A semiologia dá um salto de quantidade
(O artigo que se segue exibe a entrevista concedida pelo semiólogo, professor e escritor Umberto Eco a Emílio Pozzi)
Emílio Pozzi - Em semiologia, como demonstrou o Congresso Internacional de Milão, o espetáculo (cinema e teatro) ocupa um lugar de grande relevo. Professor Umberto Eco, como julga o fenômeno? Trata-se de uma instância que nasce estre os estudiosos do espetáculo ou de um fenômeno objetivo de desenvolvimento?
Umberto Eco - Direi que os dois fatos novos do Primeiro Congresso Internacional de Semiótica foram a explosão da música e do teatro. Tratava-se de duas artes em que o desenvolvimento de uma pesquisa semiótica fora muito lento pelas razões expostas. A música parecia um universo no qual não há significação, o teatro um universo no qual há demais. Por motivos opostos hesitava-se em aproximá-los. Nos últimos dois anos tem havido, ao contrário, uma febre de investigações, uma reconstrução de pedigrée (redescoberta de pioneiros, de semiólogos que ignoravam sê-lo).
Deixemos de lado a música e pensemos no teatro. Há dois anos, durante o Festival de Veneza, fez-se uma mesa-redonda sobre os problemas de semiótica teatral: os debates efetivos pareciam muito desordenados, a coisa mais consistente era uma coletânea de textos pioneiros, preparada por Giuseppe Paioni e Luciano Codignola, com uma vasta bibliografia. Entre aquele encontro e o Congresso atual houve muito trabalho. Somente no curso DAMS de Bolonha este ano ocorreram duas iniciativas independentes, um seminário sobre semiótica teatral e uma série de conferências sobre a aplicação de métodos informacionais ao teatro.
Mas havia um nó a superar, a tendência a considerar-se o objeto de uma semiótica teatral num nível simplificado: para alguns o texto escrito, para outros a palavra falada, para outros a gesticulação do ator, e em seguida a operação de direção cênica, a iluminação, ou a cenografia e assim por diante. Pouco a pouco tomou corpo a idéia de que nos encontramos diante de um fenômeno "multinivelar" no qual estão em jogo sistemas sígnicos diferentes, que devem ainda ser analisados antes de se correr o risco de apresentar a definição do objeto integrado daí resultante.
Mas compreendeu-se também que o teatro é em tal sentido uma Terra Prometida da semiótica, porque a capacidade humana para produzir situações sígnicas desde o uso do próprio corpo até a formação, até a realização de imagens visuais, desenvolve-se aí completamente - o teatro é o lugar de condensação e convergência de "semióticas" diversas. E esta consciência toma vulto seja entre os produtores de espetáculo seja entre os teóricos puros (tão puros que até esse momento nunca haviam sido teóricos de teatro, mas lógicos ou matemáticos).
É curioso que o maior número de aplicações matemáticas a uma linguagem (depois da verbal) esteja se verificando com o teatro, e penso no trabalho dos estudiosos rumenos, Solomon Marcus à frente de todos. Justamente devido à dispersividade sígnica que é própria do teatro, devido à necessidade de encontrar algoritmos que estabeleçam ordem entre tantos níveis aparentemente desconexos...
E.P. - Entre cinema e teatro, é o primeiro que ocupa um lugar proeminente em semiologia. Qual a razão?
U.E. - Historicamente falando, a semiologia do cinema precedeu à do teatro em pelo menos dez anos. Antes de mais nada no cinema há uma signicidade dominante, a da filmadora, que restitui o fotograma. Todo o resto, assunto, preparação do ator, a mesma disposição de uma natureza mais ou menos fictícia, de uma realidade mais ou menos ilusória a ser tomada, está "por trás".
No teatro qualquer pessoa pode ainda acreditar encontrar-se diante de uma realidade bruta, sem mediação de signos: no cinema, como na palavra ou na imagem, qualquer pessoa percebe que está se defrontando com um significante visual que remete a qualquer outra coisa. Assim eram eliminados desde o princípio alguns equívocos mais grosseiros.
A segunda razão é que, para fazer semiótica, é preciso saber que se está trabalhando em um texto e qual é esse texto. No cinema, o texto é materialmente "testável": é a "pizza", o filme ou, se quiserem, a imagem sobre a tela. Só se pode começar a partir daí. No teatro, como já foi dito, a definição do texto é mais imprecisa: o texto escrito? O texto representado? E qual, entre todas, as representações possíveis? Entre o mesmo "Seis personagens à procura de um autor" realizado, digamos, por Strehler e por Enriquez, qual é o texto sobre o qual se deve trabalhar? O de Pirandello, independentemente da interpretação do diretor? No cinema um equívoco do gênero não acontece. Ombre rosse é sempre Ombre rosse seja projetado no centro de Milão, ou numa sala paroquial em Val d'Aosta (naturalmente poder-se-ia inserir nele a relação com o público, mas é uma segunda fase, e também aqui o teatro coloca um maior número de problemas).
