quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Conversa sobre teatro

Federico Garcia Lorca


(Em 31 de janeiro de 1935, os atores dos vários teatros de Madrid solicitaram a Margarita Xirgu, a genial criadora de "Yerma", que fizesse para eles um espetáculo extra, ao qual estaria presente o autor, o poeta e dramaturgo andaluz Federico Garcia Lorca. Após este espetáculo, Lorca proferiu as palavras que se seguem).


Queridos amigos: fiz, há tempos, a promessa firme de recusar toda a espécie de homenagens, festas ou banquetes que se fizessem à minha modesta pessoa. Em primeiro lugar, por entender que cada uma dessas cerimônias equivale à colocação de uma pedra sobre o nosso túmulo literário. E, em segundo lugar, porque notei que não há coisa mais desoladora que o discurso frio pronunciado em nossa honra, nem momento mais triste que o do aplauso organizado, ainda que inteiramente de boa fé.

Além disso - e isto é segredo - creio que banquetes e pergaminhos trazem maus agouros para o homem que os recebe; mau agouro proveniente da atitude descansada dos amigos que, ao homenageá-lo, pensam: "Com este já estamos quites". E mais: um banquete é uma reunião de profissionais que comem junto de nós e onde se encontram, normalmente, as pessoas que na vida menos gostam de nós. Para os poetas e dramaturgos, eu organizaria, em vez de homenagens, torneios e desafios nos quais fôssemos galharda e injuntivamente emprazados: "Aposto que não é capaz de fazer isto!", "Aposto que não é capaz de exprimir numa personagem a angústia do mar!" etc.

Os teatros estão cheios de enganadoras sereias coroadas de rosas de estufa, e o público sente-se satisfeito e aplaude quando vê corações de serradura e escuta diálogos à flor dos dentes. Mas o poeta dramático não deve esquecer, se quiser salvar-se do esquecimento, os campos de rosas molhadas pelo amanhecer, em que os lavradores sofrem, e essa pomba ferida por um misterioso caçador, que agoniza entre os juncos sem que ninguém ouça seus gemidos.

Fugindo das sereias, das solicitações e das vozes falsas, não aceitei qualquer homenagem por ocasião da estréia de Yerma; mas experimentei a maior alegria da minha breve vida de autor quando soube que a família teatral madrillena pediu à grande Margarita Xirgu, atriz de imaculada história artística, luzeiro do teatro espanhol e criadora admirável do papel, juntamente com a companhia que tão brilhantemente a secunda, uma representação especial para vê-la.

Pelo que isto significa de curiosidade e atenção para com um esforço notável de teatro, quero apresentar, agora que estamos reunidos, os melhores e mais sinceros agradecimentos a todos. Esta noite não falo como autor nem como poeta, nem sequer como simples estudante do panorama riquíssimo da vida do homem: falo como ardente apaixonado de um teatro de ação social.

O teatro é um dos instrumentos mais expressivos e úteis para a edificação de um país; é o barômetro que marca a sua grandeza ou a sua decadência. Um teatro sensível e bem orientado em todos os seus setores, da tragédia au vaudeville, pode em poucos anos modificar a sensibilidade do povo; e um teatro desordenado, em que as patas substituem as asas, pode abastardar e adormecer uma nação inteira. O teatro é uma escola de lágrimas e de riso, uma livre tribuna onde os homens podem pôr em evidência velhos ou equivocados princípios de moral e explicar, com exemplos vivos, normas eternas do coração e do sentimento do homem.

Um povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não morreu ainda, está moribundo; do mesmo modo que o teatro que não atende à pulsação social, à pulsação histórica, ao drama de seu povo e à genuína cor de sua paisagem e do seu espírito, através do riso ou das lágrimas, não tem o direito de se chamar teatro, mas antes sala de jogo ou lugar para fazer essa coisa medonha que se chama "matar o tempo". Não me refiro a ninguém em particular, nem quero ferir ninguém; não falo da realidade viva, mas o problema posto em tese.

Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. Enquanto os atores e autores estiverem nas mãos de empresas absolutamente comerciais, entregues a sí próprias, e sem qualquer fiscalização literária ou estatal de nenhuma espécie, empresas carentes de todo o critério e sem garantia de nenhuma classe, os atores, os autores e todo o teatro cada dia mais se afundarão, sem salvação possível.

O delicioso teatro ligeiro de revista, o vaudeville e a comédia-bufa, gêneros de que sou afeiçoado espectador, poderiam defender-se e salvar-se ainda; mas o teatro em verso, o gênero histórico e a chamada zarzuela cada dia sofrerão mais reveses, porque são gêneros muito exigentes e que comportam autênticas inovações, e não há autoridade nem espírito de sacrifício para incorporá-las a um público que precisa ser dominado com elevação e em muitas ocasiões contraditado e atacado. É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro.

Para isto, autores e atores deverão revestir-se, mesmo à custa de sangue, de uma grande autoridade, porque o público de teatro é como as crianças nas escolas: adora o professor grave e austero que exige e faz justiça, e espeta agulhas cruéis nas cadeiras em que se sentam os professores tímidos e complacentes, que não ensinam nem deixam ensinar.

O público pode ser ensinado - repare-se que falo em público, não em povo -; pode ser ensinado, porque eu vi Debussy e Ravel serem vaiados há anos, e tempos depois assisti às clamorosas ovações que um público popular dirigia às obras que antes repudiara. Estes autores foram impostos por um alto critério de autoridade superior ao do público comum; o mesmo sucedeu a Wedekind na Alemanha e a Pirandello na Itália, e a tantos outros.

Há necessidade de assim proceder para o bem do teatro e para a glória e dignificação dos seus intérpretes. Há que manter atitudes dignas, com a certeza de que serão recompensadas com juros. O contrário é tremer de medo nos bastidores e matar a fantasia, a imaginação e a graça do teatro, que é sempre uma arte, e sempre há de ser uma arte excelsa, embora tenha havido uma época em que se chamava arte a tudo o que apenas servia para rebaixar a atmosfera e destruir a poesia.

Arte acima de tudo. Arte nobilíssima; e vós, queridos atores, artistas acima de tudo. Artistas dos pés á cabeça, pois que foi por amor e por vocação que haveis ascendido ao mundo fictício e doloroso das tábuas do palco. Artistas por ocupação e preocupação. No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra "Arte" na sala e nos camarins, porque senão teremos que escrever a palavra "Comércio".

Não quero dar-vos uma lição, porque me encontro em condições de recebê-la. O entusiasmo e a certeza ditam as minhas palavras. Não sou um iludido. Pensei a fundo - e a frio - no que digo e, como andaluz, possuo o segredo da frieza, porque tenho sangue antigo. Sei que a verdade não a detém aquele que repete "hoje, hoje, hoje" enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo.

Sei que não tem razão aquele que diz "Agora mesmo, agora, agora" com os olhos postos na garganta estreita da bilheteria, mas sim o que diz "Amanhã, amanhã, amanhã" e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo.
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Extraído de Teatro Moderno, Luiz Francisco Rebello, 1964. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 72/1977, edição já esgotada.

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