O Percevejo Online, Vol. 2, No 2 (2010)
VIEWPOINTS E O MÉTODO SUZUKI – UMA PALESTRA COM DONNIE MATHER
Donnie Mather
(Atlantic Theatre Conservatory, EUA)
Tradução de Isabel Tornaghi
Resumo
Essa palestra, apresentada na abertura do II Engrupedança: Diálogos e Dinâmicas/UNIRIO, em 2009, relata pontos centrais do treinamento Viewpoints, com base na experiência pessoal do ator Donnie Mather com a SITI Company,dirigida por Anne Bogart. O texto trata do conteúdo dos diferentes viewpoints, ou pontos de vista, exemplificando o treinamento, sua aplicação e os resultados, através de diversas produções da SITI Company nos Estados Unidos.Donnie Mather introduz ainda, o método Suzuki, que segundo ele complementa o treinamento Viewpoints.
Palavras-chave | Viewpoints | método Suzuki | SITI Company | Anne Bogart | treinamento
Boa tarde a todos, como estão vocês? [Risos] Levante sua mão, se você falar Inglês. [Risos] OK, excelente. Quero agradecer a UNIRIO e à Joana [Ribeiro] por ter me convidado para dar esta conferência, e ser acompanhado por Enrique [Diaz], Bel [Garcia], e Isabel [Tornaghi] nesta conversa.
Eu pensei em falar um pouco sobre a minha história pessoal no estudo de Viewpoints, e como me relaciono com isso, porque é algo de que normalmente não falo muito, em aula ou em uma oficina. Porque em uma aula, quando estamos treinando, é muito importante manter o foco nos artistas, para permitir-lhes criar a sua própria relação pessoal com a técnica.
E isso começa com uma história: em 1992 eu fui ver uma peça chamada Piquenique de William Inge. E quando cheguei ao teatro, entrei e o espaço estava vazio. Não havia cenário, apenas um ciclorama branco no fundo do palco, o chão era branco e inclinado em direção ao público. Esta peça, Piquenique, fora escrita há quarenta anos, no estilo de Tennessee Williams, e se passava no Sul dos Estados Unidos da América, na primeira metade do século XX. Mas quando sentei no meu lugar, não vi nada que sugerisse esse ambiente - e de repente as luzes de serviço se apagaram; e os alto-falantes soltaram um Jazz a todo volume; e se acenderam algumas pequenas luzes roxas fluorescentes ao redor do palco - os atores adentraram o espaço e a peça começou. E imediatamente fui transportado para um mundo que era muito específico e não se precisava de cenário. Os atores usavam trajes de época, havia muito poucos adereços - acho que um menino atravessou o palco de bicicleta umas duas vezes. Mas a peça residia nos corpos dos atores e no espaço entre os atores. E aquela noite mudou a minha vida. [Risos]
Eu queria saber - mesmo antes da peça terminar - como eles fizeram para criar este mundo?! Que tipo de formação os preparou para criar essa peça? E assim descobri que a diretora era Anne Bogart (1951), e alguns dos atores em cena eram membros da recém formada companhia de teatro.
A sua companhia de teatro se chamava Saratoga International Theater Institute [SITI], co-criada com Tadashi Suzuki, do Japão. E descobri que a prática que eles compartilhavam era uma técnica que se chama de treinamentoViewpoints e uma segunda técnica chamada Método Suzuki.
Para mim, essa história é importante porque eu encontrei o trabalho primeiro no palco e, em seguida, a técnica. E a razão pela qual eu acho que isso é importante para mim é que muitas vezes quando alguém fica conhecendo o treinamento pode pensar que ele é para um determinado tipo de teatro, um único estilo. Então, eu comecei a praticar com a SITI Company há mais de 14 anos, com ambas as técnicas, e nos últimos dez anos também tenho dado aulas.
Eu fiquei animado com o Viewpoints, porque... primeiro, por ser físico e, em segundo lugar, porque lidava com improvisação. A formação que eu estava tendo naquele momento se parecia com uma versão do método americano, a versão americana do método Stanislávski. E o que aconteceu comigo, eu acho que aconteceu com muita gente nesse treinamento, é que o trabalho com a emoção apagou a fisicalidade do ator – por isso, ao entrar em um treinamento assim físico, senti que isso me abriu, tanto intelectualmente como emocionalmente.
Pessoalmente, acredito que todas as técnicas estão tentando alcançar a mesma coisa. Mas na viagem para chegar lá, tomamos caminhos diferentes. Para mim, foi importante porque era físico - até aquele momento, o único treinamento físico que eu tivera era no teatro musical - e porque se tratava de improvisação; naquele tempo, como um jovem artista, eu tinha um medo enorme de improvisação. Então, eu estava interessado em tentar enfrentar esse medo.
