Martins Pena:
uma visão dos seus personagens
Colin M. Pierson
Embora as farsas ou comédias realistas de Martins Pena tenham sido objeto de estudo, não tem sido dada a atenção devida a seus personagens (ou caso se prefira dizer, esteriótipos) como uma base importante na tradição da comédia realista no Brasil. Antes de iniciar nosso exame, contudo, seria bom revisar certos desenvolvimentos sócio-históricos que influenciaram Martins Pena, tanto como sua época.
O ímpeto original de interesse no drama moderno no Brasil foi a transmigração da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, a fim de fugir dos exércitos de Napoleão. Os portugueses estavam muito mais próximos geograficamente do que os brasileiros dos centros de idéias literárias na Europa que, com respeito ao drama do século XIX, tanto em Portugal como no Brasil, eram representados principalmente na França. Não é de surpreender que os dramaturgos portugueses, mesmo estando, quase sempre, com anos de atraso em relação aos seus colegas franceses, tivessem uma influência contínua no Brasil, no último século. Se Portugal sempre parecia um pouco atrasado no uso de novas idéias e técnicas, os brasileiros o eram ainda mais, porque muitas inovações eram filtradas por Portugal. É correto afirmar que o teatro brasileiro em geral, desde os primórdios até a 1ª Guerra Mundial, nunca se libertou do teatro português.
Esse domínio por parte de Portugal não se limitava aos dramaturgos e suas peças, mas incluía as companhias de atores também. A primeira companhia portuguesa de atores que incluía a famosa atriz Ludovina Soares, veio para o Brasil m 1829 com a ajuda de D. Pedro I. Esta era apenas a primeira de uma longa série de companhias estrangeiras, portuguesas e outras, que vieram exibir suas peças no Brasil e se concentravam principalmente no já reconstruído Teatro São Pedro.
No século XIX o teatro brasileiro, de uma forma ou de outra, estava muito ligado em todas as fases de sua existência ao desenvolvimento do drama e técnicas dramáticas de Portugal. O resultado foi que os brasileiros, apesar dos protestos não muito frequentes contra a influência portuguesa, sempre mantiveram certa reverência por Portugal. Por conseguinte, o Brasil tratava Portugal abaixando a voz, por sinal de respeito e por medo de ser tido como bobo.
Era o mesmo tipo de relacionamento que existia entre os Estados Unidos e a Inglaterra, exceto que quando examinamos o que o Brasil conseguiu sem nenhuma tradição teatral que lhe auxiliasse (o mesmo acontecendo com relação a Portugal), pode-se concluir que seu complexo de inferioridade era bem menos justificável.
Um subgênero, entretanto, uma exceção a essa reverência a Portugal, estava sendo criado no Brasil, no mesmo momento em que Gonçalves de Magalhães (1811-1882) começava a introduzir o drama romântico "sério" da França: a comédia realista de Martins Pena (1815-1848). A comédia realista ou a comédia impregnada de matizes regionais, de Martins Pena, deveria ter a aceitação do público teatral brasileiro e também dos dramaturgos. Contudo, posto que o intercâmbio de influência dramática entre Portugal e Brasil fora de curta duração, Martins Pena - bem como outros dramaturgos brasileiros - seria completamente ignorado pelos portugueses.
Em outubro de 1838, o mesmo ano em que foi produzida a peça de Magalhães Antônio José ou o poeta e a Inquisição (um acontecimento importante como a primeira tragédia escrita por um brasileiro usando um tema nacional), foi estreada uma farsa em um ato, de Martins Pena, intitulada O juiz de paz na roça. O surgimento desta comédia realista, juntamente com a tragédia de Magalhãs, marcou, se não a criação do teatro brasileiro no sentido histórico estrito, pelo menos marcou seu início de maneira moderna.
Pena, mais do que qualquer um, foi o fator principal e a força motriz do desenvolvimento deste movimento teatral autenticamente brasileiro. O próprio Martins Pena fez várias tentativas de escrever tragédias, seis ao todo. Das cinco completas, de todas que foram escritas quando o autor não tinha mais de 25 anos e portanto muito distante da maturidade dramática, somente Vitiza ou o Nero da Espanha foi apresentada. Nenhuma adicionou mais nada à sua fama como dramaturgo. Ou seja, a fama de Pena reside inteiramente em suas comédia que eram, na maioria, peças de um só ato e descrições vivas sobre a moral e os costumes de sua época.
Apesar de Pena ter escrito em um período romântico no Brasil, suas comédias realistas fizeram dele, por assim dizer, o precursor do realismo. Em especial, a linguagem que ele usava era realista e captava o sabor da linguagem falada na época.
