Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XIX
- Monsenhor, estou nessa cidade há mais ou menos um mês. Minha vida aqui tem sido tão atribulada que até agora não pude refletir sobre as coisas extraordinárias que presenciei. Mas sinto que preciso fazê-lo e talvez o senhor possa me ajudar.
- Se estiver ao meu alcance...- e sorriu, com extrema simpatia.
- Há quanto anos o senhor vive aqui?
- Em novembro faria 30 anos...
- Por que "faria"? O senhor pretende ir embora?
- Claro. Não há mais nada a fazer aqui. E mesmo que houvesse eu...
Monsenhor interrompeu bruscamente sua fala. O peso das lembranças o impediu de concluí-la. Era tão grande o seu remorso que sequer imaginava a hipótese de se conceder uma nova chance. Tentei fazer-lhe ver que uma postura tão radical entrava em contradição com sua condição de religioso, já que o próprio Cristo fora o primeiro a declarar que sempre haveria a possibilidade de redenção para os que se arrependessem de suas faltas. Mas monsenhor se manteve impermeável a qualquer argumentação. Em vista disso, preferi não insistir, mesmo porque não iniciara aquela conversa com o objetivo de aliviar sua consciência, mas sim visando esclarecer alguns pontos obscuros.
- Está certo, monsenhor. Numa outra ocasião, voltamos ao assunto. De momento, gostaria de saber o seguinte: por que havia tanta gente armada no enterro de Ambrosina?
- Isso era uma tradição aqui, um costume adotado em ocasiões importantes. Algo meio folclórico, mas que nunca gerara qualquer tipo de problema.
- E qual a sua opinião sobre a violência que se desencadeou quando Ambrosina se meteu na tumba?
- Até hoje não consegui chegar a uma conclusão definitiva sobre isso. O que eu posso dizer é que Ambrosina se tornara uma espécie de grande mãe desta comunidade. Quando retornou à cidade, passados 60 anos, ela a encontrou tão atrasada, tão presa ainda ao passado que se lançou à tarefa de, pode-se dizer, conduzí-la ao presente. Ao constatar, por exemplo, que a única escola daqui mal ensinava as crianças a dominar o alfabeto, mandou vir da capital uma excelente professora, que realizou um trabalho esplêndido. Dos adultos se ocupou ele mesma. Depois de conhecer um a um todos os habitantes e vendo que tudo que lhes interessava era o plantio e o gado, começou a promover palestras, que de início foram algo boicotadas pelo assombro que causavam, mas que aos poucos se tornaram uma verdadeira coqueluche. Abordando todos os assuntos, Ambrosina foi ampliando os horizontes das pessoas, fazendo-as perceber que estavam atrasadas quase um século em relação ao resto do mundo, sendo imperioso recuperar o tempo perdido.
- Desculpe o interrogatório, mas existe ainda um fato que me intriga. Pelo que pude observar, havia pouquíssimas crianças na cidade. Por quê?
Monsenhor demorou algum tempo para responder a essa pergunta. A impressão que tive foi a de que tocara num ponto que muito o incomodava. Primeiro ele levou um certo susto, depois permaneceu absorto fitando a noite, como se fizesse um esforço para organizar as idéias. Por fim, e com a voz carregada de ódio, ele disse:
- A responsável por essa anomalia chama-se Ecúria.
- Como assim, monsenhor?
- Essa desgraçada manifestara, desde a infância, certas tendências que a presença de Ambrosina, enquanto estava na cidade, impediu que assumissem uma dimensão perigosa. Mas quando ela foi embora, Ecúria, que só respeitava e temia a irmã...A propósito: você sabia que elas eram irmãs?
- Sabia, monsenhor. Eu li num dos diários de Ambrosina.
