Nelson e a nudez
Edélcio Mostaço
Toda nudez será castigada estreou em 1965, ápice de um ciclo de grandes criações na obra dramática de Nelson Rodrigues. Examinemos aqui algumas de suas características, passando antes por considerações sobre o discurso de Nelson, à luz de quatro dos seus mais notórios e singulares procedimentos que, em meu livro Nelson Rodrigues, a transgressão, designei como matrizes de sua obra.
O dialogismo dostoievskiano
O dialogismo surge quando várias vozes são invocadas, simultâneas ou alternadas, para a constituição de um discurso, o que lhe confere a tessitura de um diálogo, uma alternância de argumentos para as afirmações ou negações que este coloca à consciência; opondo-se ao monologismo, quando o fluxo de consciência se mostra sólido, uma única voz originando a verdade daquele instante de consciência. Dostoiévski foi apontado por Bakhtin como o grande mestre na articulação desse tipo de discurso.
Tendo sido Nelson um leitor contumaz de Dostoiévski, não é estranhável que tenha ali bebido algumas das matrizes narrrativas que o ajudaram a consubstanciar sua obra. Esse traço também está presente em Toda nudez.
A crítica dostoievskiana costuma referir-se à "Nova psicologia" inerente às suas criaturas, marcadas pela ambivalência que as trespassa. Amor/ódio, orgulho/humilhação, realce/rebaixamento, certeza/dúvida são algumas dessas antinomias, acolhidas por Nelson e cintilando em quase todos os seus personagens centrais. Em Toda nudez encontramos diversos ecos dessa configuração:
GENI - Se há uma coisa que eu tenho bonito é o busto! [...] Malditos também os meus seios!
HERCULANO - Todos os meus amigos sabem que eu tenho horror, horror de prostituta! [...] (Para Geni) Meu bem, nós acabamos de fazer uma lua de mel de três dias.
Em Nelson Rodrigues, essa nova psicologia dispensa motivações e explicações sobre o caráter dos personagens, pois a ação se inicia num ponto alto de tensão, expondo dilemas que exigem solução imediata. Toda nudez começa com Herculano ouvindo a gravação deixada por Geni: "Herculano, quem te fala é uma morta. Eu morri. Me matei", prognosticando o elevado grau de angústia de seu depoimento.
O recorte psicológico incluiu a báscula entre um romantismo desacreditado (ou um idealismo sem convicção) e um realismo mal sustentado (aberto ao irracional e mesmo ao místico). Sabedora, por Patrício, das condições de luto em que vive o irmão dele, Geni declara:
GENI - Herculano, você me interessou de cara. Te confesso. Talvez porque havia uma morta. Uma morta entre nós dois. E a ferida no seio. Eu não sou como as outras. Eu mesma não me entendo. Aos seis, sete anos, eu vi um cavalo, um cavalo de corrida. Sei então que não há ninguém mais nu do que certos cavalos.
O enunciado é paradoxal, pois nada parece ligar uma coisa à outra; a não ser a locução: "Eu mesma não me entendo". Mais adiante encontramos:
MÉDICO - Acredito no homem.
HERCULANO - Está certo! Mas doutor, o senhor me desculpe. Se tirarem do homem a vida eterna, ele cai de quatro, imediatamente.
MÉDICO - Então, eu sou um quadrúpede.
HERCULANO - Oh, doutor, o que é isso? A vida eterna está com o senhor, mesmo contra a sua vontade!
O uso das fórmulas, das frases feitas, das generalizações denota a falta de convicção e a crise das consciências:
HERCULANO - Assim como se nasce poeta, ou judeu, ou agrimensor - se nasce prostituta!
PADRE - Socialista, comunista, trotsquista, tudo dá na mesma. Acredite: - só o canalha precisa de ideologia que o justifique e absolva.
E, em ambos os autores, expedientes retóricos potencializam o sentimentalismo próprio ao melodrama, mas tomando por modelo a grandiloquência da tragédia e da epopeia; sendo que, no caso de Nelson, mais precisamente pelo viés da ópera e do filme B de Hollywood. Essa característica fica ainda mais evidente na típica "cena de escândalo", geralmente presenciada por personagens que não deveriam estar ali:
TIA - Prenderam o menino. Botaram o menino no xadrez junto com o ladrão boliviano. O outro era muito mais forte. (Exaltando-se) E, então, (tem verdadeiro acesso) o resto não digo! Vocês não vão saber! (Recua diante de Geni) Essa mulher não vai ouvir de mim, nem mais uma palavra.
