quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"O homem da tarja preta"

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Em busca do homem perdido


Lionel Fischer


Assim como toda moeda possui duas faces, todos nós também as possuímos - em alguns casos, bem mais de duas. Aqui estamos diante de um homem que exibe, por um lado, uma face tradiconal, em perfeita consonância com os valores vigentes: é casado, ama a esposa, tem dois filhos e uma profissão estável. Por outro, no entanto, pratica uma atividade que a tradicional sociedade jamais veria com bom olhos: todas as noites, maquiado como uma prostituta e combinando roupas masculinas e femininas (terno e gravata na parte superior do corpo, salto vermelho e meia-calça preta na inferior), navega na internet fingindo-se de mulher em busca de avenuras sexuais com qualquer tipo de homem - cabendo registrar que jamais as materializa.

Eis, em resumo, o enredo de "O homem da tarja preta", de autoria do psicanalista Contardo Calligaris. Após cumprir bela temporada em São Paulo, a montagem está agora em exibição no Teatro do Leblon, com a mesma equipe: a atriz Bete Coelho assina a direção - além de interpretar em off a mulher do protagonista - e Ricardo Bittencourt dá vida ao único personagem, que atende por idêntico nome.

Com 35 anos de profissão, Calligaris possui vasta experiência na questão da masculinidade: "Passaram por mim neste tempo homens comicamente perplexos quanto ao destino, a missão e a significação de seu gênero. Ser homem não é mais fácil do que ser mulher: a masculinidade é, para os próprios homens, um drama, pois ela é, ao mesmo tempo, uma obrigação (seja homem!) e um enígma (tudo bem, mas como?)", diz o psicanalista no release que nos foi enviado. E certamente está coberto de razão.

E no texto que escreveu fica perfeitamente claro que, se por um lado, o casal só consegue se satisfazer através de fantasias envolvendo outras pessoas e até formula projetos de torná-las reais, por outro desejaria que as coisas voltassem a ser como no início da relação, quando ambos se bastavam. Mas tudo leva a crer que esse retorno não será mais possível, ao menos em princípio. Então Ricardo recorre ao expediente já mencionado numa desesperada tentativa de entender, afinal, o que é ser macho, o que é ser homem.

Estamos, portanto, diante de uma proposta da mais alta pertinência. Ocorre, no entanto, que certamente pelo fato de ser psicanalista, Calligaris constrói um personagem que, sem deixar de ser interessante, soa um pouco irreal. Isto se dá pelo fato dele se fazer muitas perguntas, respondê-las e em seguida negá-las, tornando a levantar questões ainda mais complexas, para as quais encontra respostas que não o satisfazem. E assim prossegue ao longo da peça, exibindo uma capacidade teórica de falar sobre o que o aflige que dificilmente alguém tão dilacerado possuiria. Seja como for, o texto tem o poder de incitar o espectador a pensar sobre sua própria sexualidade, seu universo afetivo e possíveis caminhos para encontrar seu verdadeiro papel em um universo tão conturbado quanto o nosso.

Com relação ao espetáculo, Bete Coelho cria uma dinâmica cênica em total sintonia com o texto, valendo-se de marcações expressivas e sobretudo trabalhando com grande sensibilidade os tempos silenciosos, impregnados de dúvidas, angústias e eventualmente de um humor que traz em seu bojo componentes sem dúvida trágicos. E certamente o êxito de sua montagem muito se deve à ótima atuação que conseguiu extrair de Ricardo Bittencourt, que mesmo levando-se em conta o que já foi dito a respeito do personagem, nele mergulha de forma apaixonada, conseguindo materializar as principais questões que o atormentam.

Na equipe técnica, Flavia Pedras Soares assina uma cenografia correta e funcional, a mesma correção e funcionalidade presentes no figurino de Rodrigo Fraga, na iluminação de Wagner Freire e na trilha sonora de Renato Godá.

O HOMEM DA TARJA PRETA - Texto de Contardo Calligaris. Direção de Bete Coelho. Com Ricardo Bittencourt. Teatro do Leblon. Terças e quartas, 21h.

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