Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XVI
Passaram-se dois dias. Monsenhor Flávio não apareceu, tampouco Anacleto. Quanto a irmã Geovana, nem sombra dela. Comecei a suspeitar que jamais viria, que me instalara naquela granja movida por um impulso do qual já se arrependera - mal sabia eu que tão logo deixei o convento nele começaram a eclodir conflitos cuja evolução, totalmente imprevista, acabariam conduzindo a um trágico desfecho. Naquele momento, no entanto, devido à falta de conhecimento dessa realidade, tudo que de concreto havia era a solidão. Temendo empreender uma iniciativa suicida, como ir até o convento procurar minha amada, resolvi ocupar a cabeça iniciando a história de Ambrosina e os braços, cavando um abrigo subterrâneo para me ocultar da turba. As tarefas começaram ao raiar do terceiro dia, sendo que nos dois primeiros me dediquei a ler os manuscritos iniciais da espantosa criatura.
Eles relatavam sua infância naquela cidade, seu casamento aos quinze anos e seu exílio aos trinta, depois que seu marido e sua filha encontraram a morte no mesmo dia e de maneira igualmente ridícula - ele devido a um coice dado pelo dromedário de um circo que passava por ali; ela, sufocada por um instrumento, semelhante a uma tuba, com o qual realizava experiências acústicas. Mas pelo que pude perceber, já bem antes do duplo acidente ela manifestava a intenção de abandonar a cidade, não o tendo feito antes em virtude da existência do marido e da filha, ainda que com ambos vivesse às turras. Com a morte do dois, não encontrou mais nada que pudesse detê-la naquele lugar e partiu sem se despedir de ninguém, com a intenção de nunca mais voltar.
O relato desse trecho da vida de Ambrosina me impressionou bastante, pois estava impregnado de acontecimentos dolorosos e funestos. Mas em meio a tudo que li, um fato assumiu para mim uma dimensão enorme, posto que absolutamente inesperado. Ambrosina possuía uma irmã, um pouco mais jovem, com quem cortara relações ainda na infância e que permanecera na cidade. Essa irmã, convencida de que não poderia fazer-lhe frente nem em beleza, nem em inteligência, dedicara-se ao estudo de ciências ocultas, tendo adquirido com o passar do tempo a fama de bruxa. E embora durante a ausência de Ambrosina tivesse alcançado considerável prestígio junto à comunidade, quando a irmã, passados sessenta anos, retornou à cidade, seus prestígio tornou-se nulo, passando a ser por todos desprezada. Essa criatura escapara da chacina no cemitério apenas porque sua presença não seria tolerada no funeral - como o amigo leitor já deve ter notado, estou me referindo à hedionda Ecúria, a feiticeira que falava sem abrir a boca, cujos cabelos cor de limo chegavam até os pés e que previra a falência do meu amor e minha morte na cidade.
Ao me inteirar desse parentesco, senti um certo pânico, pois conhecendo meu interesse pela irmã, Ecúria se sentiria plenamente recompensada se pudesse ver concretizadas suas professias. Primeiro porque já me odiava, desde o nosso incidente; e depois porque, conseguindo vitimar-me, impediria que a história de Ambrosina fosse ao mundo divulgada. Se quisesse, portanto, levar a bom termo tanto o meu amor quanto minhas ambições literárias, deveria me cercar de todas as precauções, pois ao menor vacilo a bruxa ventríloca me liquidaria. Dentre essas precauções se incluía, naturalmente, monsenhor Flávio, que em função de seu estado poderia ser seduzido pela megera e em seu agente convertido.
Ao entardecer do terceiro dia, já estava em vias de interromper minhas atividades de toupeira - eu estava construindo meu refúgio no quintal que havia nos fundos e que já media dois metros de altura, o dobro de comprimento e um de largura - quando escutei um rumor de passos no lado oposto da casa. Apelando para o resto de energia que ainda possuía, empunhei a pesada pá que me fizera companhia a tarde toda e avancei na direção do intruso, pronto a desferir violento golpe ao menor sinal de perigo. Quando já estava quase na frente da casa quase tropeço nas saias de monsenhor Flávio, que, não me encontrando estirado na varanda da sala, resolvera me procurar nos fundos. Ao me ver empunhando ameaçadoramente a dita pá, monsenhor, por acreditar que sua hora havia chegado, caiu de joelhos e bradou:
- Agradeço-te, Oh Pai, por resolveres finalmente abreviar minha agonia!
