Máximo Górki
Boris Schnaiderman
Ao concluir, em fins de 1901, sua primeira peça, "Pequenos burgueses", Górki na realidade estabelecia um dos marcos de uma vasta reflexão sobre o mesmo tema, e que se desdobra através de toda a sua obra. Nesta, o arrojo, o ímpeto para uma vida mais digna, choca-se com o arranjado, o rotineiro, luta contra esse estado de coisas, debate-se contra o que há de retrógrado e desumano, e semelhante luta constitui uma das caracacterísticas essenciais do humanismo gorkiano. Desde os primeiros contos até o romance derradeiro, "Vida de Klim Ságuin", Górki expõe os diversos planos em que esse entrechoque se dá. Os próprios vagabundos de suas primeiras histórias são também indivíduos que não encontram outro meio de reagir contra uma sociedade baseada na hipocrisia, na sujeição, numa vida medíocre e mesquinha.
Górki se dedicou com muita minúcia à descrição e à análise das forças que ele considerava contrárias à instauração de uma vida mais decente. Às vezes, o autor não se continha, vociferava contra a injustiça, arrebatava-se e interrompia uma narração fluente. Isto lhe foi apontado pela crítica, e é preciso reconhecer que fez um esforço tremendo para sobrepujar este defeito. Em muitas ocasiões, porém, o fluir natural da existência sobrepunha-se nele ao homem apaixonado, e a própria veemência surgia num contexto mais consentâneo com a realização estética.
Deixando as personagens desenvolverem-se numa linha inerente à índole de cada um, abstendo-se de atacá-las apenas pelo que elas eram, e procurando compreendê-las em função de uma realidade social, Górki atingia um estágio bem mais elevado de realização. Basta comparar, neste sentido, o esquematismo de certas personagens do seu famoso romance "A mãe" e a vivência autêntica com que apresentou os seus vagabundos insolentes e, mesmo, um relegado da sociedade como o espião policial de "Vida de um homem inútil" (romance editado no Ocidente sobretudo com o título de "O espião).
Neste sentido, o teatro constituiria para ele uma disciplina. A simples necessidade de deixar as personagens falarem por si já implicava um esforço de autodomínio. Isto não quer dizer que o panfletário, o homem da gesticulação e do discurso, não se imiscua às vezes no teatro de Górki, através de certas personagens. No palco, porém, este defeito se torna por demais evidente, e o próprio autor passaria a considerar detestáveis algumas peças em que isto aparece com freqüência, como é o caso de "Os veranistas" e "Os filhos do sol". E a capacidade de definir um indivíduo em poucos traços, por suas próprias palavras, tão flagrante em Górki, que, neste sentido, foi um verdadeiro discípulo de Tchecov, encontrava no palco um campo adequado à realização.
A luta contra o meio e o espírito pequeno burguês foi um dos objetivos de toda a atividade literária de Górki. Em primeiro lugar, torna-se necessário precisar um pouco o conceito. A palavra russa mieschtchanin vem sendo traduzida no Ocidente como "pequeno burguês", mas ela tem sentido mais lato. A rigor, era o homem que não pertencia nem à nobreza, nem ao campesinato, nem ao clero, isto é: o habitante das cidades. Em suma, na diferenciação entre o conceito expresso por essa palavra e o que nós costumamos expressar por "burguês" aparece a diferenciação entre o sentido mais antigo da palavra no Ocidente e a sua acepção corrente hoje em dia.
Por exemplo: em "Ganhando meu pão", segundo volume da trilogia autobiográfica de Górki, este conta que ia com a avó levar esmolas a mieschtchane (plural de mieschtchanin), e, evidentemente, seria ridículo, numa tradução, escrever que eles davam esmolas a "burgueses". De modo geral, o burguês enriquecido era designado por outros nomes, de acordo com a ocupação profissional. A palavra refere-se ainda a "gosto burguês", e tem igualmente um sentido moral, sendo o mieschtchanin, nesta acepção, o homem mesquinho, inimigo de tudo o que é grande e belo. Evidentemente, na peça "Pequenos burgueses", o vocábulo é empregado num sentido que justifica este título em português. Mas, para que se compreenda a posição de Górki em face do problema em seu conjunto, é preciso levar em conta a existência de outras acepções.
O velho Bessemenov da peça é apenas um dos elementos da realidade que o escritor fustigou sob o nome de mieschtchane. Ao examinar o burguês como indivíduo, Górki apresentava uma realidade em tons cambiantes, rica de matizes, em vez de se deter nos contrastes de branco e preto. Veja-se, por exemplo, a compreensão que tinha da marginalidade em que determinados indivíduos da burguesia são reduzidos a viver dentro de sua própria classe. A personalidade central de "Fomá Gordiéiev", seu primeiro romance, é um indivído exuberante, tolhido em sua expansão e vitalidade, pelo meio mesquinho de uma cidade provinciana.