Quando eu pensava em improvisação, naquele tempo, e ainda hoje penso sobre improvisação desta forma, é como se fosse uma grande tela branca para um pintor, e a questão que se coloca é: - Como começar? Há muitas perguntas: - Que cor você vai usar, qual o tamanho do pincel? Você começa no meio ou no canto? E assim, as perguntas podem se tornar esmagadoras, e isso também pode paralisar você.
O que aconteceu quando eu comecei a praticar os Viewpoints é que ganhei uma lista de ferramentas na qual eu poderia me concentrar, e focando a minha concentração nessas ferramentas de repente eu estava livre para improvisar.
Agora, o treinamento com a SITI Company é único porque você está treinando simultaneamente com o método Suzuki e eles são complementares, como o Yin e Yang. O método Suzuki tem uma forma muito rigorosa, dentro da qual o ator deve encontrar a liberdade, enquanto o Viewpoints lida com improvisação, o que envolve muita liberdade, e o desafio para o ator é encontrar a forma dentro dela.
Claro, como muitos de vocês sabem, Anne Bogart não foi a primeira a articular o Viewpoints, a responsável por isso foi a Mary Overlie (1946). Ainda assim, tanto a Mary como a Anne concordariam que esses pontos de vista não são algo novo que apareceu magicamente no século XX – são ideias que todo intérprete vem usando desde o início dos tempos.
As ferramentas de que estamos falando destrincham as duas questões com as quais todo ator tem de lidar: as questões do tempo e do espaço. Na verdade, todos nós estamos lidando com tempo e espaço, quer você seja um intérprete ou não. Olhando para esta sala agora, eu vejo como vocês estão usando o espaço, que é diferente de como nós estamos usando o espaço, e acho que esse fator em comum é importante, porque o ator tem que "acordar" essas coisas que já existem. Eu gosto de como a Anne Bogart coloca isso: que essas coisas sempre existiram e ainda assim o nosso trabalho como artistas é despertá-las.
Mary Overlie descreve a técnica como um castelo de cartas, se você remove uma carta a casa cai. Então, o que ela está apontando com isso é que eles são não-hierárquicos, em outras palavras, "Forma" não é mais importante do que "Tempo". Acho que isso indica o que é muitas vezes chamado de filosofia da técnica. Há muitas técnicas que apontam para o texto - o texto como a coisa mais importante da encenação. Mas, talvez, o diretor Robert Wilson argumentaria que o movimento, ou a iluminação, podem ser tão importantes quanto as palavras do texto.
Durante esse período em que comecei a praticar com a SITI Company, também passei algum tempo trabalhando com Mary Overlie, com o que ela chama de "Os Seis Viewpoints"1. A história do que aconteceu ali, de serem seis e como eles mudaram para nove - acho que são agora - com Anne... [risos] é que Mary estava ensinando na NYU [New York University] e Anne a conheceu, em meados dos anos setenta. Anne ficou muito animada porque... Anne também estava frustrada com a formação do ator naquele momento e estava procurando algo para revigorar a fisicalidade dos atores. Então, houve esse grande encontro entre o mundo da dança e o mundo do teatro - Mary é coreógrafa, bailarina e professora - e Anne veio do teatro e queria “roubar” de outras mídias. Anne pegou esses seis Viewpoints, os expandiu e refinou, para torná-los específicos para atores, mas eu diria que são aplicáveis aos dançarinos da mesma maneira.
Os Viewpoints2 [Físicos] com que eu trabalho incluem:
· Tempo – que responde à pergunta "o quão rápido, o quão lento?"
· Duração - quanto tempo alguma coisa dura.
· Resposta Cinestésica - um ótimo exemplo disso seria observar um cardume de peixes em movimento, ou um grupo de aves em movimento. É uma questão de timing, quando alguma coisa acontece.
· O viewpoint da Relação Espacial - tem a ver com a distância entre os corpos. Nós estamos em uma relação espacial agora [risos], que conta uma história sobre quem somos nós e quem vocês são neste momento.
· Há o viewpoint da Arquitetura - usando o espaço real em que nós estamos trabalhando, e permitindo ao espaço entrar em diálogo conosco.
· O viewpoint da Topografia - é a jornada, como se atravessa de um ponto para outro do palco.
· O viewpoint da Forma - eu estou criando uma forma agora, você está em uma forma agora, eu estou em outra forma novamente. Então, elas podem ser abstratas, mas também podem ser muito cotidianas. A forma pode estar isolada em um corpo, ou [em relação] com outro corpo, ou com a arquitetura.