- Pois bem: quando percebeu que ninguém ousava se opor às suas experiências cabalísticas e inclusive a temiam por causa delas, Ecúria foi se tornando cada vez mais atrevida e em pouco tempo dominou a cidade. O sentimento religioso, que é uma coisa mais ou menos inata em todas as pessoas, foi substituído pela crença nas bruxarias e poderes sobrenaturais dessa pérfida criatura. A natureza, ou o demônio, não estou bem certo, a dotou de uma voz espantosa, assim como da capacidfade de falar de boca fechada. Acrescente-se a isso os seus cabelos verdes e você bem pode avaliar o efeito que ela causava nessa gente simples. Da mesma forma que a irmã, ao retornar à cidade, Ecúria também promovia encontros, só que para solidificar seu poder e difundir idéias nefastas. E uma delas foi a de exortar a comunidade a se abster de procriar, sob a alegação de que o final dos tempos estava próximo e as crianças nem chegariam à adolescência. Algumas pessoas se rebelaram e abandonaram a cidade. Outras tiveram filhos às escondidas. Mas a maioria acatou as ordens de Ecúria. Ao chegar aqui essa mulher já mandava na comunidade há mais de 30 anos. Minha tarefa teve que se limitar quase que exclusivamente a combater esse domínio.
- E o senhor obteve bons resultados?
- Acabei obtendo, mas de forma lenta e gradativa. Eu ia de casa em casa, mas não me deixavam entrar. Então, diante de cada porta, eu recitava aos berros um trecho do Evangelho e seguia adiante. E isso dia após dia. Quando retornava à noite para a igreja, que inclusive reformei sozinho, a garganta me doía tanto que minhas orações tinham que ser feitas em silêncio. Mas quanto mais a tarefa me parecia inexeqüível, mais forças encontrava para continuar tentando. Nas reuniões públicas, realizadas diante da casa de Ecúria, eu surgia brandindo a Bíblia como se ela fosse uma espada e não poucas vezes fui escorraçado de modo violento pelos mais fanáticos. Mas como retornava no encontro seguinte, eles acabaram me aceitando e ao tumulto que minha presença causava. Estabelecia-se, invariavelmente, um furioso embate entre mim e a bruxa, ao qual a comunidade assistia com assombro e que terminava quando Ecúria, à falta de argumentos, passava a ameaçar todas as pessoas que porventura me dessem ouvidos, vaticinando as piores desgraças. Nesse ponto as pessoas se dispersavam, cada uma procurando atingir a própria casa o mais rápido possível. Numa noite, ao perceber que a comunidade relutava em abandonar o local, convencí-me de que era chegada a hora de mudar de tática. A partir daí, sempre que ela convocava uma reunião, eu fazia o mesmo, anunciando por toda a cidade que na mesma hora, diante da igreja, eu falaria sobre Cristo, o futuro, a esperança. Minha platéia, de início, era bem menos numerosa, mas aos poucos a coisa começou a se equilibrar, para desespero de Ecúria, que resolveu colocar feitiços na porta da igreja para me intimidar. Mas nada poderia me deter, pois eu sentia que o Senhor estava comigo. Quando se tornou patente que a maioria da população já havia decidido me seguir e não à feiticeira, aconteceu um fato estranhíssimo.
Nesse momento, monsenhor deu uma pausa tão longa que tive a impressão de que desistira de me contar o tal fato estranhíssimo. Mas felizmente prosseguiu.
- Numa mesma manhã, apareceram mortas sete pessoas!
- Sete pessoas, monsenhor? - exclamei, abismado.
- Exatamente. E todas pertencentes ao grupo que rejeitara as idéias da hedionda.
- Mas como se explica que...
- Não havia uma explicação plausível para tão macabra coincidência! - bradou o prelado, interrompendo-me. - Por isso o pânico se instalou na cidade, do qual Ecúria se aproveitou o mais que pôde, afirmando que desgraças como essa se tornariam corriqueiras se todos não voltassem a lhe prestar a antiga e cega obediência. Aterrorizadas, as pessoas me acossavam exigindo que eu elucidasse o mistério, mas eu não conseguia estabelecer um plano de ação eficaz. Intuía que algo fora do normal havia causado aquelas mortes, mas o pandemônio era tamanho que não conseguuia imaginar o que poderia ter sido. As pessoas me agarravam, imploravam e seu desespero aumentava na mesma proporção em que eu me revelava impotente para contê-lo. Até que todos me deixaram sozinho e se reuniram em torno da velha Ecúria, que sem perda de tempo anunciou que eu deveria embarcar no próximo trem, que passaria dali a dois dias, para nunca mais voltar.
