema formal de censura existia na Rússia até o começo do século XIX, mas, assim como na Inglaterra, os czares tentaram estabelecer uma íntima aliança do teatro com a corte. Os motivos eram os mesmos, mas os métodos eram diferentes e mais limitados, já que a Rússia dependia do generoso patrocínio do Estado - do efetivo patrocínio do governo ao teatro - para assegurar que o que era apresentado fosse confeccionado de modo a atender às necessidades políticas.
Não sendo centralizadas no confuso clima político da Alemanha e da Áustria, a censura era exercida de forma diferenciada em cada local. A famosa peça The Robbers, de Schiller, amedrontou tanto o diretor da produção de Mannheim, em 1872, que ele deliberadamente camuflou o seu espírito revolucionário ao transpor a ação para o século XVI, impedindo qualquer medida por parte das autoridades. Mesmo assim, a peça foi proibida em outras partes da Alemanha e da Áustria, só estreando em Viena em 1808.
Terror
A censura, vista com hostilidade dentro do espírito da Revolução Francesa, foi abolida por ordem da Assembléia Legislativa, em 1791, mas este período de liberdade teria pouco tempo de vida. Em 1794, a censura foi reinstaurada e, junto com ela, uma tentativa de "republicanizar o teatro". Todos os teatros foram obrigados a retirar qualquer referência a duques, barões, marqueses ou condes, e nenhum dramaturgo estava imune, nem mesmo Molière e Racine.
Durante o verão de 1794 (no auge do Terror), observa-se uma rara demonstração de agressividade da censura francesa: dos 151 roteiros analisados, 33 foram proibidos e outros 25, severamente cortados. O medo de ser contaminado pelo espírito revolucionário francês induziu outros países a execer vigilância mais rígida de censura política. Na Inglaterra, sob o olhar permanente dos representantes do Lorde Chamberlain, temas revolucionários, regicídios e alusões à opressão e ao patriotismo eram excluídos de todos os roteiros teatrais.
Espionagem
Uma vigilância semelhante caracterizava o poder ascendente da censura de Habsburgo. A Ordem de Viena (1794) proibiu todas as obras políticas perigosas e na época dos famosos Decretos Karsbad (1819), Metternich, apoiado por um sistema de espionagem com ramificações que ultrapassavam a dramaturgia e a literatura, procurou impor uma rígida censura a todos os estados do Império Austríaco.
O teatro da Rússia czarista já era praticamente um departamento do Estado, quando a censura foi implantada, em 1804, seguida de uma rigidez progressiva dos regulamentos nos 50 anos seguintes. Em 1828, a censura ficou a cargo do Terceiro Departamento do Conselho Pessoal de Sua Majestade, que criou novas regras para a censura de Moscou, São Petersburgo e das províncias mais extensas, sendo que a partir de 1842 passou a abarcar todas as companhias de atores itinerantes.
Quando Nicolau I elaborou um comitê secreto especial para a censura (conhecido oficialmente como Comitê 2 de Abril), em 1848, o czar passou a controlar pssoalmente o sistema. Entre as vítimas mais notáveis da censura czarista (que não permitia nenhum tipo de representação do czar, de sátira à nobreza, a donos de terra, ao Estado ou aos seus membros) estavam Pushkin, Turguenev, Tolstoi e Gogol - este último, surpreendentemente, escapou de um veto em O Inspetor Geral: o czar parece ter se divertido com seus representantes temíveis e providencialmente corruptos.
Arma
No continente europeu, a censura política era geralmente utilizada como uma arma contra o crescente uso do teatro como veículo de expressão do sentimento libertário nacional. O sistema de espionagem de Metternich vigiava as atividades de um grupo de jovens escritores radicais, conhecidos como Junges Deutshland. Na França, Le Roi S'Amuse, de Victor Hugo, causou tumulto na estréia, por sua suposta referência a Luís Felipe, e foi imediatamente proibida, dando a deixa para a implantação da censura do Estado, depois de sua temporária abolição na Revolução de 1830.
A situação na Itália era mais caótica que em qualquer outro lugar. Em algumas regiões, como nas províncias de Lombardia e Vêneto, o censor austríaco detinha o controle. Mas na maioria dos outros estados e ducados o sistema era mais localizado - um comitê real foi criado em Nápoles, em 1807, para supervisionar todos os aspectos da produção teatral (incluindo cenário e figurino), enquanto no Vaticano, Pio VII criou uma junta de censura, com seis cavaliere e um abade. A fervorosa recepção de Nabuco, de Verdi, em Milão (1842), confirmou às autoridades a necessidade de anestesiar as emoções políticas e garantiu a Verdi, a partir de então, um controle rígido dos censores italianos e de outras partes da Europa. Entre os numerosos dramaturgos que sofreram censura política no período anterior à Unificação estavam Monti, Nicolini, D'Aste e Pellico.
Imoralidades
Mas o equilíbrio da Europa, depois de 1850, lentamente cedia lugar a uma preocupação mais profunda e persistente com as questões morais, principalmente na França e na Grã-Bretanha. Depois de 1852, os censores franceses voltaram sua atenção às supostas imoralidades das peças de, entre outros, Alexandre Dumas, Victorien Sardou e Emile Augier. Pelo fato de a vida teatral britânica do século XIX depender de importação e adaptação das inovações parisienses e também de sua censura moral ser mais rígida do que na França, o pedágio exigido pelo Lorde Chamberlain era alto, chegando ao máximo nos anos 80 e 90. O processo de "desinfecção" das peças francesas era bastante comum, mas muitas comédias e dramas (especialmente quando pareciam atacar a santidade da vida familiar) se mostravam ousados demais para passar imunes aos censores.
Talvez a mais conhecida de todas tenha sido a Dama das Camélias, do jovem Dumas, proibida primeiramente na Inglaterra em 1853 e muitas outras vezes, a partir de então, em diversas adaptações. Porém, ironicamente, La Traviata, de Verdi, foi aceita em 1856, porque, seguindo uma regra geral, a ópera gozava de maior tolerância do que o teatro. Contudo, a crescente natureza inibidora da censura foi realçada pela chegada do "teatro de vanguarda", introduzido por Ibsen, que acelerou uma campanha embrionária contra a censura, liderada por William Archer e Bernard Shaw.
Sexo
Este movimento foi fortalecido no período de 1880 e 1910 com a interdição de peças como Os Fantasmas (Ibsen) e O Poder da Escuridão (Tolstoi). Na ala inglesa, A Profissão da Sra. Warren, de Shaw, figurou entre as principais vítimas da censura, que parecia bestificada por uma peça teatral tentar abordar seriamente questões de natureza sexual e moral.
Uma solução para as restrições impostas à liberdade de expressão artística, e que funcionava com algum sucesso, principalmente na França, era um teatro dedicado a apresentações privadas - como em clubes - que assim escaparia à atenção do censor e acabaria se livrando das exigências do teatro comercial. O Théâtre Libre, de Antoine, fundado em Paris, em 1887, servia de modelo para empreendimentos semelhantes na Alemanha (Freie Bühne, Berlim, 1889) e na Grã-Bretanha (Independent Theatre Society, Londres, 1891). Nesta época, entretanto, foi somente na França, em 1906, que o "lobby" anti-censura se viu vitorioso, com o fim de qualquer tipo de censura pré-estabelecida.
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
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