sábado, 5 de setembro de 2009

Sobre o diálogo cênico

Jan Mukarovsky


E. F. Burian tem razão ao dizer que a concepção wagneriana do teatro como síntese de várias artes está revivendo mais uma vez no teatro contemporâneo. A diferença entre a concepção wagneriana e o atual estado de coisas, ou antes, a atual orientação do teatro, é, por certo, não menos evidente. A arte moderna revelou o efeito estético positivo das contradições internas entre os componentes da obra de arte de maneira demasiado nítida para que possamos conceber o jogo recíproco dos elementos individuais de uma peça como mera complementação mútua.

A obra cênica moderna é uma estrutura extremamente complexa (muito mais complexa do que qualquer outra estrutura artística) que absorve avidamente tudo quanto o desenvolvimento tecnológico moderno oferece e que outras artes propiciam, mas procede assim, via de regra, a fim de explorar o referido material como um fator contrastante. A obra cênica moderna apodera-se do filme a fim de justapor a realidade corporal a um quadro imaterial, do megafone a fim de confrontar o som natural com o som reproduzido, do refletor a fim de separar a continuidade do espaço tridimensional com sua espada de luz, da estátua a fim de intensificar a antítese de um gesto fugaz e petrificado.

Tudo isto torna a estrutura artística da obra cênica contemporânea um processo que consiste em um permanente reagrupamento de componentes, em uma agitada substituição do dominante, em uma obliteração das fronteiras entre o drama e as formas afins (a revista, a dança, a exibição acrobática etc.). Esta situação é, por certo, mais interessante para a teoria do teatro do que qualquer outra jamais o foi anteriormente,mas também consequentemente mais difícil, pois as velhas certezas se desvaneceram e, por enquanto, não há outras novas.

Hoje é mesmo difícil determinar o próprio ponto de acesso mais fácil ao labirinto da estrutura teatral. Sempre que tentamos considerar algum componente do drama como básico e indispensável, um perito dramático, um historiador do teatro ou um etnógrafo, podem sempre apontar o dedo para alguma forma dramática carente deste elemento. Há, não obstante, certos componentes que são mais característicos do teatro do que outros e aos quais compete, portanto, o papel do cimento unificador na obra cênica. Um dos mais fundamentais é o diálogo; dedicamos as observações subseqüentes à sua função no teatro.

Primeiro, o que é diálogo? Do ponto de vista lingüístico é um dos dois padrões básicos da elocução, o oposto do monólogo. Por monólogo não queremos dizer, é claro, o monólogo dramático mas uma proferição que, embora dirigida a um ouvinte, encontra-se em sua continuação em grande parte livre de uma consideração pela reação imediata deste e de um estreito vínculo com a situação espacial e temporal objetiva em que se acham os participantes da proferição. O monólogo pode ou expressar o estado mental subjetivo do locutor ou narrar eventos separados da situação real, por uma distância temporal (na literatura, a narrativa).

De outro lado, o diálogo está estreitamente ligado ao "aqui" e "agora" válido para os participantes da convesa, e o locutor leva em conta a reação espontânea do ouvinte. Como resultado, por uma prestidigitação, o ouvinte torna-se o locutor, e a função do portador da proferição pulsa constantemente de participante para participante.

Isto é, por certo, válido também para o diálogo cênico, que apresenta ainda outro fator: a audiência. Isto significa que a todos os participantes diretos do diálogo acrescenta-se outro partícipe, silencioso mas importante, pois tudo que é dito em um diálogo dramático se orienta para ele, no sentido de afetar sua consciência. Podemos até falar acerca de teatro bem ou pobremente representado, de uma comédia, de uma conversa normal não-dramática, se acontecer que o interesse de todos os participantes menos um estiver concentrado - à base de um acordo secreto - na tentativa de precisamente influenciá-lo, de modo que cada palavra do colóquio tem um significado diferente para os participantes acumpliciados do que tem para ele.