· E finalmente há o viewpoint do Gesto - um gesto é uma ação, então ele pode incluir muitas formas diferentes. Aqui está um gesto, aqui está outro gesto – ou seja, eles podem ser abstratos ou podem ser cotidianos.
O que fazemos quando começamos a praticar os Viewpoints é tentar despertá-los de tantas maneiras diferentes quanto formos capazes. É interessante e divertido trabalhar com formas e timing de modos diferentes do que nós trabalhamos todos os dias, no entanto frequentemente é muito difícil trabalhar com aqueles que estão intimamente relacionados ao nosso cotidiano. Assim, cada artista começa a ter seu diálogo com essas ferramentas - e em última instância, este é um trabalho coletivo, então você não está só tentando praticar para si mesmo, mas está tentando praticar com o grupo, para criar uma conexão de grupo, que pode mudar, talvez, num piscar de olhos.
Essa é como se fosse uma história muito breve do treinamento do Viewpoints. Mas para mim, pessoalmente, eu acho fascinante porque o treinamento se transforma à medida que eu me transformo. Depois de quinze anos, euestou mais velho, tenho um jeito diferente, sou uma pessoa diferente. Meu corpo [também], eu tenho que lidar com um corpo diferente - e isso pode alterar a forma como eu escuto o grupo, ou uma plateia, por isso a conversa para mim nunca termina.
Eu acho que isso também aponta para o fato de que se trata de uma prática, no sentido mais verdadeiro da palavra; é uma prática. Eu adoro mudar o contexto do treinamento e chegar a lugares como este; em um cenário diferente, em outra cultura, com uma língua estrangeira, porque eu sinto que isso também me acorda como artista. Nos dez anos em que venho ensinando eu aprendi muito, mas também tenho muito mais perguntas sobre esses assuntos, e acho interessante oportunidades como essa, de oferecer oficinas como a desta semana, para que eu possa continuar essa investigação.
Na verdade, me lembra do que é a estrutura para se atuar; você se prepara, se prepara, e aí joga tudo fora, para que possa estar presente no momento presente. Há muitos exercícios que se faz no treinamento Viewpoints que são comuns, que não mudam, mas eles vão mudar de acordo com o contexto. Por exemplo, tem um contexto esta semana em que um grupo de artistas vai sentir o gostinho desse treinamento, muito breve, mas eles vão sentir o gostinho, e por isso há interesse - o que é ótimo para qualquer técnica, e o desafio de uma oficina como essa é trabalhar como se você estivesse fazendo isso há muitos anos.
O treinamento com meus amigos da SITI Company é único, porque eu os conheço há muitos e muitos anos, portanto, o contexto para mim é: será que consigo tratar essa atriz de um modo diferente, embora eu já a conheça há muitos e muitos anos? Não estamos falando apenas de despertar essas ferramentas, estamos falando também de despertar a nossa atenção, em geral.
Eu acho que meu tempo está acabando, então vou contar uma última história. Teve uma peça em que eu trabalhei – a primeira que fiz com Anne Bogart – era na verdade uma ópera chamada Os sete pecados capitais, e foi uma experiência muito estranha, porque fomos convidados pela New York City Ópera, uma companhia de ópera, e foi a primeira vez que Anne dirigiu uma ópera e nenhum de nós era cantor de ópera - nós não fomos contratados para cantar, eu prometo. Esta ópera foi escrita por Kurt Weill e Bertolt Brecht e se trata mais de uma sequencia de canções do que uma ópera completa, [ela] tem apenas um ato. Então, tem um prólogo e sete cenas, cada uma apresentando um pecado, com um epílogo no final. Ao todo eram nove cenas, certo?
Nós fomos para o trabalho e... Oh, eu deveria contar que havia uma soprano, e ela contava a história dos sete pecados capitais. Portanto, o nosso trabalho como atores era o de contar a história através dos nossos corpos, era como se fôssemos atuar em um filme de cinema mudo, quase no mesmo estilo, esse tipo de estilo expansivo, o vaudeville. Então, nos ensaios, nós trabalhamos muito, muito rapidamente, espontaneamente, fisicamente. Eu realmente acredito que nós nunca poderíamos ter feito esse espetáculo se nunca tivéssemos trabalhado juntos antes. Não poderíamos ter feito isso se não nos conhecêssemos uns aos outros; foi ali que o treinamento em Viewpointsrealmente mostrou a que veio.
Anne tem uma frase, ela diz apenas: “Cinco, seis, sete, oito, VAI!”