HERCULANO - Mas está vivo?
TIA (Incoerente, cara a cara com o sobrinho) - Teu filho foi violado! Violado! Não é isso que você queria saber? (Vai até Geni) Violado! Violaram o menino!
GENI (Agarrando-se a Herculano) - Eu não vou-me embora! Eu fico! Eu fico! Herculano.
HERCULANO - Cachorra! Cachorra!
TIA - Está morrendo no hospital! (Herculano foge gritando. Então, como uma louca, a tia começa a dizer coisas) Quando eu era garotinha, eu vi meu pai dizer uma vez: - "Pederasta, eu matava!" (Com súbita energia, para Geni) Mas o menino não é nada disso. Um santo, um santo!
Aqui termina o segundo ato, constituindo-se num arremate que, além de projetar a tensão dramática, igualmente alberga uma revelação decisiva para o enredo, a emergência de novos episódios que fazem a trama apertar-se, enovelar-se, aguçando o apetite da platéia.
O duplo pirandelliano
Embora tenha repudiado qualquer vínculo com Pirandello, Nelson manipula, irretorquivelmente, vários expedientes empregados pelo autor italiano como, por exemplo, o redobramento de personagens (dos contos para o palco e vice-versa); a projeção autobiográfica (Nelson declarou: "Toda vez que alguém mata alguém em minhas peças é um eco do assassinato de meu irmão"); e a categórica teatralidade da narrativa cênica.
Nelson recorre a diversos procedimentos para intensificar a teatralidade, entre eles, a farta utilização da iluminação e da cenotécnica, dos adereços e da caracterização, como se pode observar nos cortes de luz e nos três planos do enredo em Vestido de noiva; nas máscaras em Doroteia ou nas mãos decepadas em Senhora dos afogados.
Aproxima-se também de Pirandello o uso recorrente da metanarratividade, ou seja, o recurso de uma enunciação dentro de outra enunciação (o diário de Clessi em Vestido de noiva; as três versões para evocar Boca de Ouro na entrevista de Dona Guigui; a fita gravada que dá um formato de flashback a Toda nudez será castigada; o papel e a função da imprensa em Beijo no asfalto e Viúva, porém honesta; a sessão de mesa-branca em Os sete gatinhos).
Também é pirandelliano o tom de humor inerente a Nelson, distante do refinamento british e próximo ao paroxismo peninsular, constituído pelo sentimento do contrário (a percepção de que o fato observado possui, nas entranhas, outra significação), o que motiva uma reflexão por parte do observador.
Matéria e memória proustiana
Nenhum outro autor explorou a memória com tanta desenvoltura quanto Proust. Sua intensidade narrativa não nasce apenas das evocações, digressões ou circunvoluções que seus personagens empreendem, mas também de tudo que é veiculado por meio das criadas e serviçais que, na Recherche, ocupam um papel de destaque, por privarem da intimidade dos personagens e veicularem suas novidades, modos, manias, hábitos e insignificâncias que consagram o triunfo do fait divers, hoje disseminado nas colunas de fofocas, nos painéis do dia e blogs e, na época de Nelson, na imprensa.
Como Proust, nosso autor reservou aos serviçais diversos papéis significativos: os empregados coniventes (o velho de barbas bíblicas de Álbum de família; a criada negra de Toda nudez, o chofer de Perdoa-me por me traíres); os pusilâmines ou acachapados pelo poderio econômico (Pardal, em Viúva, porém honesta, e Peixoto, em Bonitinha, mas ordinária); ou servindo ao usufruto sexual (Noêmia, em O casamento, a Crioula, em A serpente). O emprego do fait divers possibilitou a Nelson milhares de crônicas, reunidas especialmente em A vida como ela é.
Matriz melodramática
Eric Bentley designou o melodrama como uma "restauração de nossa infância perdida"; momento em que, encurtando a distância entre o eu quero e o eu posso, o voluntarismo cintila. Pode-se inferir no melodrama o mesmo processo que Freud identificou como o retorno do recalcado, uma vez que, nele, a virtude, engolfada inteiramente pelo mal, experimenta vicissitudes insuportáveis, tendo de dar provas, a todo instante, da firmeza de seus propósitos. Os sentimentos, desse modo, encontram seu ápice, manifestando-se de modo primitivo, quase instintual.