Em suas comédias, Martins Pena concentrou sua atenção, em geral, na sociedade da classe média inferior, observando e apresentando, entretanto, somente aquelas peculiaridades e fraquezas visíveis apenas na superfície. Eram comédias de matiz regional, e Pena não tinha intenção de fazê-las de outro modo. Ele não era de maneira alguma um dramaturgo filosófico, e suas observações, mesmo realistas, eram superficiais, pois ele satisfazia sua audiência e a si mesmo com zombarias, improvisações e situações cômicas, um jogo de palavras. Algumas vezes os trocadilhos poderiam chegar às raias do "risqué", mas nunca seriam verdadeiramente ásperos ou grosseiros:
Clemência - Como é mesa em francês?
Júlia - Table.
Clemência - Braço?
Júlia - Bras.
Clemência - Pescoço?
Júlia - Cou.
Clemência - Menina!
Júlia - É cou mesmo, mamã!?
Clemência - Está bom, basta.
Eufrásia - Esses franceses são porcos. Ora veja, chamar o pescoço, que está ao pé da cara, com este nome tão feio (O inglês maquinista)
Era uma época propícia, no Brasil, para o tipo de comédia de Pena. Ele era um funcionário público do Segundo Império, que entrava em um período de relativa calma depois de muitos anos de contendas. O Rio de Janeiro era ainda uma capital colonial provinciana, com uma sociedade simples, ainda razoavelmente isolada da Europa do século XIX. Pena podia zombar de certos aspectos da sociedade e, ao mesmo tempo, apelar para seu sentimento de orgulho nacional para os valores brasileiros. Nada no teatro foi alguma vez - antes ou depois - mais completamente brasileiro que as comédias de Pena.
No entanto, as fontes necessárias às comédias realistas de Pena não podem ser constatadas com certeza, dentre outras razões porque o autor relutava em entrar em discussões teóricas sobre suas peças. Mas é óbvio que diversos elementos de suas peças mostram que ele era familiarizado com Molière, embora diferenciasse deste em muitos aspectos básicos e importantes. Talvez Pena se deixasse influenciar por autores de comédia antigos e novos, como Gil Vicente, Antonio José da Silva e Scribe, ou por viajantes estrangeiros como Debret e Luccocü, que escreveram pitorescos livros de viagens sobre as maravilhas do Brasil do século XIX.
Outras fontes possíveis para Martins Pena foram as farsas portuguesas e as comédias baixas trazidas ao Brasil por companhias estrangeiras - exatamente o mesmo tipo de comédia baixa que Almeida Garret e outros reformistas românticos tentaram eliminar em Portugal. Junto com essas possíveis fontes de influência sobre Pena, não podemos esquecer também a possibilidade de influência da commmedia dell'arte italiana.
As comédias de Pena foram, frequentemente, peças curtas para abertura de programa, quase como peças humorísticas, que acompanhavam ou seguiam dramas mais longos e mais "sérios" no palco, e esses primeiros esforços não o mencionavam sequer como autor. Pena teve de realizar sua veia cômica em um objetivo imediato, pois ele tinha, geralmente, apenas um ato para trabalhar.
A sua fórmula de sucesso foi a criação de um tipo de comédia onde tipos e personagens secundários eram colocados em certas situações das quais dependeria todo o desenrolar da peça. Embora muitas dessas peças fossem comédias padronizadas, repletas de ações ridículas, deve ser lembrado que personagens e tipos de personagens eram muito importantes, pois esses "tipos" (ou caricaturas) foram desenvolvidos em comédias realistas por autores posteriores.
O que acontece, naturalmente, na grande maioria das comédias de Pena, é que quando o dramaturgo pensa ter esgotado todos os motivos de graça possível da peça, ele precisa terminá-la - ou melhor, desembaraçar-se da mesma. Dessa forma, os finais nem sempre são o resultado lógico das ações desenroladas no enredo.
Outra técnica muito usada é a de finalizar a peça em estilo de "deus-ex-machina" que às vezes chega às raias do que poderia ser denominado humor negro. Em O diletante, por exemplo, Pena zombava de um de seus alvos preferidos: o brasileiro que está fascinado por toda e qualquer cultura estrangeira, mas que acha indigno tudo que é brasileiro indigno - até mesmo incivilizado. Com a chegada oportuna de uma carta, Pena acaba a peça.
As farsas em um ato de Pena, caracterizadas por movimentação rápida e quase que do tipo "pastelão", não significam que ele não tivesse tentado fazer peças mais longas, no mesmo gênero. Ele escreveu várias comédias em três atos: As casadas solteiras foi uma imitação dos modelos fanceses, enquanto que O usurário permaneceu inacabada. O noviço é a única no repertório de Pena, e consiste em três atos, tendo equilíbrio e unidade entre forma e conteúdo, o que mostra certa moderação no aspecto cômico. Pena dava a impressão de ter em mente as comédias romanas, particularmente as de Plauto. Apesar do equilíbrio e da originalidade desta comédia mais longa, Pena voltaria, até a sua morte, à comédia de um só ato, nas qual ele se sentia mais à vontade.
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Artigo extraído de Latin American Theatre Review, Spring/1978. nº 11/12. Tradução de Ubiratan Garcia de O. Junior. Este artigo, aqui um pouco reduzido, está publicado na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 79/1978, edição já esgotada.
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
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