sábado, 5 de setembro de 2009

Auto da Compadecida



Certamente a peça mais famosa e representada de Ariano Suassuna,
Auto da Compadecida recebeu excelente análise
por parte do falecido crítico teatral Henrique Oscar,
inserida no volume oferecido aos leitores, em 1978,
integrando a coleção Teatro Moderno, da Editora Agir.
Vamos a ela.



* * *





O grande acontecimento do Primeiro Festival de Amadores Nacionais, realizado em janeiro de 1957, no Rio de Janeiro, por iniciativa da Fundação Brasileira de Teatro, foi a representação pelo Teatro Adolescente do Recife, sob a direção de Clênio Wanderley, do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna. Se a interpretação era boa, considerado aquilo que se pode exigir de um grupo amador novo e constituído de elementos jovens e, portanto, até certo ponto inexperientes, o que, por outro lado, tinha a vantagem de dar ao espetáculo um tom de simplicidade, de despojamento, de espontaneidade, que correspondia ao espírito da peça e se enquadrava no estilo de apresentação que mais lhe convinha, a verdade é que foi o texto em si o causador do entusiasmo despertado.



Suassuna diz que sua obra se baseia nos romances e histórias populares do Nordeste, os quais, devemos confessar, desconhecemos totalmente. Por nosso lado, emcontramos em A Compadecida um parentesco com gêneros mais antigos, de outras épocas e regiões que, todavia, devem ter sido de algum modo a origem remota daqueles que a inspiraram. Enquadramo-la, inicialmente, na tradição das peças da Alta Idade Média, geralmente designadas como Os Milagres de Nossa Senhora (do século XIV), em que, numa história mais ou menos - e às vezes muito - profana, o herói em dificuldades apela para Nossa Senhora, que comparece e o salva, tanto no plano espiritual como temporal.



Quanto à forma e ao tratamento, nossa tendência é para aproximar a obra dos autos de Gil Vicente e do teatro espanhol do século XVII. Também lhe encontramos algo em comum com a commedia dell'arte, tanto no desenvolvimento da ação como na concepção das personagens, particularmente na figura de João Grilo, que lembra muito as características do "arlequim", embora seja um tipo autenticamente brasileiro e não copiado da tradição italiana, mesmo porque é figura lendária da literatura popular nordestina, tanto que é herói de dois romances intitulados As proezas de João Grilo.

Desta vez, porém, a aproximação de um texto brasileiro com formas e até temas dos grandes gêneros da história do teatro não é apontada como defeito, pois não houve cópia, imitação servil ou mera transposição, mas autêntica recriação em termos brasileiros, tanto pela ambientação como pela estruturação, sendo uma obra inédita em suas características, nova e, portanto, absolutamente original. O seu encanto está nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na singeleza dos recursos empregados, no primarismo do argumento, tudo a nosso ver perfeitamente dentro do espírito popular em que a obra se inspira e que quer manter.

A linguagem desabrida não deve chocar ninguém. É a das personagens e do ambiente retratados. Em Gil Vicente encontramos coisas muito piores. Com expressões por vezes rudes e outras pitorescas, o autor conseguiu diálogo eminentemente teatral, vivo e saboroso, colorido e descritivo, popular sem ser vulgar e paradoxalmente literário, nada tendo de precioso ou alentejoulado. E essa pseudo grosseria e o jeito direto de indicar situações ou comentá-las não lhe tiram o sentido cristão que lhe encontramos.

É preciso não esquecer que se quis evocar uma representação de circo, uma farsa muito marcada, portanto, em que a caricatura tinha de ser forte. Quanto à maneira como são aprsentados o bispo e o padre, além do que ficou dito acima, forçoso é reconhecer não ser absurdo admitir a existência de maus sacerdotes. O próprio autor, ao agradecer as manifestações que lhe foram feitas no fim da última representação de sua peça, no Teatro Dulcina, reafirmou o sentido católico da mesma, lembrando, a propósito de sua personagem, o famoso bispo Cauchon, que se fez instrumento da política dos ingleses, queimando na fogueira sua compatriota Joana D'Arc, do que resultou venerar a Igreja uma santa por ela própria martirizada. E foi, até, falando dessa figura, se não nos enganamos, que Georges Bernamos disse que a Igreja era os seus santos e não os seus padres...