E a Tatiana de "Pequenos burgueses" é bem a expressão das existências inutilizadas, destruídas pelo meio burguês. A reflexão gorkiana sobre os diferentes caminhos do indivíduo, dentro da classe burguesa, levou-o a examinar até o burguês que se revolta contra sua própria classe: foi o caso de Sava Morozov e outros industriais russos que financiaram o movimento bolchevique, bem como o de Nicolai Schmidt, dono da melhor fábrica de móveis finos de Moscou, preso pela polícia política por ocasião da revolta de dezembro de 1905, sob a acusão de conivência com os revolucionários, e torturado barbaramente, fato que provocou um artigo indignado de Górki.
A análise dos tipos da burguesia permitiu-lhe escrever seu romance mais vigoroso, "O negócio dos Artamonov", verdadeira saga de uma família de industriais, e o mesmo tema lhe inspiraria a peça em que surge a sua personagem teatral mais poderosa: o velho burguês de "Iegor Bulitchóv e Outros", o homem sem escrúpulos e diabolicamente lúcido, cercado de uma chusma de medíocres aproveitadores, e cujo apego à existência, cuja vitalidade torna a sua morte profundamente trágica. E é ainda a análise penetrante do meio burguês um dos elementos que mais contribuem para a solidez do importante documento literário e humano que é a trilogia autobiográfica de Górki.
Em face disso, parece um paradoxo o tom monocórdio da abordagem que ele, tão celebrado como o fundador da literatura proletária, faz do tipo do operário. Se isto é bem evidente no romance "A mãe", conforme já foi apontado inclusive por críticos literários marxistas, entre os quais Lunatchárski, o fato é sobremaneira gritante no teatro. Para Górki, o operário é um ser quase ideal, enquanto o burguês é freqüentemente cheio de altos e baixos, instável, contraditório. Se isto já aparece em certa medida no personagem Nil, de "Pequenos burgueses", será muito mais evidente em "Os inimigos", verdadeira ilustração cênica do princípio marxista da luta de classes.
Ali aparece, entre os burgueses, toda uma gama de tipos psicológicos, desde o burguês liberal, que procura atenuar os rigores da exploração capitalista, sem renunciar às prerrogativas de classe, o que resulta num fracasso completo, até os burgueses que se sentem estranhos em seu próprio meio, e, do outro lado, os exploradores conscientes e coerentes com sua condição.
Górki preocupa-se, e muito, com a situação do intelectual na sociedade burguesa. Esta preocupação apareceu nele desde os primeiros escritos, suscitando então as seguintes palavras de Tchecov, numa carta: "Na descrição que você faz de pessoas da inteliguêntzia, sente-se uma tensão, uma espécie de circunspecção, o que não se deve ao fato de os ter observado pouco; não, você os conhece, mas não sabe seguramente por que lado os abordar".
Esta observação tem fundamento, se levarmos em conta escritos como o romance "Várienka Oliéssova", mas, no desdobramento da obra gorkiana, ulterior à morte de Tchecov, a análise dos tipos intelectuais proporcionaria ao autor alguns dos seus pontos altos, embora, por vezes, descambasse para a caricatura fácil e se deixasse tomar por rancores de momento, por idiossincrasias. Em conjunto, o seu contato com o meio intelectual russo, o conhecimento direto que teve da evolução das idéias e dos movimentos culturais, constituíram elemento de vitalidade.
Numa nota ao conto "O vigia", escreveu: "A sensação alarmante do afastamento espiritual da inteliguêntzia, como princípio racional, em relação à espontaneidade do popular, perseguiu-me toda a vida com alguma insistência. Em meu trabalho literário, abordei mais de uma vez esse tema, e ele suscitou contos como "Meu companheiro de estrada" e outros. Poco a pouco, esta sensação transformou-se num pressentimento de catástrofe. Encerrado, em 1905, na Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, tentei desenvolver o mesmo tema na peça fracassada "Os filhos do sol". Se a separação entre a vontade e a razão representa um difícil drama na existência do indivíduo, na vida do povo esta separação constitui uma tragédia".
"A separação entre a vontade e a razão" - não será esta uma das características da personagem Piotr de "Pequenos buirgueses"?. O próprio Górki escreveu: "Piotr deseja viver sossegado, sem obrigações com as pessoas, mas sente que viver assim é indigno do homem, procura uma justificação para si mesmo, não a encontra e se irrita". Por outro lado, esta personagem constitui a ponte de ligação entre o intelectual que chegou a se revoltar e os pequenos burgueses e eficientes em sua condição.
A abordagem de semelhantes problemas de um indivíduo se entrelaça em Górki com a reflexão sobre os problemas de todo um povo. E a indignação sobre o verdadeiro caráter do "pequeno burguês" levou o escritor a ver traços do mesmo espírito em manifestações do gênio russo, onde provavelmente ninguém mais seria capaz de procurá-los. Assim, constitui clamoroso escândalo, no mundo intelectual, a apresentação, feita por Górki num ensaio, da obra de Dostoiévski e de Tolstói, como manifestações do espírito pequeno burguês.
