terça-feira, 29 de junho de 2010

Virgínia Woolf

Lionel Fischer

Como os queridos seguidores deste blog sabem, a maioria dos artigos que coloco nele se referem ao teatro. No entanto, vez por outra abro uma exceção, como o faço agora. Tentando organizar em pastas a infinidade de artigos que já escrevi (proeza que jamais levarei a cabo de forma satisfatória, a não ser que surja em minha vida uma mulher dotada de infinita paciência e boa vontade), hoje me deparei com uma matéria que escrevi para o jornal O Globo, em 1989, a respeito do lançamento do livro "Diários de Virgínia Woolf", editado pela Companhia das Letras, e que talvez ainda possa ser adquirido. Por tratar-se de uma leitura fascinante e que tem como protagonista aquela que muitos consideram a maior escritora de língua inglesa de todos os tempos, reproduzo a seguir a referida matéria, acreditando que muitos de vocês possam se sentir estimulados a ler (ou reler) este livro inesquecível.

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Segredos revelados

"Acho que vou ficar louca. Estou ouvindo vozes e não consigo me concentrar no trabalho. Não consigo continuar lutando". Num último rasgo de lucidez, a mulher que redigiu essas linhas percebe que a batalha que travara durante a vida contra a loucura chegava ao fim. Então, só vislumbra um caminho, que a leva até as margens do rio Ouse, que passa nos fundos de sua casa. Se desfaz do chapéu e da bengala, enche o casaco de pedras e se atira na água. O corpo só é encontrado semanas depois, algo desfigurado pela ação do tempo, das águas e dos peixes. Sobram, porém, indícios que eliminam qualquer esperança de um possível engano: o cadáver resgatado das águas naquela manhã é mesmo o de Virgínia Woolf.

Os segredos dessa mulher de personalidade complexa, incansável batalhadora, que fundou e administrou a Editora Hogart Press - destinada a lançar novos autores -, encheram cinco diários, num total de 3.500 páginas. A síntese desses diários a Companhia das Letras coloca à disposição do leitor, organizada por Quentin Bell, sobrinho da autora e seu principal biógrafo, sob o título "Diários de Virgínia Woolf".

Nascida em Londres, em 1882, filha de um dos mais célebres filósofos e críticos literários do período vitoriano, Sir Leslie Stephen, desde muito cedo Virgínia Stephen - seu nome de solteira - fez da imensa biblioteca do pai seu recanto avorito. Aproveitando-se do fato de que em sua época as meninas eram em geral educadas em casa, organizava todo o seu tempo em função dos livros. Aos 13 anos, a vida pacata e organizada que levava sofre dois terríveis golpes, que se não chegam a comprometer sua vocação de escritora, contribuem de forma decisiva para abalar sua estrutura psíquica. Primeiro, a morte de sua mãe, e em seguida uma tentativa de estupro por parte de seu meio-irmão George. Desesperada, tenta se atirar por uma janela, mas é contida. Embora salva da morte, jamais conseguiria se libertar da idéia do suicídio como solução para suas angústias, assim como nunca se entregaria totalmente a um homem. Talvez por isso tenha se casado com o aristocrata Leonard Woolf, homossexual confesso.

Autora de nove romances, dos quais dois são considerados obras-primas - "Orlando" e "As ondas" -, comparada a Proust e a Faulkner pela ruptura da estrutura narrativa do romance tradicional que imprimiu à maioria de suas obras, Virgínia Woolf foi também brilhante crítica literária e ensaísta. Admirada por intelectuais e artistas como T.S.Elliot, E.M.Foster, Bertrand Russel e o economista John Maynard Keynes, entre outros, fundou um movimento que ficou conhecido como o Círculo de Bloomsbury, que durante algum tempo exerceu em Londres grande hegemonia intelectual.