- Ele teve a ousadia de pretender expulsá-lo da cidade? - perguntei, indignado, como se a absurda proposta tivesse sido feita a mim.
- Naquele momento ela se sentiu segura o bastante para fazer isso.
- E ninguém se opôs?
- Ninguém ousou se manifestar, embora eu estivesse certo de que muitos não concordavam com essa decisão. Mas é curioso: ao ouvir a sentença e em meio àquele silêncio sepulcral, ao invés de me sentir arrasado percebi que se apossara de mim uma grande sensação de paz. A princípio não consegui detectar a origem dessa inesperada calma, mas aos poucos fui me dando conta de que ela nada mais era do que uma demonstração de que o Senhor não me abandonara, que Ele me ajudaria a encontrar uma maneira de permanecer na cidade lutando contra as forças obscuras que tentavam dominá-la. Aproximando-me então da multidão, que se comprimiu ainda mais em torno de Ecúria, declarei que do momento em que ninguém se opunha à minha expulsão, nada mais me restava a fazer naquela cidade. E que iria embora, sem dúvida, no próximo trem. Mas antes fazia questão absoluta de abençoar os mortos.
A partir desse ponto, como se fosse experiente ator capaz de interpretar ao mesmo tempo dois papéis, monsenhor encarnou a si mesmo e à velha Ecúria, materializando à minha frente o diálogo que travaram. Tão impressioonado fiquei com esssa inesperada habilidade que passo a reproduzir a memorável batalha verbal como se monsenhor e a hedionda fossem personagens de um texto teatral. E os comentários feitos por ele e a mim dirigidos virão em itálico, a fim de evitar qualquer dificuldade de apreensão.
Ecúria - Eles não necessitam da tua bênção!
Monsenhor - Só deixarei de cumprir minhas obrigações de religioso se for impedido pelos parentes. A tua opinião não me diz nada.
Ecúria - Como ousas falar assim, gerador de desgraças?
Sentindo-se dona da situação, Ecúria abriu caminho por entre a multidão e veio se colocar a um metro de onde eu estava.
Monsenhor - O tempo haverá de demonstrar quem sempre foi, é e continuará sendo o gerador de desgraças nesta cidade!
Minhas palavras atingiram fisicamente a multidão, que de estática passou a se agitar.
Em poucos segundos, algumas vozes se fizeram ouvir e quando Ecúria resolveu se virar para ver o que estava acontecendo, a balbúrdia se tornou ensurdecedora. Temendo perder o controle da situação, Ecúria, depois de fazer calar a multidão com um rosnar de fera mitológica, fez a seguinte proposta:
Ecúria - Pois que seja. Se os parentes estiverem de acordo, te será permitido pronunciar junto aos mortos tuas inúteis palavras. Mas depois te enfurnarás na igreja e dela só sairás para embarcar!
Monsenhor - Enquanto estiver nesta cidade disponho do meu tempo como bem entender.
A massa assistia, fascinada, ao nosso duelo, talvez até mesmo sem entender como é que eu conseguia me manter calmo numa situação tão desfavorável. A velha Ecúria, também desnorteada com a minha segurança, virou-se para a multidão e uivou:
Ecúria - E então? O que resolvem?
Aqui se encerra a narrativa teatral, com evidentes conotações brechtianas, e monsenhor Flávio deixou de se relacionar comigo como se eu fosse sua platéia.
- Era chegado o momento decisivo. Mas meu coração mantinha-se sereno. Por isso não me surpreendi quando os parentes dos mortos se destacaram da multidão. O rosto da velha Ecúria deformou-se de forma impressionante, tamanha a carga de ódio que sentia. Mas aí já não havia mais jeito: eu teria acesso aos cadáveres e nisso residia minha única e última esperança!
Como um sentinela, monsenhor Flávio começou a caminhar pela varanda, de um lado para o outro. Devido à pouca luz reinante, sua pessoa se confundia com as trevas e o rumor de seus passos assumia uma dimensão terrorífica - cumpre ressaltar que esse detalhe sonoplástico só fez aumentar meu interesse pela história momentaneamente interrompida.