E disparou um "Pai Nosso" numa tal velocidade que me deu a impressão de que temia passar ao outro mundo sem ter tempo de concluí-lo. Em seguida, percebendo que ainda vivia, emendou um "Salve Rainha" numa rotação idêntica, procurando por certo sensibilizar Nossa Senhora no caso do bom Deus ficar em dúvida quanto ao destino que daria à sua alma. Mas quando monsenhor iniciou um "Creio em Deus Pai...", aí eu achei que já era hora de interromper seu fervor implorativo e lhe dei uma sutil cutucada na orelha esquerda com o cabo da pá, o que o fez soltar um grito tão estridente que parecia que eu o havia marcado a fogo, como um bezerro. Em seguida, tombou de bruços e no barro se imobilizou. Nesse momento eu tive tanta raiva de sua ridícula histeria que por pouco não o joguei no buraco que cavara e o cobri com terra, terminando de uma vez por todas com a vida desse sujeitinho que me azucrinara um dia inteiro com suas histórias de morte.
Evidentemente que não o fiz, mas em compensação o tratei com bastante severidade, recriminando asperamente a frivolidade com que fizera suas orações e demonstrando que seu descontrole só encontrava equivalência nos ataques das adolescentes nobres do século passado. Para arrematar, obriguei-o a jurar sobre uma bíblia imaginária que uma histeria como aquela não se repetiria em hipótese alguma, sob pena de eu afastá-lo para sempre de meu convívio. Monsenhor não apenas jurou quanto pareceu estar de acordo com tudo que lhe disse. Assumiu, inclusive, uma postura tão subserviente que por um momento imaginei que iria se oferecer para me engraxar os sapatos. Mas como eu não estava interessado em prolongar um clima tão desagradável, mudei de tom e perguntei o que ele desejava.
- Vê-lo...- respondeu, constrangido e humilhado. Apesar disso, o caráter óbvio de sua resposta me deu uma certa cólera.
- O senhor ficou de voltar no dia seguinte, se não me falha a memória. Por que não veio? Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu...e não aconteceu. Quer dizer... - retrucou, hesitante.
Monsenhor Flávio parecia um colegial diante do reitor. Não despregava os olhos do chão e sua voz era quase inaudível. Percebi que ele esperava que eu lhe facilitasse a tarefa, mas eu estava tão cansado e preocupado com meus próprios problemas que me faltava disposição para tentar ajudá-lo a vencer seu embaraço. Alguns minutos se passaram e monsenhor não completava a frase deixada em suspenso. Propus então que me acompanhasse até a sala e me aguardasse enquanto tomava banho e trocava de roupa.
- Depois comemos alguma coisa e o senhor me conta o que houve. Está bem assim?
- Eu lhe agradeço... - murmurou baixinho e me seguiu como um viralatas até a sala, voltando a se sentar na parte do sofá onde as molas espetavam. Ao sair em direção ao banheiro, não me furtei em lhe fazer uma singela observação:
- Cuidado com o rabo, monsenhor...
Quando voltei, trazendo numa bandeja pão, leite e um pedaço de queijo, monsenhor estava sentado no mesmo lugar, o que me levou à suspeita de que ele não devia ser de todo insensível a uma pressão nas nádegas. Sentamo-nos à mesa e comemos em silêncio. Ele acabou primeiro e parecia disposto a repetir, mas eu fingi não perceber os ávidos olhares que me lançava e quando terminei me dirigi para a poltrona, forçando-o a me acompanhar. Dessa vez monsenhor optou pela parte sã do sofá, talvez por imaginar que nossa conversa seria longa. De minha parte, esperava que fosse bem curta, pois estava caindo de sono. Para afugentá-lo, assim como a um mosquito que me rondava, acendi um cigarro.
Surpreendentemente, ao invés de começar a falar, monsenhor pôs-se a acompanhar fascinado a mágica trajetória da fumaça, como se nunca a tivesse visto. Percebendo seu interesse, comecei a expelí-la em forma de anéis, que atravessam a distância que nos separava e íam se chocar com seu nariz. Ele os aspirava com evidente prazer, embora não fosse fumante, o que me fez recordar a discussão que tivera com Ambrosina sobre o excesso de incenso na igreja. Ela reclamara que em certas ocasiões até mesmo a visão do altar ficava sacrificada, insinuando maliciosamente que monsenhor mantinha com essa substância uma relação mais narcótica do que religiosa. E embora ele tenha reagido energicamente a esse insinuação, é bem provável que, no fundo, ela não fosse de todo infundada.