Por ser uma obra de natureza íntima, em princípio destinada a não ser lida por ninguém, todo diário tem como vantagem o pressuposto de que o autor não mentirá jamais, que se exporá ao máximo e sem nenhum pudor. E é o que faz Virgínia Woolf: desnuda por completo sua complexa e contraditória personalidade. Mas fala igualmente do mundo que a rodeia, de seus amigos e inimigos, dos hábitos e costumes de uma sociedade que definia como preconceituosa e sumamente hipócrita. São tão surpreendentes e cáusticas suas opiniões que, ao invés de comentá-las, talvez seja mais interessante transcrevê-las, como se estivéssemos entrevistando aquela que muitos consideram como a maior autora de língua inglesa.


Lar - Local onde se exerce, no seu mais completo esplendor, a tirania masculina.

Sexo - Sexo e poder se confundem.

Livros - Todo livro ilícito é de longe mais interessante do que os livros decentes, que ficam o tempo todo respeitando as ilusões.

Milton (autor de "O paraíso perdido") - Foi o primeiro machista.

Arte de escrever - O pior na arte de escrever é que a gente depende demais de elogios.

Honestidade - As únicas pessoas honestas são os artistas. Os reformadores sociais e os filantropos nutrem tantos desejos vergonhosos sob a máscara do amor ao próximo que no fim há mais defeitos a aportar neles do que em nós.

Vida - É tão trágica, tão semelhante a uma estreita faixa de pavimento sobre um abismo. Olho para baixo, sinto vertigem, não sei se conseguirei caminhar até o fim.

Doença - Tenho de tomar nota dos sintomas da doença, para reconhecê-la da próxima vez. No primeiro dia, a gente se sente desgraçada; no segundo, feliz.

"Ulysses" (de James Joyce) - Prolixo, insuportável, pretensioso e vulgar.

Vita (Vita Sack-ville-West, escritora e mulher extravagante com quem Virgínia Woolf teria mantido um romance) - Sim, gosto dela: do seu andar majestoso, de suas pernas. Seria capaz de anexá-la para sempre a meus objetos de uso pessoal.

Rompimento com Vita - Está muito gorda, a própria dama nobre indolente, a vitalidade perdida, sem interesse por livros; não tem escrito poemas; só se interessa por cães, flores e construções. É o fim de tudo. Mas não há rancor, não há desilusão, só um pouco de vazio.

Seus semelhantes - Eu não amo meus semelhantes. Detesto-os. Desdenho-os. Deixo-os cair sobre mim como sujos pingos de chuva.

Seu cérebro - É um colapso de nervos total em miniatura.

Feriado - É o dia ideal para se passear no cemitério à procura dos túmulos da família.

Relação conjugal - É uma vida automática, mas em cada semana há pelo menos um dia em que se forma, entre marido e mulher, uma pérola de sensações, que é muito mais plena e sensível por causa dos dias rotineiros, inconscientes e mecânicos. O que equivale a dizer que o ano é marcado por momentos de grande intensidade.

Depressão - Desço ao fundo do poço e nada me protege do assalto da verdade. Lá no fundo não sou capaz de escrever; existo, no entanto. Sou. Então me pergunto: quem sou?

Sociedade - O valor da sociedade é que ela nos rechaça.

Poesia - O grande período da poesia, o de Shakespeare, foi subjetivo; o nosso é objetivo; as civilizações morrem quando ficam objetivadas. Os poetas só são capazes de escrever quando dispõem de símbolos.

Freud - É muito velho, encarquilhado e de feições contraídas. Tem o olhar brilhante de um macaco, movimentos espasmódicos paralisados, tartamudo; mas perspicaz.

Censura - Andei pensando nos censores. Que vultos imaginários nos admoestam? Se digo sim, fulano vai me chamar de emotiva. Se aquilo, vai me achar burguesa. Os livros me parecem cercados por um círculo de censores invisíveis.

Idéias - Qualquer idéia é mais real do que todo o infortúnio da guerra. Pela idéia existo. É a única contribuição que posso dar.

Woolf para as pessoas - Sou importante para mim mesma. No entanto, sem nenhuma importância para as pessoas: como a sombra passando sobre as colinas.

Para si mesma - Sou pretensiosa, medíocre. Uma impostora.

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