sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"O inferno sou eu"

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A humanização do mito


Lionel Fischer


De acordo com o release que me foi enviado, a frase "Entre a fidelidade e a liberdade, haverá uma conciliação possível?" foi a fonte inspiradora que motivou Juliana Rosenthal K. a escrever "O inferno sou eu". A peça, em cartaz no Teatro Poeira, parte de fatos reais - a estadia no Brasil, por alguns meses, do casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, sendo a ação ambientada na cidade do Recife - para criar uma relação fictícia entre a célebre escritora (autora da mencionada frase) e Dorinha, uma jovem estudante de Letras.

Estando o casal hospedado na casa de Marta, por quem Sartre está nutrindo forte interesse, a anfitriã encarrega Dorinha de "cuidar" de Simone, ainda recuperando-se de um tifo. Eis, em resumo, o enredo de "O inferno sou eu", que chega à cena com direção de José Rubens Siqueira e elenco formado por Marisa Orth (Simone) e Paula Weinfeld (Dorinha).

Na parte inicial do texto, vemos uma Simone de Beauvoir ainda combalida pela doença e exibindo doses equivalentes de mau humor e arrogância, sem com isso conseguir arrefecer a apaixonada admiração que por ela nutre a jovem estudante de Letras. Aos poucos, no entanto, a relação entre ambas vai perdendo a aspereza, o que decorre, fundamentalmente, da fragilidade que Simone exibe ao recordar-se de sua paixão por um norte-americano - nessas passagens, o mito cede lugar ao humano, e em última instância, ao menos neste aspecto, Simone e Dorinha se nivelam, pois esta última também nutre uma grande paixão por um homem, paixão esta que, inicialmente, Simone não cansa de ironizar.

O texto, portanto, tem o grande mérito de, como já foi dito, humanizar o mito, além de facultar à platéia algumas reflexões mais do que pertinentes da extraordinária escritora, ensaísta e pensadora francesa. Afora o fato de mesclar, com a mesma competência, diversificados climas emocionais, expressos por dois personagens muito bem construídos, que tanto evidenciam humor como não relutam em exibir suas carências, mágoas e indecisões.

Quanto ao espetáculo, José Rubens Siqueira impõe à cena uma dinâmica que, sabiamente, renuncia a desnecessárias firulas formais e prioriza o que de fato importa: a relação entre as duas personagens. E aqui cabe registrar a excelente performance das duas atrizes. Na pele de Simone de Beauvoir, Marisa Orth consegue materializar na cena as principais características de uma personalidade brilhante, mas ao mesmo tempo atormentada por questões inerentes a qualquer mulher "normal". A mesma eficiência se faz presente na atuação de Paula Weinfeld, cabendo destacar sobretudo o humor que consegue extrair de sua deliciosa personagem.

Com relação à equipe técnica, Isay Weinfeld assina uma cenografia que atende a todas as necessidades da montagem, sendo corretos os figurinos de Cássio Brasil e muito expressiva a iluminação de Guilherme Bonfanti. Também responsável pela trilha sonora, o diretor José Rubens Siqueira foi particularmente feliz, pois em alguns momentos da montagem ouvimos, dentre outras obras de Bach, a "Invenção nº 2, a Três Vozes", em dó menor. É claro que não posso garantir o que se segue, mas em minha imaginação tal escolha também se deveu, além da evidente beleza da música, ao fato de que Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre quase nunca viveram a "duas vozes", existindo frequentemente uma terceira...

O INFERNO SOU EU - Texto de Juliana Rosenthal K. Direção de José Rubens Siqueira. Com Marisa Orth e Paula Weinfeld. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.

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