quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Macbeth"


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A tragédia da ambigüidade


Lionel Fischer


Por tratar-se de uma obra por demais conhecida, pensei inicialmente em me abster de resumir seu enredo. Mas então pensei nos jovens seguidores do meu blog e também nos possíveis jovens - e, compreensivelmente, ainda pouco informados - que lêem minhas críticas mensais no jornal Folha Zona Sul, e que talvez desconheçam a tenebrosa trama arquitetada pelo fabuloso bardo. Assim sendo, aí vai a sinopse da peça, extraída na íntegra do excelente release que nos foi enviado:

"Voltando de uma batalha, Macbeth e Banquo, generais do exército escocês do Rei Duncan, encontram três feiticeiras. Macbeth é saudado profeticamente por elas como futuro Barão de Cawdor e Rei da Escócia, e Banquo, como pai de uma linhagem de reis. Nobres escoceses trazem a mensagem de que o Barão de Cawdor havia sido executado por traição e que todas as suas terras e título passariam a Macbeth. A realização da primeira parte da professia impulsiona a ambição de Macbeth em se tornar rei. Em seu castelo, sua mulher, Lady Macbeth, lê com satisfação a carta do marido relatando o encontro com as bruxas e a esperança ali contida. Mais tarde, na noite em que o rei Duncan se hospeda no castelo de Macbeth, este decide matá-lo, com a ajuda de Lady Macbeth. O ato brutal dá início a uma série de assassinatos que Macbeth, já coroado rei, cometerá para se manter no trono. De bravo guerreiro e grande general do exército escocês que retorna vitorioso dos campos de batalha; de súdito leal, merecedor da mais alta confiança do rei, Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição".

Bem, agora que todos já tiveram acesso detalhado ao enredo, aconselho uma ida urgente ao Espaço Tom Jobim, pois nele está materializada uma excelente versão da mais curta e talvez mais sanguinolenta dentre todas as tragédia escritas por Shakespeare: "Macbeth". Com direção assinada por Aderbal Freire-Filho - um dos melhores encenadores do país e sem dúvida possuidor do mais belo sorriso do teatro brasileiro -, a peça chega à cena com elenco formado por Daniel Dantas (Macbeth), Renata Sorrah (Lady Macbeth), Andrea Dantas (1ª Bruxa, Velho, Lady Macduff e Dama), Camilo Bevilacqua (Rei Duncan, 2ª Aparição, Mensageiro e Siward), Charles Fricks (Ross, Seyton, 1ª Aparição e Garçon), Edgard Amorim (3ª Bruxa, Macduff, Assassino de Banquo e voz do Filho de Macduff), Erom Cordeiro (Malcom, Assassino de Banquo e Garçon), Felipe Martins (2ª Bruxa, Angus, Criado, Porteiro e Jovem Siward), Guilherme Siman (Donaldbain, Assassino de Lady Macduff, Caithness, Criado e Garçon), Marcelo Flores (Capitão, Lorde, Assassino de Lady Macduff, Menteith e 3ª Aparição), Ricardo Conti (Fleance, Lennox, Capitão e Garçon) e Thelmo Fernandes (Banquo, Assassino de Lady Macduff, Médico e Maitre).

Com relação ao texto, tratados já foram escritos sobre ele, e por gênios como Jorge Luis Borges, Thomas De Quincey, Manuel Bandeira, Harold Bloom, Wilson Knight, Friedrich Nietzsche, Friedrich Schlegel e Peter Brook - estes citados no programa - e muitos outros. Portanto, é muito difícil que alguém ainda consiga tecer considerações sobre a peça que acrescentem algo de novo ao que já foi dito. No entanto, e ainda que rubro de modéstia e calçando as sandálias da humildade, ouso um breve adendo.

Do enredo que reproduzimos, consta que "...Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição". Tudo bem. Mas uma vez que atinge seu principal objetivo (tornar-se rei), teoricamente nada mais teria a ambicionar e assim poderia dar um basta em seus "atos sanguinários" - a menos que ameaças concretas ao seu poder o obrigassem a repetí-los. No entanto, algo imprevisto (e não atrelado à realidade) começa a acossá-lo na forma de visões, que poderíamos perfeitamente interpretar como tardias manifestações de culpa. Ou seja: se por um lado Macbeth exerce pleno controle sobre o real, torna-se refém de seu inconsciente, fato que contribui para humanizá-lo, despí-lo da aparente psicopatia de que padeceria - salvo monumental engano de minha parte, psicopatas não sentem remorso e de nada se arrependem.

