terça-feira, 5 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Outros tempos"

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Pinter em excelente versão


Lionel Fischer


Ator, diretor, poeta, roteirista e incômodo ativista político, o britânico Harold Pinter (1930-2008) também é considerado um dos expoentes do chamado Teatro do Absurdo, ao lado de Samuel Beckett e Eugène Ionesco. Escreveu 29 peças teatrais, que, embora abordem diversificados temas, não raro possuem em comum o mesmo ponto de partida: pessoas normais têm seu cotidiano abalado por algo inesperado.

E é mais ou menos o que acontece em "Outros tempos", em cartaz no Espaço Sesc Arena. Pedro Freire assina a tradução do texto e a  direção do espetáculo, que tem elenco formado por Cristina Flores (Ana), Otto Jr. (Deeley) e Paula Braun (Kate).

No presente caso, o termo inesperado pode parecer inadequado, já que o casal Deeley e Kate aguarda em sua casa a visita de Ana, amiga da anfitriã quando ambas eram bem jovens e que há 20 anos não se encontram - estando este encontro agendado, obviamente que não é inesperado. 

Mas este se faz presente a partir do momento em que a trama começa a fugir do realismo e enveredar por caminhos que suscitam uma série de especulações, sendo que algumas, totalmente pertinentes, constam do release que me foi enviado:

"...talvez as duas mulheres tenham sido amantes, talvez não; talvez Deeley e Ana tenham tido um caso no passado, talvez não; talvez Kate e Ana sejam a mesma pessoa; talvez o marido esteja paranóico e toda a ação se passe em sua cabeça..."

Ou seja: cada espectador está livre para fazer a sua leitura. Mas seja ela qual for, há algo inquestionável: o progressivo e brilhante jogo de poder que o autor cria durante o qual cada personagem luta para impor sua versão dos fatos abordados. Valendo-se de diálogos cuja elegância, contundência e humor não estão isentos de crueldade, Harold Pinter evidencia aqui toda a sua genialidade. 

Mas, como se sabe, Pinter é um autor muito difícil de ser encenado, posto que seus textos são sempre plenos de ambigüidades, jamais oferecendo uma linha clara a ser seguida. Outra dificuldade - ao menos neste caso - reside na absoluta necessidade de se criar uma dinâmica cênica que, a exemplo do texto, como já foi dito, vá aos poucos escapando do realismo, sem que isso signifique a criação de marcas mirabolantes ou quaisquer recursos que objetivem reforçar a sensação de estranhamento de forma gratuita.

E, finalmente, outro aspecto que me parece de fundamental importância em qualquer encenação de Pinter: a imperiosa necessidade de trabalhar o ritmo de forma a permitir o que talvez possa ser definido como "suspensão do tempo", ou seja, pausas que sugiram não um eventual constrangimento dos personagens ou mera falta de assunto, mas sim que algo de inusitado e imprevisto está ocorrendo, impossível de ser traduzido em palavras. Em minha opinião, em se tratando de Pinter, o silêncio fala tanto quanto o texto articulado.

Isto posto, cumpre ressaltar que o diretor Pedro Freire criou uma versão irretocável para este instigante texto, que, por sinal, desconhecia. Sua encenação é limpa, precisa e valoriza todos os conteúdos propostos pelo autor - e também aqueles que o espectador possa criar por conta própria. Afora issso, o encenador extrai ótimas atuações do elenco.

Na pele de Deeley, Otto Jr. exibe seu vigor e segurança habituais, o mesmo ocorrendo com Cristina Flores, que, além de ser uma das melhores atrizes de sua geração, parece ter nascido com a expressa finalidade de interpretar personagens que transitem por esferas em que a dubiedade é a tônica. Quanto a Paula Braun, a belíssima atriz valoriza de forma notável a ambigüidade de Kate, dando sempre a entender que a personagem fala menos do que sua amiga não porque lhe faltem palavras, mas porque seus pensamentos a abosorvem muito mais.

Na equipe técnica, Pedro Freire assina ótima tradução, com Paulo César Medeiros iluminando a cena com sua costumeira sensibilidade. Cumpre também destacar a direção de arte de Domingos Alcantara, também responsável pela despojada e expressiva cenografia, e por figurinos em total consonância com a época e personalidade dos personagens.

OUTROS TEMPOS - Texto de Harold Pinter. Tradução e direção de Pedro Freire. Com Cristina Flores, Otto Jr. e Paula Braun. Espaço Sesc Arena. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h30.     

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