Além do mais, no julgamento - verdadeira chave para a compreeensão do sentido da peça - Nossa Senhora explica que a visão que dessas figuras nos é dada é a da língua do mundo, portanto piorada, do mesmo modo que pela acusação do diabo. E um ponto importante, nesse particular, é o fato de, ao lado dos dois maus padres, ser colocado um bom, o frade, secretário do bispo, cujo processo de santificação se anuncia. A apresentação da figura de um modo um tanto caricatural não nos deve fazer incidir em equívoco.

O tom é o da peça e - note-se - dele são excluídos o Cristo e Nossa Senhora. No mais, o frade sugere, um pouco à maneira como Roberto Rosselini concebeu São Francisco e seus companheiros no famoso filme Francisco, arauto de Deus, a pureza angelical, a santidade, o desligamento das coisas do mundo, do modo como é indicado no v. 3 do cap. 18 do Evangelho segundo São Mateus: tornar-se igual às crianças para poder entrar no reino do céu.

O sentido moralizante, moralizante do ponto de vista cristão, da obra, está aliás presente tanto na sua linha geral, como em inúmeros de seus pormenores, que não seria possível evocar aqui. É lógico, porém, que não contém profundas discussões teológicas, nem faz propriamente apologética, o que seria absurdo. O seu apostolado é feito através da sugestão de um espírito cristão, de uma visão cristã da vida, apresentada com a simplicidade do espírito popular, da fé simples, sem complicações, do povo, quase sempre a mais autêntica.

Não queremos silenciar sobre uma fala que tem sido muito discutida. Quando João Grilo se espanta ao ver o Cristo negro, este responde que veio assim para mostrar que para ele tanto faz ser branco como preto, uma vez que não é "americano para ter preconceito de cor".

Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste, cujo ambiente e mentalidade a peça evoca. Possivelmente seus ocupantes, com a inabilidade característica que manifestam no trato com outros povos, teriam abundantes provas desse seu lamentável sentimento. Portanto, a repulsa pode ali ser suficientemente forte, para que o autor se sentisse levado a trazê-la para a sua peça.

Em segundo lugar, esse preconceito realmente revolta, como um dos sentimentos mais anticristãos que possam existir; a sua presença - com a sabida intensidade - num povo que é ou pelo menos pretende ser um paladino da liberdade e da democracia é algo que clama aos céus.

Noutro trecho da cena do julgamento, quando João Grilo procura recorrer a mais uma esperteza, para livrar-se da acusação do diabo, Cristo o adverte: "Deixe de chicana, João. Você pensa que isso aqui é o Palácio da Justiça?"

Tanto depois dessa réplica, como da referente ao preconceito de cor - das três vezes em que vimos a peça no Dulcina - o povo prorrompia em aplausos. Era a emoção irresistível de sentir o Cristo ao seu lado, pois a Justiça, infelizmente como é praticada, sufocada por formalismos e complicações que possibilitam a deturpação de seus verdadeiros objetivos, é antes uma ameaça que uma garantia, aos olhos do povo.

Acusa ainda o Cristo o diabo de ser "meio espírita" e consequentemente de ter a "mania de ser mágico". Esses e outros trechos do Cristo e Nossa Senhora dão uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa. Essa intimidade com Deus, e a idéia da simplicidade nas relações dele com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia, nos parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra, sobre o qual muito haveria que dizer, não nos tivéssemos já alongado demais.

Por isso, limitemo-nos a lembrar a compreensão das faltas humanas, atribuída a Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, as explica e pede para elas a compaixão divina. Mesmo para aqueles que "praticaram atos vergonhosos", pois "é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem". "A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas". Levados pelo medo, "os homens terminam por fazer o que não presta, quase sem querer". E como o diabo - por nunca ter sido homem - não entende o que é o medo, as personagens explicam que é o medo da fome, do sofrimento, da morte e da solidão. Por meio desta o padeiro tudo perdoava à mulher. Essa solidão que o próprio Cristo viveu em Getsêmani e a sensação de abandono que sentiu na Cruz.

De tudo o que ficou dito, o leitor concluirá que é um programa da humanidade, com sua misérias, suas fraquezas, mas também suas razões de consolo e esperança, que A Compadecida evoca. É esse, justamente, o grande mérito do autor e a evidente qualidade de sua obra: ter conseguido, a partir de uma situação local, regional, típica mesmo, compor um quadro de significação universalmente válida.

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