terça-feira, 5 de outubro de 2010

Sobre a leitura e os livros

Arthur Schopenhauer
(1788-1860)


1.

A ignorância degrada os homens somente quando se encontra associada à riqueza. O pobre é sujeitado por sua pobreza e necessidade; no seu caso, os trabalhos substituem o saber e ocupam o pensamento. Em contrapartida, os ricos que são ignorantes vivem apenas em função de seus prazeres e se assemelham ao gado, como se pode verificar diariamente. Além disso, ainda devem ser repreendidos por não usarem sua riqueza e ócio para aquilo que lhes conferiria o maior valor.


2.

Quando lemos, outra pessoa pensa por nós: apenas repetimos seu processo mental, do mesmo modo que um estudante, ao aprender a escrever, refaz com a pena os traços que seu professor fizera a lápis. Quando lemos, somos dispensados em grande parte do trabalho de pensar. É por isso que sentimos um alívio ao passarmos da ocupação com nossos próprios pensamentos para a leitura. No entanto, a nossa cabeça é, durante a leitura, apenas uma arena de pensamentos alheios. Quando eles se retiram, o que resta? Em conseqüência disso, quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo - como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar. Mas é este o caso de muitos eruditos: leram até ficarem burros.

Pois a leitura contínua, retomada de imediato a cada momento livre, imobiliza o espírito mais do que o trabalho manual contínuo, já que é possível entregar-se a seus próprios pensamentos durante esse trabalho. Assim como uma mola acaba perdendo sua elasticidade pela pressão incessante de outro corpo, o espírito perde a sua pela imposição constante de pensamentos alheios. E, assim como o excesso de alimentação faz mal ao estômago e dessa maneira acaba afetando o corpo todo, também é possível, com excesso de alimento espiritual, sobrecarregar e sufocar o espírito. Pois, quanto mais se lê, menor a quantidade de marcas deixadas no espírito pelo que foi lido: ele se torna como um quadro com muitas coisas escritas sobre as outras.

Com isso não se chega à iluminação: mas é só por meio dela que nos apropriamos do que foi lido, assim como as refeições não nos alimentam quando comemos, e sim quando digerimos. Em contrapartida, se alguém lê continuamente, sem parar para pensar, o que foi lido não cria raízes e se perde em grande parte. Em todo caso, com o alimento espiritual ocorre a mesma coisa que com o corporal: só a qüinquagésima parte do que alguém absorve é assimilada, o resto se perde pela transpiração, respiração e, assim por diante. Além de tudo, os pensamentos postos em papel não passam, em geral, de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho é preciso usar seus próprios olhos.


3.

Nenhuma qualidade literária - como por exemplo a capacidade de persuasão, a riqueza de imagens, o dom da comparação, a ousadia, ou a amargura, ou a concisão, ou a graça, ou a leveza da expressão, ou mesmo a argúcia, os contrastes surpreendentes, o laconismo, a ingenuidade, entre outras - pode ser adquirida pelo simples fato de lermos escritores que possuem tal qualidade. Contudo, se já as possuímos in potentia, podemos evocá-las, trazê-las à nossa consciência, podemos ver o uso que que é possível fazer delas, podemos ser fortalecidos na inclinação, na disposição para usá-las, podemos julgar o efeito de sua aplicação em exemplos e, assim, aprender a maneira correta de usá-las; e só então possuiremos tais qualidades in actu.
Essa é a única maneira de a leitura ensinar a escrever, na medida em que ela nos mostra o uso que podemos fazer de nossos próprios dons naturais; portanto, pressupondo sempre a existência destes. Sem eles, não aprendemos coisa alguma pela leitura, a não ser uma forma fria e morta, de modo que não nos tornamos nada mais do que imitadores banais.


4.

A corporação da vigilância sanitária deveria, no interesse dos olhos, prestar atenção para que o tamanho das letras impressas tivesse um mínimo estabelecido e que não pudesse ser desrespeitado. (Quando eu estava em Veneza, em 1818, numa época em que as autênticas correntinhas venezianas ainda eram fabricadas, disse-me um ourives que os fabricantes da catena fina ficavam cegos aos trinta anos).


5.

Assim como as camadas da terra conservam as séries de criaturas vivas de épocas passadas, também as prateleiras das bibliotecas conservam em série os erros do passado da maneira como foram expressos; erros que, como aquelas criaturas, eram bem vivos em seu tempo e faziam bastante barulho, mas agora permanecem ali rígidos e petrificados, num local em que apenas os paleontólogos literários os observam.


6.

Segundo Heródoto, Xerxes chorou ao contemplar seu exército inumerável, pensando que em cem anos nenhum daqueles homens estaria vivo. Quem não sentiria vontade de chorar, à vista dos grossos catálogos editoriais, se pensasse que, de todos aqueles livros, já em dez anos não haverá nenhum vivo.


