terça-feira, 15 de setembro de 2009

Regras de representação

Jean Louis Barrault


O que se segue não é uma lição sobre arte dramática, mas apenas uma recapitulação de algumas regras necessárias ao ator. O envolvimento prolongado em um mesmo trabalho leva não somente a dar-se demasiada importância a detalhes secundários como também a ignorar-se as leis fundamentais que regem a verdadeira representação. Tentemos então relembrar algumas dessas regras óbvias que tendem a ser esquecidas com demasiada facilidade.

A primeira regra que um ator deve obedecer é a de se fazer ouvir e entender. Na verdade, essa não é uma regra, mas sim uma questão elementar de polidez, e deixar de segui-la é um insulto ao espectador. Fazer-se ouvir está dentro da capacidade de todos; é simplesmente uma questão de aprendizagem, excluindo-se, é claro, os casos de incapacidade fisiológica.

A segunda regra baseia-se na observação e na imitação, e neste caso os dons naturais desempenham seu papel; contudo, deve-se ter em mente o fato de que a capacidade de observação pode ser desenvolvida com a prática e o exercício. Existem pelo menos dois métodos de observação: o método objetivo e o subjetivo. Como um exemplo, pegue uma caixa de fósforo e observe-a analiticamente; concentre sua atenção no conteúdo, na qualidade da madeira, na parte escrita, nos desenhos etc. Após alguns minutos desse tipo de observação, coloque a caixa de lado e descreva-a objetivamente. Pratique esse método de observação com qualquer objeto e logo você perceberá que sua percepção visual torna-se mais rápida e aguçada. Posteriormente, aplique o mesmo método utilizado com objetos na observação de seus semelhantes; observe-os minuciosamente, analise-os por partes, e verá que esse tipo de observação vai lhe fornecer dados preciosos em caracrterizações futuras.

Passemos ao método subjetivo de observação. Desta vez, pegue somente um fósforo, mas não apenas olhe para ele, sinta-o, e diga para si mesmo: "Agora tornei-me madeira ou uma reminiscência da madeira de uma floresta na Suécia. O que resta deste corpo? Sou magro, muito magro, e afilado, e a menor pressão iria me esmagar, partir-me em pedaços; eu iria rachar, ficaria todo partido; mas as pessoas que me usam não me esmagam, mas sim riscam-me na caixa e minha cabeça fica em chamas, já que todo meu fogo localiza-se na cabeça. Vivo em estado de congestão, minha testa queima, as orelhas ficam rubras. Vivo à sombra de uma hemorragia cerebral, meu destino é morrer no instante em que gerar vida, calor e luz. Minha existência me consome; sou o símbolo da vida e da morte ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que já esteja deitado no túmulo, lado a lado com meus irmãos e sem o mínimo espaço para esticar os pés. Não há espaço em nossa caixa, mas talvez as pessoas que as fabricam estejam certas, pois me disseram que em casos sérios de doenças cardíacas deve-se permanecer imóvel, ou então o resultado será uma hemorragia cerebral. É isso que nos espera, etc. etc.""

Essa espécie de observação subjetiva desenvolve a arte da imitação. Para conseguir observar e imitar deve-se possuir determinados dons, mas apesar destes dons, pode-se não saber como observar e imitar, e é neste ponto que entra a prática. Saber observar e imitar é a segunda regra do ator; é a regra da autenticidade. A questão da produção de efeitos só vem posteriormente. Qualquer tentativa de produzir um efeito no teatro evoca, inevitavelmente, uma das últimas frases de um vendedor: "E então, já posso embrulhar?". Mas deve-se lembrar que estas não são as palavras que ele usará na abordagem, mas são suas últimas palavras, proferidas com o intuito de produzir o efeito desejado, se ele for um bom vendedor.

Depois que o ator tenha conseguido fazer-se ouvir e entender, tenha feito uma observação global do personagem escolhido, tenha-o apreendido totalmente, e que possa imitá-lo com facilidade, incorporá-lo e dar-lhe vida, o ator se defronta com a regra que pode ser resumida a três perguntas fundamentais: "De onde venho, para onde vou e como estou me sentindo?"

Há várias opiniões quanto à forma com que se deveria responder a essas perguntas, mas o ator deve ter uma opinião bem definida sobre elas ainda nos bastidores. Tomemos Escapino como exemplo. Estamos em Nápoles; Nápoles é um lugar quente; estamos no Mediterrâneo, uma região onde se pratica a sesta. Escapino, com certeza, deve estar acostumado a fazer a sesta; pode até mesmo ser o rei da sesta. Escapino, como qualquer outro animal, come, dorme, faz amor e se diverte. Ele pode estar descansando ou em atividade. É um mestre do descanso. De onde ele vem? A resposta é fácil: ele acaba de ter em seu sono no orvalho interrompido pelas lamentações de Otávio e Silvestre.