O diálogo cênico é, portanto, semanticamente muito mais complexo do que a conversa normal. Se a personagem A profere uma certa sentença, o significado desta sentença é determinado para ela (como, no fim de contas, em toda conversa) por uma consideração pela personagem B. Mas não é de modo algum certo que a personagem B entenderá tal significado como a personagem A desejaria. Com respeito a isso, o auditório pode estar sujeito à mesma incerteza que a personagem A, mas é também possível que a audiência tenha sido informada sobre o estado de espírito da personagem B por alguma conversa anterior da qual a personagem A não estava ciente, de modo que a surpresa da personagem A com a inesperada reação de seu parceiro não será mais surpresa para o auditório.

O oposto também pode ocorrer: algo que o auditório ainda não sabe há de ser do conhecimento das personagens do palco. O público pode partilhar do contexto semântico, que as palavras pronunciadas provêem de sentido, somente com algumas personagens; esta cumplicidade com o auditório pode deslocar-se alternadamente de personagem para personagem ou, enfim, o público pode entender a orientação semântica de todas as personagens, ainda que as tais personagens não entendam uma à outra. Além do mais, o inteiro contexto semântico precedente da peça, do qual nem todas as personagens precisam decididamente ter consciência, está sempre na consciência do auditório.

Podem também ocorrer casos em que o público está mais amplamente informado sobre a situação no palco do que as personagens do drama. Por fim, tudo o que é dito em cena choca-se na consciência ou subconsciência do auditório com seu sistema de valores, sua atitude para com a realidade. Todas essas circunstâncias possibilitam um jogo imensamente complexo entre significados, e é precisamente esta complexa interação a ocorrer em vários horizontes que constitui a essência do diálogo dramático.

Uma vez que o diálogo está incorporado ao conjunto da obra dramática, não necessita, sem dúvida, apresentar-se livre a ponto de que possa desenvolver todas as suas possibilidades infinitamente mutáveis, pois pode ser limitado em sua fluidez por algum outro componente. Assim, por exemplo, o teatro realista, cuja concepção de diálogo não foi inteiramente abandonada, mesmo hoje em dia, liga o diálogo estreitamente ao esquema da peça, isto é, à inter-relação das dramatis personae enquanto personagens constantes. Aqui, o diálogo serve para tornar as relações mútuas entre os personagens cada vez mais nitidamente acentuadas no decurso da peça e para definir cada personagem através de sua relação com as outras de maneira cada vez mais clara. O caráter inesperado das invenções semânticas é portanto permitido somente ne medida em que não interfere com o propósito principal, mas antes o serve. Outra restrição possível ao diálogo pode encontrar-se, por exemplo, nas peças medievais onde o diálogo serve para ilustrar o enredo.

A estas duas restrições, devemos opor a tendência da prática cênica contemporânea para o diálogo livre de todos os liames, o diálogo como um contínuo jogo de inversões semânticas. O diálogo livre das restrições torna-se poesia cênica: a qualquer momento ele é tão final quanto é contínuo. Repetidas vezes, sem uma obrigação - embora, naturalmente, não sem uma relação latente - com que a precedeu, a palavra procura uma conexão com as personagens, a situação real e a consciência e subconsciência do público.

Não há contexto semântico que o diálogo concebido desta maneira não possa alcançar a partir de qualquer direção, mas tampouco há um qualquer ao qual tenha de aderir. A lei aristotélica de tensão regularmente crescente não pode ser válida para o diálogo cênico livre; de outro lado, não é impossível que precisamente esta forma seja capaz de renovar o sentimento do trágico que emana das tragédias clássicas, que na realidade termina numa disputa forçosamente concluída mas na verdade insolucionada e que potencialmente continua ad infinitum.
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O presente artigo, escrito em 1937, consta do volume Semiologia do Teatro (Editora Perspectiva/1978, Coleção DEBATES). J. Guinsburg assina a tradução.

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