Ninguém mais do que o próprio estava fascinado pela obra desses gigantes. Mas, na hora em que os melhores homens russos procuravam um meio de luta contra a opressão, contra a canga que pesava sobre um povo inteiro, o primeiro erguia-se para exclamar: "Humilha-te, homem orgulhoso", e o segundo passava a pregar a não-resistência ao mal pela força. Neste sentido, pregando o conformismo, a resignação, eles iam de encontro dos anseios dos "pequenos burgueses" de apoiar o estado de coisas vigente. Para Górki, porém, o problema era de luta e de afirmação, de revolta e desafio, consistia em derrubar o que era mesquinho e sufocante, em afirmar o direito à vida, à alegria.
Górki afirma o amor, mas também a necessidade do ódio. Na peça "Os bárbaros", Lídia diz, referindo-se a uma das personificações gorkianas do espírito pequeno burguês: "Como isto é simples! Ele trocou a filha por um pouco de prata ordinária. E querem obrigar-nos a ter pena dessa gente, amá-la até...isto agrada a vocês? Há de adiantar-lhes a comisaração? E pode-se acaso amá-los?". Também no famoso monólogo de Sátin, na peça "No fundo" (apresentada no Brasil com o título de "Ralé"), a personagem diz: "É preciso respeitar o homem! Não ter pena dele...não o rebaixar com a comiseração...".
Para Górki, nada pode haver de mais contrário à dignidade humana que a aceitação passiva do sofrimento ou a sua glorificação, conforme expressou na peça "O velho". Nesta, um homem vítima de erro judiciário consegue fugir ao degredo na Sibéria e adaptar-se plenamente à sociedade capitalista. É dono de uma empesa de construção, há uma mulher que o ama, tem todos os elementos para ser feliz. Mas, de repente, aparece um velho, de alforje às costas, seguido de uma mocinha abobada. O velho foi companheiro de degredo de Mastakov (assim se chama o homem) e não tolera que ele tenha escapado ao castigo. "Eu cumpri minha pena, você não. Ninguém pode fugir ao castigo, ao sofrimento; cada um temque pagar pelo que fez".
Ele atormenta a tal ponto Mastakov que este acaba suicidando-se. E esta réplica à exaltação dostoievskiana do sofrimento, às suas teorias sobre a aceitação do castigo como necessidade, constitui um dos pontos máximos alcançados por Górki em seu teatro. Nesta peça, a expressão do espírito de "pequeno burguês" é o velho, o santificador do sofrimento, e não o homem adaptado à sociedade capitalista, o realizador, o que é abatido pela perfídia, pela mesquinhez, pela torpeza.
A reflexão de Górki sobre o pequeno burguês relaciona-se claramente com a sua reflexão mais geral, sobre a condição humana, sobre a verdade e a justiça. Assim, quando Tatiana, em "Pequenos burgueses", volta-se contra as verdades que o velho Besssmenov lhe atira ao rosto, e afirma que existem duas verdades, isto é, a verdade do mundo dos opressores, estático, petrificado, e que deseja conservar-se como tal, e a verdade dos que se sentem oprimidos pela primeira, dos que não conseguem mais enquadrar-se nela, a pesonagem expressa uma idéia cara ao autor.
A preocupação com a verdade é uma constante no teatro de Górki, como aliás em toda a sua obra. Assim, ainda no monólogo famoso de "No fundo", Sátin afirma: "O homem - eis a verdade!". Na mesma peça, Luká mostra a inutilidade de uma procura de certas verdades, que podem ser nocivas, sufocantes. Em "Os veranistas", Riúmin retruca a outra personagem, que falava da necessidade de se ser sincero com as crianças, de não esconder delas a verdade: "Ora, isto é arriscado! A verdade é rude e fria, e nela está sempre escondido o veneno sutil do ceticismo". E adiante, num sentido mais geral: "Sou contra esses desnudamentos, essas tolas tentativas de arrancar da vida as belas vestes da poesia. É preciso enfeitar a vida!".
Mas, se esta frase se repete tantas vezes nos escritos de Górki, já a personagem Protassov, em "Os filhos do sol", encontra maneira menos comum de abordar o mesmo tema: "Os velhos têm raramente razão...A verdade está sempre com o recém-nascido".
Também outros argumentos relacionados com o tema do pequeno burguês podem ser encontrados tanto no teatro como na ficção ou nos escritos críticos e polêmicos de Górki. Pode-se dizer que há um verdadeiro entrelaçamento entre o que dizem as suas personagens teatrais e os seus tipos de ficcão. É é inegável que a profunda verdade humana existente em sua obra teve no teatro alguns dos momentos de mais completa realização.
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Prefácio extraído da edição da peça "Pequenos burgueses"/Editora Brasiliense, 1965. Tradução de Fernando Peixoto e José Celso Martinez Corrêa. OBS: mais informações sobre o autor estão colocadas lá no início do blog, também escritas por Boris Schnaiderman, e constam do mesmo volume.
terça-feira, 1 de junho de 2010
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