Quando meu cigarro já estava quase no fim, decidi impressionar monsenhor ainda mais. Soltando todo o ar de que dispunha, dei uma tragada imensa; em seguida, expeli a fumaça na forma de um único anel, que ganhou altura e passou por cima da cabeça dele. Monsenhor não resistiu e se virou para acompanhar sua trajetória. Como havia na sala uma corrente de ar, meu anel foi por ela carregado até sumir na noite, tendo inclusive aumentado de tamanho durante esse percurso. Ao voltar-se para mim, o prelado parecia comovido com minha habilidade e seus olhinhos brilhavam. Por um momento cheguei a cogitar em ir até a cozinha e de lá voltar equilibrando uma cadeira na testa, proeza que realizava com igual competência, mas abdiquei da idéia por temor de que ela pudesse não ser bem recebida - monsenhor poderia achar que eu o estava fazendo de palhaço e eu não pretendia isso. Mas também não queria passar a noite toda contemplando suas orelhas pontudas e seu nariz de Pinóquio, como um pintor que estudasse seu modelo. Assim, tomei a iniciativa:
- Caro monsenhor: eu o esperei dois dias na maior ansiedade (mentira) e o senhor não deu o ar de sua graça. Estou muito ocupado com alguns assuntos da maior importância e não tenho tempo a perder. Portanto, peço que me diga a que veio sem mais delongas. Estou muito cansado e não pretendo dormir tarde.
Ao ouvir essas palavras, monsenhor ficou rubro como um tomate. Suas orelhas se agitaram em sentido oposto, fazendo dançar o chapeuzinho que ele se esquecera de tirar. Sua boca desapareceu e suas mãos, crispadas no sofá, completavam um quadro geral de indignação que muito me surpreendeu. Afinal, eu não dissera nada que pudesse tê-lo magoado desse jeito; fora, quando muito, assertivo ao lhe expor com clareza minha situação. Mas monsenhor reagia como se eu lhe tivesse dado uma bofetada. O curioso é que, pouco antes, no pátio, eu havia sido bem mais ríspido e ele não esboçara a menor reação. Talvez porque estivesse de estômago vazio, mas o fato é que se comportou da maneira mais submissa possível. E agora se permitia uma atitude para a qual eu não encontrava a menor justificativa. Quando estava a ponto de lhe pedir explicações, ele se levantou e me disse:
- O senhor não precisa se inquietar porque eu já vou deixar esta casa e nela nunca mais entrarei. Mas antes de fazê-lo, quero que saiba que só faltei ao nosso encontro por sua causa. Não fiz outra coisa durante esses dias a não ser me ocupar de sua pessoa. Se tivesse agido de outra forma, a esta altura o senhor provavelmente já estaria morto!
Aí quem se levantou fui eu. Mas monsenhor não me deu tempo de dizer nada.
- Muito obrigado, senhor Aquino, pela sua atenção e pela sua comida. Espero que tenha um sono tranquilo.
E partiu célere, batendo a porta com violência. Por ter levado uns cinco segundos para me recuperar do choque, quando o alcancei monsenhor já estava quase na porteira. Mas eu me coloquei à sua frente, impedindo sua passagem. A lua, feérica, conferia à colera do prelado uma dimensão sobrenatural. Banhado por essa luz diáfana, seu rosto parecia uma máscara mortuária.
- Monsenhor: creio que o senhor interpretou mal minhas palavras. Em nenhum momento pensei que elas pudessem magoá-lo dessa forma. Talvez tenha sido excessivamente direto, mas isso deve ser creditado ao meu caráter e à minha formação (distorcia um pouco a verdade, não resta dúvida). Em todo caso, quero que saiba que prefiro perder sua amizade pela minha franqueza do que conservá-la valendo-me da hipocrisia.
Depois de um breve momento de reflexão, monsenhor murmurou, com voz levemente embargada:
- Lamento a atitude intempestiva que tomei, abandonando a sala sem lhe dar ciência dos fatos. Mais uma vez sou forçado a lhe perdir perdão.
- E eu o concedo com o maior prazer, monsenhor! - emendei, exibindo todas as obturações. E de braços dados regressamos à sala, onde ouvi de monsenhor o espantoso e assustador relato que se segue.
________________
terça-feira, 5 de outubro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário