quarta-feira, 14 de março de 2012

O ator contemporâneo:
enfim, um artista?

Antonio Guedes


Atuar não é uma arte. Portanto, não é correto falar do ator como um artista. (Gordon Craig)

Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos.
E achei-a amarga. E injuriei-a. (Artur Rimbaud)


          As duas epígrafes acima se entrelaçam. Vou me empenhar para esclarecer essa trama e, de alguma forma, encontrar eco numa questão que considero nodal quando vamos falar do ator hoje: sua relação com a criação artística em geral, sua perspectiva do mundo ou, dito de outra maneira, o lugar de onde ele olha.

          Gordon Craig, assim como seu contemporâneo Stanislavski, buscava pensar um ator criador. Um ator capaz de organizar seu pensamento e imprimi-lo no próprio corpo - suporte de sua obra. Entretanto, Craig considerava que esse suporte vinha com muitos "defeitos", elementos que desviavam o foco principal da criação: os sentimentos, a história particular, os desejos. Isso impedia que o ator dedicasse seu trabalho à reflexão sobre uma idéia, sobre um tema, uma imagem. O ator, segundo Craig, não consegue se desvencilhar de si mesmo e, no fim, o resultado do seu trabalho é uma torrente de emoções que escondem o real objetivo da obra, tornando-se apenas mera exposição dos seus sentimentos.

          Stanislavski, em sua pesquisa sobre o ator, procurou por toda a vida caminhos, estratégias que permitissem que o ator encarasse esses elementos como um material a ser organizado, uma espécie de matéria-prima para a construção de sua obra, visto que não poderia escapar de si mesmo. Sua busca, portanto, tinha como objetivo transformar em operação artística a relação do texto, da encenação e do personagem com o corpo, com a experiência de vida e com a memória do ator - entendendo que esse procedimento visava à criação de uma cena que tinha como modelo a realidade.

          O encenador russo trabalhava numa perspectiva de criação que exigia do ator a construção da ilusão de uma pessoa real, um personagem que se assemelhasse a um certo indivíduo. Diferentemente de Stanislavski, Craig buscava a criação, em cena, de uma figura simbólica, de uma imagem que pudesse dar à platéia a idéia de que o personagem representa qualquer indivíduo e não um certo indivíduo.

          Portanto, nesse caso, os elementos muito particulares - sentimentos, memória e desejos do ator - ao invés de favorecê-la, tornam-se um obstáculo à verdadeira criação. "O objetivo do teatro como um todo é restaurar sua arte, e deve começar banindo do teatro a idéia de personificação, a idéia de reprodução da natureza; enquanto vigorar essa idéia de personificação, o teatro não se libertará" (Craig)

          Ele necessita de um ator que se compreenda como suporte neutro, desprovido de referências particulares para revelar, em cena, imagens universais. Por não acreditar na possibilidade de o ator do seu tempo compreender-se como matéria e tornar-se esse suporte neutro, Craig decreta a imposssibilidade de o ator criar algo diferente dele mesmo e reivindica a Über marionette, um ator desprovido de ego. E arrisca um prognóstico: "Hoje, o ator personifica e interpreta; amanhã, deverá representar e interpretar; no terceiro dia deverá criar. Desta forma, o estilo deverá retornar".

          Esta suposição, proferida em 1907, nos afeta diretamente. Se nos apoiarmos nos prognósticos de Craig e levarmos efetivamente em conta em nosso trabalho artístico a revolução conceitual que as vanguardas do século XX realizaram, imagino que estamos, hoje, na terceira etapa, isto é, no tempo em que o ator é capaz de criar. Ou seja, sua obra não é o resultado da imitação de um modelo.

          O diretor inglês refere-se a esse momento como o nascimento do estilo. Mas o que seria isso? Estilo é a forma pela qual identificamos uma corrente estética ou, buscando uma forma mais abrangente (e atual) de compreender o termo, é a forma pela qual identificamos o conceito, a idéia que fundamenta a obra. E se a criação é colocação no mundo de algo que antes não existia, ela é, por conseguinte, uma atitude que prescinde da representação.