Em resumo: assim como todos nós, Macbeth é um homem, e, portanto, nada de humano lhe é estranho. Assim sendo, dependendo das circunstâncias, aspectos obscuros de nossa personalidade podem perfeitamente vir à tona, contrariando frontalmente nossa conduta cotidiana. E, para mim, este é o aspecto mais fascinante e aterrador do texto: a ambiguidade inerente à condição humana, pois se nos é cômodo admitir que contemos um Mozart, temos que admitir, ainda que relutantes, que também contemos um Hitler. O Mal e o Bem - para simplificar a questão - são faces de uma mesma moeda, que nem sempre conseguimos manipular da forma que desejaríamos. E por isso não somos deuses, apenas homens, sujeitos portanto a infinitas variantes, sublimes ou abomináveis.

Quanto ao espetáculo, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica de grande expressividade, conseguindo materializar os principais conteúdos propostos pelo autor. Isto se dá não apenas em função de marcações tão inventivas como imprevistas, que exploram com total propriedade a excelente cenografia de Fernando Mello da Costa (quatro grandes mesas de madeira que muitas vezes convertem-se em palcos), mas também de sua excelente atuação junto ao numeroso elenco, cabendo destacar a unidade do conjunto, assim como a clara compreensão que todos os intérpretes exibem não apenas do texto, mas da linguagem utilizada para convertê-lo em teatro.

Ainda assim, em uma montagem que tem dois protagonistas absolutos, seria injusto não tecer algumas considerações sobre suas performances - falar de todas seria literalmente impossível. Na pele de Macbeth, Daniel Dantas consegue ressaltar não apenas a cega fúria do personagem, mas também sua capacidade de reflexão, sarcasmo e convencimento. Na cena em que contrata os dois assassinos, por exemplo, Daniel opta por um tom coloquial, como se ali estivesse em causa uma coisa corriqueira e não o projeto de um assassinato, o que ressalta ainda mais o horror do mesmo. E na passagem em que é assombrado pelo fantasma de Banquo, durante o banquete, seu assombro e desespero eclodem em igual medida, "equilíbrio" sem dúvida nada fácil de atingir. E a mesma excelência se faz presente no desempenho de Renata Sorrah: sua Lay Macbeth nos causa horror com a frieza de seu maquiavélico plano, da mesma forma que nos gera compaixão quando a personagem é totalmente tomada pela loucura.

No complemento da ficha técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a ótima tradução de Aderbal e João Dantas, os atemporais figurinos de Marcelo Pies, a expressiva iluminação de Luiz Paulo Nenen e a maravilhosa trilha sonora de Tato Taborda, que contribuem de forma indiscutível para o êxito desta mais do que oportuna empreitada. Gostaria ainda de ressaltar o belíssimo programa de Ludmila Machado - prefiro chamar de "programa" porque acho um tanto pernóstico "design gráfico" - e as fotos feitas por Nenem, que detalham momentos dos ensaios.

MACBETH - Texto de William Shakespeare. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Renata Sorrah e grande elenco. Espaço Tom Jobim. Sexta e sábado, 20h30. Domingo, 20h.

3 comentários:

  1. Assisti tb e concordo com tudo com o que vc falou, mas tb temos que parabenisar a Produção que fez um lindo trabalho!

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  2. Brilhante crítica, belissimo espetáculo que nos muda desta realidade maniqueísta à la Avatar bem como da ditadura dos espetáculos comerciais e risíveis! A densidade do texto nos remete a nossa condícao humana, em toda sua complexidade. Parabéns a Aderbal, ao primoroso elenco, ao trabalho tao físico de Daniel, em texto titanesco, ao brilho de Renata, demasiada humana..., enfim a toda a troupe! Impressiona-me nesta crítica a ausência de referência à produção, afinal, um trabalho de tão grande apuro não nasce como mangas na estação, mas sim do intenso e esmerado esforço de toda uma equipe de bastidores! Parabéns a toda ela! Vida longa a esta peça!

    Pedro Colen (médico psiquiatra)

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  3. Essa estoria da beleza do sorriso do Aderbal lhe confere (a voce Lionel)o titulo de "O critico mais sensivel, detalhista, e revelador da familia dos criticos the teatro do Brasil na atualidade."
    Fui amigo, aluno, e ator do Aderbal no tempo do Centro de demolição e construção do espetaculo, um grupo de pesquisa teatral nascido no teatro Glacil Gill no ano de mil novecentos e oitenta e tantos..., e concordo com você em genero,numero e grau. O sorriso do Aderbal e realmente bonito.
    Quando alguem pergunta para o Aderbal qual sera a linha da direção do espetaculo, ele responde sorrindo, e fica tudo esclarecido.

    parabens por seu traballo Mr. Fischer.

    Alexandre, Danbury Connecticut, U.S.
    P.S. eu seu, vece escreveu este trabalho in 15 de janeiro, mas eu não pude resistir a fazer um comentario.
    tchau.

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