Para onde ele vai? Para lugar nenhum, é claro. Por que deveria ir para algum lugar? Ele renunciou a tudo, diz que as coisas devem vir a ele por conta própria. Como ele está se sentindo? Sonolento, vai acordar aos poucos. Sua primeira fala surge em meio a vestígios de sono e vinho e cheira a alho. Ele, em geral tão falante, deixa os outros falarem. Sem esforços inúteis (ele sabe que precisará de toda a sua energia mais tarde).

Quando os outros acabam de tagarelar, ele boceja, e espreguiçando-se, diz: "Aí estão vocês, quase do tamanho de seus pais, e ainda não conseguiram descobrir que têm cérebros ou sequer que podem usar o juízo...etc.". Espreguiça-se novamente, e após fazer isso, sua mente fica mais clara. Jacinta o faz despertar por completo. Escapino tem sentimentos, e uma fraqueza por mulheres jovens, e pensa consigo mesmo: "Ela não é nada mal", joga então um pouco de charme sobre ela, e com isso ele está pronto. "Tudo bem, quero ajudar vocês dois", diz ele, e assim Escapino dá início e somente irá parar no final da famosa cena com o "sac".

A terceira regra, que acabamos de descobrir, é vital: é a regra da verossimilhança. A quarta regra poderia ser resumida na pergunta: "O que estou fazendo aqui?". Trata-se de uma regra sobre o contexto. O enredo é evolutivo, os personagens representam suas respectivas partes. Agripina ralha com Nero, que escuta, fica aborrecido, pensa em Júlia, acaba ficando com raiva e se fecha ignorando completamente a presença da mãe. Quanto maior o aprofundamento nas regras, mais complexas tornam-se elas.

A pergunta "O que estou fazendo aqui?" implica em pelo menos duas alternativas. Uma, o que determinaram que eu mostraria e o que determinaram que eu esconderia. Esta regra é muito complexa para um pesonagem, pois, embora ele pense que conhece a si mesmo, é possívl que ele se conheça de maneira superficial e que às vezes possa confundir boa fé com má fé. Ele dá importância a coisas que não têm, e é subitamente atingido por coisas das quais sentia-se protegido. Um personagem pode achar que está andando no claro e estar no escuro, e então a paixão contra a qual reluta pode perturbar seu equilíbrio, deturpar suas reações e arrastá-lo para o erro.

Ele pode achar que caminha a passos firmes e tropeçar; pode achar que enxerga com clareza e estar cego. Mas os cegos encontram ajuda nas bengalas. Quando um personagem fica sem saber o que fazer, poderia ser bastante útil encontrar um objeto no qual pudesse se apoiar. Durante o sermão de Agripina, Nero entretem-se com o seu casaco, que se torna seu apoio, seu refúgio e também seu meio de expressão. O ator que encontra um objeto que o ligue à cena que representa confere veracidade ao seu comportamento. Encontrar o objeto certo foi a regra de ouro de Stanislavsky; é uma regra extremamente valiosa, que produz efeitos inumeráveis e é uma das regras mais importantes da arte realista.

A quinta é a regra do controle, e também é muito importante; ela trata da sinceridade e da correção. Existe uma crença generalizada de que a sinceridade é automaticamente correta; isso nem sempre é verdade. O ator pode estar sendo sincero enquanto, ao mesmo tempo, o personagem que interpreta não é completamente correto dentro da representação. Isto porque o ator nunca se identifica totalmente com o personagem que interpreta, e isso é um fato normal visto que estamos no teatro, um lugar onde a vida é recriada através da arte.

O ponto é que o personagem é quem deve ser sincero, independente do fato do ator ser ou não. A representação será correta se o personagem for sincero de modo constante. Quanto maior a identificação entre o ator e o personagem, mais sinceros eles serão. Mas há situações em que a identificação total dos dois pode ser desastrosa. A morte de um personagem obriga o ator que o representa a desligar-se de seu papel e simplesmente projetar a imagem da morte para fora de si mesmo, com o máximo de sinceridade possível. A morte é um caso extremo; contudo, nunca há uma completa identificação entre ator e personagem.

O ator deve trabalhar dentro do contexto da peça, lembrar-se continuamente de seu relacionamento com os outros personagens, manter-se ciente de que está num teatro, e de que deve fazer-se ouvir, manter-se fiel ao enredo, ficar sempre atento à iluminação etc. A sopreposição do ator enquanto pessoa ao personagem assemelha-se àqueles desenhos coloridos de má qualidade, nos quais as cores ultrapassam os contornos do desenho. A correção da representação depende da sinceridade do personagem e da capacidade de controle do ator que deve constantemente questionar: "A despeito de minha sinceridade, será que meu personagem está sendo verdadeiramente sincero?".