A estruturação técnica do melodrama se caracteriza pelo enredo pontilhado de incidentes, para forçar o espectador a nunca perder o interesse; pelas reviravoltas bruscas, pelas revelações ou descobertas inesperadas, que envolvem em trama rocambolesca personagens-tipo: de um lado heróis, de outro vilões. Encontros inesperados, cartas e documentos perdidos e achados, venenos e armas de fogo nos locais mais incongruentes, festas ou bailes mascarados, crianças trocadas ao nascer, injustiças diversas - morais, sociais, profissionais - exigindo reparação, além de assassinatos misteriosos, conspirações e traições integram uma cosmovisão maniqueísta, cujo objetivo é premiar a virtude e condenar o vício.
Em Toda nudez vários desses expedientes foram mobilizados: a saga da puta arrependida, o conflito entre irmãos que gera vingança, a sucessão enovelada dos episódios, o filho virgem estuprado na cadeia, as traições - morais e sexuais - que resultam em adubo para a explosão dos sentimentos, as tias solteironas como coadjuvantes, o médico e o padre como confidentes e conselheiros, a morte de Geni como redenção.
Examinadas essas quatro matrizes fundadoras, passemos à averiguação do enredo de Toda nudez será castigada.
O enredo
A trama segue uma construção obsessiva - escalonada como um turbilhão de cenas e sequências a se precipitarem, sem tempo para respiração da plateia. Esse mesmo processo construtivo já havia sedo explorado em A falecida, Bonitinha, mas ordinária ou Boca de Ouro, mas, nesse texto, atinge um ponto limite.
Para tanto, um primeiro vetor é acionado - o tempo. Embora muitos dias tenham sido necessários para que os conflitos se conformassem e pudessem atingir o grau de concentração apresentado, seu ritmo não é linear, obedecendo apenas à ação vertiginosa dos personagens. Na mesma chave, o espaço é unificado segundo as necessidades da diegesis, saltando de um lugar a outro com a rapidez de uma meia volta nos calcanhares.
É nesse sentido que a figura psicanalista da neurose obsessiva serve para ilustrar, metaforicamente, os expedientes manipulados. Há uma compulsão nos atos, acompanhada de idéias fixas, ruminação mental, dúvidas inexplicáveis, escrúpulos sem causa aparente toldando o pensamento e a ação das criaturas. Para Freud, a neurose obsessiva faz-se acompanhar de um erotismo anal, em geral latente, ainda que suas emanações tornem-se presentes através de metáforas ou metonímias no plano da fantasia. A curra de Serginho, aqui, ocupa a função metonímica.
O fulcro da ação em Toda nudez é marcado pela vertigem sexual que interliga os personagens centrais e, para vtanto, três movimentos paralelos são empreendidos: no primeiro temos a "queda" de Herculano em relação a Geni ("casto e semi-virgem", como o define Patrício, o páter-familias é tragado pela volúpia ao ver a foto de Geni nua. Ajudado pela bebida, passa 72 horas no quarto com ela, em meio à devassidão que apenas um surto de insaciável energia erótica explica).
Um segundo movimento dá-se entre Geni e Serginho (ao saber que o rapaz foi estuprado na cadeia, ela é tomada de pena, uma vertigem consoladora que não mais distingue entre a fêmea abnegada e a caridade de rameira, empregando todas as suas forças para conquistá-lo e torná-lo seu amante); e um último e inesperado vínculo interliga o ladrão boliviano e Serginho (sexualmente anódino, frio e virgem, o rapaz desperta subitamente para o prazer da libido ao ser violentado, criando uma dependência que não afasta um fundo masoquista). Patrício, o quarto personagem central, está fora desses diagramas, mas é quem manipula os cordões das inter-relações, quem promove os encontros e os desencontros entre os três vértices do triângulo.
Ou seja, o clássico triângulo das paixões malsãs é aqui conformado para, em seguida, ser sarcasticamente desfeito, através de um expediente narratológico que apela para o suspense e o imprevisível, desmontando o senso comum do leitor/espectador. Senso comum em relação ao plausível, àquilo que a moralidade pública costuma julgar conveniente. Mas Nelson não se dobra às conveniências, introduzindo em sua produção um odor fétido, desagradável, malsão - como ele próprio classificou seu teatro - adernando para o lado escuro de um inconsciente que, sufocado e reprimido, explode com violência.
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Artigo extraído - e aqui reduzido - da edição nº 29 da revista Folhetim. Edélcio Mostaço é bolsista do CNPq. Professor da graduação e da pós-graduação na Udesc.
quinta-feira, 1 de março de 2012
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