quinta-feira, 10 de junho de 2010

"Pela passagem de uma grande dor"

de Caio Fernando Abreu
Adaptação: André De La Crus

ELA - Lui? Alô? É você, Lui?

LUI - Eu.

ELA - O que é que que você está fazendo? Alô? Você está me ouvindo?

LUI - Oi.

ELA - Perguntei o que você estava fazendo.

LUI - Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo TV. Agora ia fazer um café. E dormir.

ELA - Hein? Fala mais alto.

LUI - Mas não sei se tem pó.

ELA - O que?

LUI - Nada, bobagem. E você? Que que houve?

ELA - Escuta, você não quer dar uma saída?

LUI - Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.

ELA - Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um...

LUI - Sabe o que é..

ELA - Lui? Alô, Lui? Você está aí?

LUI - Eu já estava quase dormindo.

ELA - Que música é essa aí no fundo?

LUI - Chama-se "Por um desespero agradável". Você gosta?

ELA - Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?

LUI - Uma cara aí. Um doido.

ELA - Como ele se chama?

LUI - Erik Satie.

ELA - Lui?

LUI - Digue.

ELA - Estou te enchendo o saco?

LUI - Não.

ELA - Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.

LUI - Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.

ELA - Não consigo dormir.

LUI - Você está deitada?

ELA - Estou, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.

LUI - O que é que que você estava lendo?

ELA - Nada, não. Uma matéria numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.

LUI - Sabia.

ELA - Horrível, não?

LUI - E os sprays?

ELA - O que?

LUI - Os sprays. O que é que tem os sprays?

ELA - Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer tubo, entende? Faz assim...Ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?

LUI - Ozônio.

ELA - Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.

LUI - Já deve estar toda furadinha então.

ELA - O que?

LUI - Deve estar toda furada. A camada. A biosfera. O ozônio.

ELA - Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?

LUI - Estou cansado.

ELA - Não estou te alugando? Você sempre diz que eu te alugo. Como se fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar condicionado. Que tipo de casa você queria ser, Lui?

LUI - Eu não queria ser casa.

ELA - Como?

LUI - Queria ser apartamento.

ELA - Sei, mas que tipo?

LUI - Uma quitinete. Sem telefone.

ELA - O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?

LUI - Um chá, eu ia fazer um chá.

ELA - Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.

LUI - Não tem mais pó. E acabei de me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, quer ver? Guardei aqui dentro.

ELA - Chá não tem bula. Bula é de remédio.

LUI - Tem sim, esse chá tem. Quer ver só?

ELA - Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Lui? Encontrou o negócio do tal chá?

LUI - Encontrei.

ELA - Você está esquisito. O que é que há?

LUI - Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? Você entende um pouco de inglês, não é? This excellent for all types of nervous disorders, paranóia, schizophenia, drugs effects, digestive problems, hormonal diseases and other disorders...entendeu?

ELA - Entendi...é um inglês fácil. Qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? Inglês?

LUI - Hein?

ELA - Nada. Vai fazer teu chá.

LUI - Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. Não é essa que é boa para a pele?

ELA - Não sei. Vou desligar.

LUI - Você ligou o rádio?

ELA - Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?

LUI - "Por um desespero agradável". Não, é só "Desespero agradável".

ELA - Agradável?

LUI - Agradável. Por que não?

ELA - Engraçado. Desespero nunca é agradável.

LUI - Às vezes, sim. Cocaína, por exemplo.

ELA - Você só pensa nisso?

LUI - Não...penso em fazer um chá também.

ELA - Uma pena que você não queira mesmo sair. Estou pensando em abrir uma garrafa de vodka.

LUI - Vou fazer meu chá.

ELA - Como é mesmo que se pronuncia? Esquizôfrenia?

LUI - Não, é squizofrênia. Tem acento nesse "e" aí. E se escreve como esse, cê, agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.

ELA - Tá bom.

LUI - Tá bom.

ELA - Tchau, até mais, boa-noite, um beijo.

* * *

Um comentário:

  1. "Quitinete sem telefone". Muito bom, achei graça nisso até o final da conversa deles e continuo achando.

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