          Então, o prognóstico de Craig quer dizer que chegará o momento em que o ator irá criar sua obra a partir de um conceito original. Se levarmos em consideração que a obra do ator é impressa sobre seu próprio corpo, como pensar na criação de algo que ainda não existia tendo o ator como criador? Pode o ator não representar? É possível pensar na obra do ator como a realização de uma idéia abstrata? Como um quadrado branco sobre fundo branco de Malevitch ou como as composições de Mondrian?

          Como pensar o teatro de uma forma puramente espacial, concreta, real, presente?

          O que Craig (e também Stanislavski) intuía é que a operação artística exige que o ator encare sua obra não como um discurso que descreve uma idéia. Ele precisa abandonar o lugar de mediador entre um texto e o público; precisa deixar de ser um mero veículo destinado à transmissão de idéias para que finalmente se torne um artista: uma estrutura construída, elaborada, uma presença concreta em uma relação com o público.

          Essa necessidade de conceber a linguagem de outra maneira, não mais como veículo, também se verifica nas outras artes nas primeiras décadas do século XX - Ulisses, de Joyce, está sendo escrito (1914-1921), Duchamp está apresentando A fonte (1917), enquanto elabora O grande vidro (1915-1923). Se a linguagem foi, ao longo dos séculos, se filiando à idéia de que sua função seria descrever o real, no tempo de Craig, Stanislavski, Joyce e Duchamp, procura-se uma potência de presentificação.

          O que está em questão é a concepção de arte como uma operação mimética. O que se divisa é uma concepção de arte fora do âmbito da imitação de uma idéia, da representação de algo que não está realmente em cena. O que se afirma, com essa retomada da força de presentificação da linguagem, é a falência da dicotomia entre a forma e o conteúdo. A obra é criação de um artista. Não representa, é.

          Justamente seguindo a reflexão proposta pelas vanguardas, a linguagem não tem a função utilitária de comunicar. É uma criação que será articulada - não interpretada, pois ela não é um repositório de conteúdos - pelo espectador. A obra, portanto, propõe uma relação real sobre a qual nem o artista tem domínio porque ela não é uma mensagem idealizada por ele. É algo que, uma vez posto no mundo, irá promover uma experiência junto ao público. O espectador, portanto, tem, nessa nova concepção de linguagem, um papel diferente. Ele está ali para um jogo dos sentidos estimulados pela obra. E, nesse jogo, seu papel é decifrá-lo.

          Se para Stanislavski o ator deverá desaparecer para fazer surgir um indivíduo outro, tão verossímel que chega a se confundir com o ator, e para Craig o indivíduo deverá desaparecer para permitir que surja no palco a imagem do homem, a imagem que simboliza a humanidade, o que se está discutindo no início do século XX é a postura, a posição do artista.

          Ao pensarmos a linguagem sob essa nova perspectiva, o que se perde - e que daqui em diante não será mais encontrado - é a idéia de modelos que pre-existem à obra. Fora da concepção da arte mimética, a tarefa do ator, do artista, é criar tendo como fundamento não mais um modelo, mas um conceito, um modo de ver.

          E, visto que não está baseado numa idéia, num modelo superior, esse conceito poderá mudar a qualquer momento. Exatamente como a série de catedrais de Monet. A catedral de Rouen depende da posição como a olhamos e da luz que incide sobre ela. Ela não existe a priori. O artista, a partir desse momento, não tem mais como objetivo a representação da Beleza - como se houvesse uma beleza ideal am algum lugar do céu de Platão.

          E, nesse ponto, encontramos a epígrafe emprestada de Rimbaud. Se a beleza idealizada tornou-se amarga porque irreal, ela deixa de ser uma referência. Nós nos encontramos, hoje, no território das experiências de realidade. No caso do ator, sendo ele próprio o suporte da obra, seus gestos, sua elocução, seus deslocamentos no espaço são elementos de linguagem. É com esse suporte que ele irá buscar a afirmação do mundo como uma realidade sensível e não idealizada, intelectiva. E, nesse caminho, o ator deve reinventar-se. E reinventar o homem. Não um sujeito idealizado, mas um homem real.
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Parte do artigo publicado na primeira edição da revista A[L]BERTO, da SP Escola de Teatro,  São Paulo. 

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