E.P. - Verifica-se ao contrário escassa atenção à televisão. Por quê?
U.E. - Porque a televisão parece ter a mesma simplicidade textual do cinema e na verdade é mais ambígüa do que o teatro. O que significa o Telejornal a uma transmissão de "Édipo Rei"? Sem dúvida, uma particular dimensão do vídeo, uma granulação da imagem eletrônica, uma situação social de audição. Mas também esta situação de audição é menos controlável no teatro (sem falar no cinema), onde o ritual da participação paga programada, coloca uma série de convenções que podem ser descritas universalmente.
Por isso para fazer uma semiótica completa da televisão creio que seja preciso lidar justamente com a semiótica do cinema e com a do teatro, para depois então ver que variações assumem estas modalidades comunicativas quando se inserem no quadro televisivo. Uma semiótica "pura" da televisão poderia referir-se apenas à filmagem direta e já foi até tentada.
E. P - Se houve algo de novo, que novidade trouxe o congresso para estes setores do espetáculo?
U.E. - Receio que seja cedo para responder. Porque a finalidade do congresso era a de alargar e reforçar a tensão interdisciplinar. Se houve algo de novo para uma semiótica do teatro isto terá acontecido na medida em que os estudiosos de teatro assistiram também às sessões sobre música ou sobre arquitetura e vice-versa.
E.P - Os resultados do congresso permitem afirmar que houve um "salto de qualidade"?
U.E. - Prefiro falar de um salto de quantidade, o que em certos casos é a mesma coisa. O fato de que pela primeira vez filósofos ingleses da linguagem, musicólogos canadenses, lógicos poloneses e arquitetos franceses (para citar alguns exemplos) se tenham persuadido de que existe um objeto comum de pesquisas, mesmo havendo variedade dos métodos, das escolas, dos pressupostos ideológicos. Por salto de quantidade entendo também que o congresso produziu alguns "descolamentos" e algumas recuperações históricas.
Por exemplo, o publicismo corrente identificava semiologia e estruturalismo, o que é verdade só para uma parte destes estudos. O congresso descolou esta imagem por demais simplista e o fez realizando recuperações históricas, reencontrando os nexos com a filosofia analítica da linguagem, com o pragmatismo peirciano, a tradição da lógica formal, com as experiências dos psicólogos e assim por diante. Todas essas coisas que os especialistas já conheciam, mas um congresso serve também para difundir uma imagem pública de uma disciplina.
O mesmo descolamento, que aliás já estava ocorrendo há algum tempo, aconteceu entre lingüística e semiótica: o que não quer dizer que semiótica ainda não tenha muito que aprender com a lingüística, mas o que se alargou foi o campo dos empréstimos, dos débitos e dos créditos. Este fato é muito importante para uma semiótica do teatro, onde o elemento lingüístico entra somente numa porcentagem (que não me atrevo a definir).
E.P. - Pode haver uma relação entre semiologia e prática crítica e entre semiologia e prática produtiva?
U.E. - Que haja uma relação entre semiótica e prática crítica é indubitável. Não que a semiótica seja uma forma de crítica tout court ou que substitua a crítica, mas certamente lhe oferece instrumentos muito refinados. E sobre isto não há discussão. Ao contrário parece arriscado para alguns afirmar que um artista possa tirar vantagem do estudo das condições abstratas do sintema de significação em que trabalha. Devo dizer que sempre soube que os grandes escritores lêem muito o dicionário e a gramática. Para manejar a língua é necessário conhecê-la bem, e profissionalmente, os "primitivos" não existem, e quando são grandes conhecem as leis da língua, quem sabe até pelo faro, mas as conhecem.
O mesmo vale para os outros sistemas sígnicos. É claro que para um artista não basta estudar para ser grande, mas um grande artista que não estuda, não o conheço. Por isso "ó homem de teatro, eu vos exorto ao estudo das semióticas. Mal não lhes fará, exceto àqueles aos quais faria mal de qualquer maneira".
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Artigo extraído do livro "Semiologia do teatro" /Editora Perspectiva/1978. Tradução de Reni Chaves Cardoso.
terça-feira, 22 de junho de 2010
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