E foi exatamente como nós trabalhamos. Nem sempre, mas nessa produção foi exatamente assim. No primeiro dia nós trabalhamos no prólogo, no dia seguinte trabalhamos no primeiro pecado... A única coisa que tínhamos, como não éramos cantores, era uma espécie de arquétipo. Então você era a “coquete”, e você era o “chefe”, e você era o “amante”, e eu era o “poeta” - tínhamos um arquétipo para trabalhar; só isso. E em cada cena nós criamos relações, sobre as quais nunca falávamos, mas que eram criadas fisicamente, porque se eu estou interpretando o poeta eu tenho uma ideia de como eu poderia me relacionar com o chefe - e assim nós nunca conversávamos sobre as relações, nós só trabalhávamos fisicamente e a cada dia criávamos uma cena diferente.
E foi exatamente como nós trabalhamos. Nem sempre, mas nessa produção foi exatamente assim. No primeiro dia nós trabalhamos no prólogo, no dia seguinte trabalhamos no primeiro pecado... A única coisa que tínhamos, como não éramos cantores, era uma espécie de arquétipo. Então você era a “coquete”, e você era o “chefe”, e você era o “amante”, e eu era o “poeta” - tínhamos um arquétipo para trabalhar; só isso. E em cada cena nós criamos relações, sobre as quais nunca falávamos, mas que eram criadas fisicamente, porque se eu estou interpretando o poeta eu tenho uma ideia de como eu poderia me relacionar com o chefe - e assim nós nunca conversávamos sobre as relações, nós só trabalhávamos fisicamente e a cada dia criávamos uma cena diferente.
Lembrei-me de uma citação do Stanislávski que eu realmente amo, ele disse: "você deve ensaiar uma peça em duas semanas ou dois anos". Pois bem, basicamente a gente fez essa em duas semanas.
O que é interessante nisso é que nós não tivemos tempo para ficar presos nas nossas cabeças; foi uma das maiores lições de atuação que eu já tive, trabalhar nessa ópera. Porque por ir, “cinco, seis, sete, oito: - VAI!", o meu corpo fez escolhas que, provavelmente, a minha mente nunca teria imaginado.
Agora, não me interpretem mal, houve conversa, porque a meio caminho, a gente ficou emperrado. O que nós criamos, para onde estamos indo, como vai acabar? E estava certo ao ficar emperrado, naquele momento, porque no meio dessa ópera, a canção do meio, era a capela. Portanto, há uma estrutura, na ópera, que significa que tudo depois desse momento vai mudar. Veja só, lá estava a estrutura nos contando sobre a atuação, de certa forma. Assim, após cerca de dez dias, onze dias, nós montamos a peça, e voltamos para o começo.
Aqui foi a segunda lição de atuação: tive que rever as escolhas malucas que eu tinha feito, e que cada um tinha feito, no começo daqueles ensaios. E eu tenho que dizer que nós não editamos muito, tentamos manter o que tínhamos feito, e para mim a lição de atuação era: como fazer aquilo ter vida, como fazê-lo respirar. E é isso, para mim isso se relaciona com o treinamento em Viewpoints, que pede para que a gente se mantenha desperto dentro de uma estrutura.
Acho que isso é suficiente. Obrigado.
Links para ouvir esta palestra no Youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=UNCNCTRbQYs (parte 1)
http://www.youtube.com/watch?v=_9v6zxwdVXY (parte 3)
Notas
1 Mary Overlie (1946) idealizou “Os Seis Viewpoints”, que compreendem: Espaço; Forma; Tempo; Emoção; Movimento e História. Disponível em: . [N.E.].
2 Donnie Mather não cita o viewpoint físico da Repetição, conforme Anne Bogart e Tina Lindau. Observe-se ainda a ausência de cincoviewpoints vocais, que compreendem: Altura; Dinâmica; Aceleração/Desaceleração; Silêncio e Timbre. Ver com detalhes em: LANDAU, Tina and BOGART, Anne. The Viewpoints book: a practical guide to viewpoints and composition. New York: Theatre Communications Group, 2005. [N.E.].
DONNIE MATHER é ator, professor e co-fundador do Collective Intelligence Arts. Como ator, foi artista associado à SITI Company de Anne Bogart (2000-2007). Começou sua relação com a SITI Company em 1995, treinando por muitos anos em técnica Viewpoints e no Método Suzuki, e, ao final, atuando em muitas das produções da companhia. Passou três temporadas no Shakespeare Theatre of New Jersey (1999-2001). Como professor vem ministrando cursos em New York University, Columbia University, Bard College, The New School, Fordham University, University of Puerto Rico e em Bogotá, Colombia. Tem Bacharelado em Teatro com um minor em Dança na Western Kentucky University e faz atualmente parte do corpo do
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