7.

Ocorre na literatura o mesmo que na vida; para onde quer que alguém se volte, depara-se logo com o incorrigível vulgo da humanidade, que se encontra por toda parte em legiões, enchendo e sujando tudo, como as moscas no verão. Isso explica a quantidade de livros ruins. Essa abundante erva daninha da literatura que tira a nutrição do trigo e o sufoca. Pois eles roubam tempo, dinheiro e atenção do público, coisas que pertencem por direito aos bons livros e a seus objetivos nobres, enquanto os livros ruins são escritos exclusivamente com a intenção de ganhar dinheiro ou criar empregos. Nesse caso, eles não são apenas inúteis, mas realmente prejudiciais. Nove décimos de toda a nossa literatura atual não tem nenhum outro objetivo a não ser tirar alguns trocados do bolso do público: para isso, o autor, o editor e o crítico lieterário compactuam.

Um golpe pior e mais maldoso, porém mais digno de consideração, foi dado pelos literatos, pelos escritores prolixos que fazem da literatura seu ganha-pão, contra o bom gosto e a verdadeira formação da época, possibilitando que eles levem todo o mundo elegante na coleira, tornando-o adestrado a ler no momento certo, isto é, fazendo todos lerem sempre a mesma coisa, o livro mais recente, a fim de ter um assunto para conversar em seu círculo. Servem a esse objetivo os romances ruins e produtos semelhantes de penas antes renomadas, como as de Spindler, Bulwer, Eugène Sue, entre outros.

Contudo, o que pode ser mais mesquinho do que o destino desse público beletrista que mantém o compromisso de ler sempre a última coisa escrita por cabeças das mais vulgares, por pessoas que escrevem apenas por dinheiro e, por isso mesmo, podem ser encontradas em grande número, enquanto as obras dos espíritos mais raros e elevados de todos os tempos e países são conhecidas apenas de nome! - Em particular a imprensa diária ligada às letras constitui um meio engenhoso de roubar, ao público interessado em estética, o tempo que deveria ser dedicado aos produtos autênticos do gênero, para o bem de sua formação, de modo que esse tempo fique reservado aos remendos diários de obras feitas por cabeças banais. Como as pessoas lêem sempre, em vez dos melhores de todos os tempos, apenas a última novidade, os escritores permanecem no círculo estreito das idéias que circulam, e a época afunda cada vez mais em sua própria lama.

Por isso é tão importante, em relação ao nosso hábito de leitura, a arte de não ler. Ela consiste na atitude de não escolher para ler o que, a cada momento determinado, constitui a ocupação do grande público; por exemplo, panfletos políticos ou literários, romances, poesias etc., que causam rebuliço justamente naquele momento e chegam a ter várias edições em seu primeiro e último ano de vida. Basta nos lembrar-mos de que, em geral, quem escreve para os tolos encontra sempre um grande público, a fim de que nosso tempo destinado à leitura, que costuma ser escasso, seja voltado exclusivamente para as obras dos grandes espíritos de todos os tempos e povos, para os homens que se destacam em relação ao resto da humanidade e que são apontados como tais pela voz da notoriedade. Apenas esses espíritos realmente educam e formam os demais.

Quanto às obras ruins, nunca se lerá pouco quando se trata delas; quanto às boas, nunca elas serão lidas com freqüência excessiva. Livros ruins são veneno intelectual, capaz de fazer definhar o espírito. Para ler o que é bom uma condição é não ler o que é ruim, pois a vida é curta, o tempo e a energia são limitados.


8.

Escrevem-se livros ora sobre este, ora sobre aquele grande espírito do passado, e o público os lê, mas não lê os próprios autores dos quais eles tratam. Isso porque o público só quer ler o que acaba de ser impresso, de modo que a indiscrição fútil e insossa de uma cabeça vazia atual lhe parecerá mais homogênea e agradável do que os pensamentos de grandes espíritos. Mas eu agradeço ao destino por ter me conduzido, já na juventude, a um belo epigrama de A. W. Schlegel que desde então se tornou minha estrela guia:

Leiam com afinco os antigos, os verdadeiros e autênticos antigos: o que os modernos dizem sobre eles não significa muito.
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Artigo extraído, e aqui reduzido, do livro "A arte de escrever" (L&PMPOCKET), que contém deliciosos ensaios de um dos mais importantes filósofos alemães - todos eles, diga-se de passagem, acessíveis a leitores não necessariamente versados em Filosofia. Constam ainda do volume: "Sobre a erudição e os eruditos", "Pensar por si mesmo", "Sobre a escrita e o estilo" e "Sobre a linguagem e as palavras". Organização, tradução, prefácio e notas de Pedro Süssekind.

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