Essas são as cinco regras para o aprendizado básico do ator. Elas são a base de seus estudos e de sua arte, e o talento só poderá florescer graças a elas. Da mesma forma que no primeiro e segundo graus e na uiniversidade, dispendemos uma boa parte de nosso tempo passando pelo mesmo ciclo ou desaprendendo o que aprendemos com tanta dificuldade; parece que neste ponto corremos o risco de voltar-nos contra as regras que podem parecer contradizer as anteriores. Contudo, na realidade elas não o fazem. Na infância, podemos ter aprendido que dois e dois são quatro, e mais tarde podemos ter sido induzidos a concluir que esta não é uma verdade absoluta; contudo, essa regra não perde seu valaor nem sua eficácia. Na verdade, regras mais abrangentes não revogam regras eficazes, elas apenas as aprimoram. Da mesma maneira, o teatro poético não invalida o teatro realista; pelo contrário, ele coloca-o em um nível mais elevado.

Após essas cinco regras básicas que são o elemento fundamental da arte dramática mais comum e realista, existem concepções mais práticas. Primeiro, a regra da transposição. Uma vez estabelecidos cuidadosamente os fundamentos do trabalho baseado na veracidade, pode-se tomar a liberdade de esquecer tudo e recomeçar sob nova forma. E assim, acontece que às vezes guiando-se pela inspiração, descobre-se uma maneira de fazer as coisas que, mesmo que à primeira vista não pareça fundamentada na verdade, contém aspectos que são a mais absoluta essência da verdade. Esta é a interpretação verdadeiramente poética.

E para encerrar, gostaria de abordar algo que considero de extrema importância no que diz respeito ao trabalho do ator: a tensão. Parece-me que uma das maiores causas da tensão é a timidez. É possível desejar entrar na pele de outra pessoa, e possuir o dom de mudar a personalidade para poder se transformar no personagem, mas somente quando se está sozinho e não diante dos espectadores. A timidez torna esta operação impossível. Na presença da platéia certos atores ficam nervosos, tensos e perdem a maior parte de seus recursos. Como não conseguem relaxar, eles tendem a tornar-se incapazes de infundir no personagem que representam a sinceridade, autenticidade e espontaneidade que ele necessita. Para evitar essas ciladas, deve-se concentrar na regra mais importante de todas: a da concentração e controle da vontade. Esta é a base da disciplina global da representação. Há muitos exercícios excelentes para o desenvolvimento da arte da concentração e controle da vontade que são os princípios básicos da representação. O resto é silêncio, o que é, em minha opinião, verdadeiro para as representações teatrais assim como para os espetáculos musicais, que existem apenas para fazer o silêncio vibrar.
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O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído de Actors on Acting, ed. por T. Cole e H. C. Chinoy, Crownpub, inc. 1970, N. Y. A tradução ficou a cargo de Betina Bastos Fernandes. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 129/1992, edição já esgotada.

Ator e diretor francês, Jean Louis Barrault (1910-1994) foi discípulo de Dullin - em cujo Théâtre de l'Atelier trabalhou de 1931 a 1935 - e do mímico Decroux. Criou seu próprio teatro, o Grenier des Augustins (1935), teve contato com os surrealistas e coloborou com Artaud em seu Teatro da Crueldade. Nessa época, dirigiu Numancia (1937), Hamlet (1938), A fome (1939).
Em 1940, casou-se com a atriz Madeleine Renaud e entrou para a Comédie Française como ator e diretor, convidado por Copeau. A partir deste ano, constituiu sua própria companhia, a Renaud-Barrault, levando à cena um extenso repertório, aí incluíndo-se autores clássicos e modernos.
Em 1955, assume a direção do Théâtre de l'Odeon, que passou a se chamar Théâtre de France, onde encena basicamente autores modernos, como Ionesco, Beckett e Genet. Em maio de 68 é destituído de seu cargo pelo então Ministro da Cultura, André Malraux, passando a encenar peças inicialmente num ringue de boxe, adiante na estação d'Orsay e finalmente, em 1981, no Théâtre Rond Point, atualmente rebatizado de Renaud Marrault.
Adepto de um "teatro total", Barrault realizou encenações memoráveis, como Rabelais (1969), Assim falava Zarathustra (1974), As noites de Paris (1976) e Zadig (1979). Trabalhou em vários filmes, dentre eles Les enfants du paradis (1944) e La nuit de varennes (1981)

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