- Evidentemente...- prosseguiu monsenhor, imobilizando-se - eu não tinha ainda uma idéia muito clara do que pudesse ter acontecido. Apenas um vago pressentimento. No entanto, uma coisa me parecia óbvia: numa cidade tão pequena era impossível que sete pessoas aparecessem mortas na mesma manhã. Portanto, a hipótese de uma trágica coincidência estava descartada. Deveria haver algo por trás daquelas mortes, algo que...
- Desculpe interrompê-lo, monsenhor, mas o senhor disse que a única esperança de elucidar o caso residia na possibilidade de o senhor examinar os cadáveres. Por quê?
- Porque a morte sempre deixa marcas, Gabriel!? O aspecto de um homem que morre de infarto é completamente diferente do de um outro que morre de edema pulmonar, compreende?
- Compreendo! - respondi, embora não entendesse nada do assunto.
- Logo, se todos aqueles corpos apresentassem sinais comuns e tendo sido a palavra "coincidência" banida do meu vocabulário, isso significaria que as mortes não haviam sido acidentais, mas provocadas!
- Um crime! - bradei, fazendo alarde de extraordinária perspicácia.
- Sim, um crime! - emendou monsenhor. - Ou melhor, sete...
Agora invertia-se o processo e era eu quem caminhava de um lado para o outro tentando organizar as idéias, como se disso dependesse a elucidação do caso. A narrativa de monsenhor tomara um rumo tão imprevisto que eu, sem o perceber, passei a me comportar não como receptor dela, mas como seu agente. É claro que essa curiosa inversão de perspectiva só durou um breve instante, findo o qual implorei a monsenhor que desse prosseguimento à sua história. Mas como ele, ao atender-me, voltou a caminhar, de vez em quando nos dávamos tremendos esbarrões, até que descobrimos que a única solução seria andarmos em círculo e no mesmo sentido. Resolvido o impasse, passei a perseguir a sombra de monsenhor sem maiores problemas até quase o fim de seu espantoso relato.
- O exame do primeiro cadáver já me deixou vivamente impressionado. O homem, um senhor de meia-idade, tinha os olhos esbugalhados, a boca aberta e seus lábios estavam roxos. Além disso exalava um cheiro forte, que nada tinha a ver com a decomposição de seu corpo, visto que morrera há poucas horas. Examinando suas gengivas vi que elas estavam ainda mais arroxeadas que seus lábios, e que de sua boca provinha o acentuado odor que sentira. Para mim foi o bastante. E embora seus familiares quisessem a todo custo obter alguns esclarecimentos, eu me recusei a dá-los; limitei-me a abençoar o corpo e parti para a casa seguinte. Lá chegando, deparei-me com os mesmos sintomas. E assim sucessivamente. Quando, por fim, examinei o último dos sete cadáveres, já não tinha mais qualquer dúvida: todas as pessoas haviam sido envenenadas!
- Envenenadas! - repeti, trêmulo de espanto, como um personagem de sonêto.
- Como não havia tempo a perder ... - prosseguiu o prelado, impondo à narrativa uma cadência aflita - reuni todos os parentes das vítimas e pedi que me acompanhassem até a igreja. Quando lá chegamos, sugeri que se sentassem nos bancos e me dirigi ao púlpito. Mas fui forçado a aguardar pelo menos cinco minutos até as pessoas se acalmarem. Durante o trajeto até a igreja elas haviam trocado informações e a maioria já sabia que todos os seus partentes haviam passado ao outro mundo de boca aberta, olhos esbugalhados e lábios roxos. Como a simultaneidade das mortes já lhes parecera estranha, com o conhecimento desses dados suplementares esse sentimento de estranheza evoluiu para o de total perplexidade. Vendo-me, porém, aparentemente calmo e seguro, acabaram dominando os próprios nervos e se aquietaram para me ouvir. Então, eu lhes disse...- e neste ponto monsenhor Flávio voltou a interpretar sua narrativa, assumindo uma postura cuja gravidade em tudo se assemelhava à de um estadista prestes a comunicar a seu povo a iminência de um grave conflito armado.
Monsenhor - Desde o primeiro momento eu senti que deveria haver algo de estranho por trás de tudo isso. Afinal, numa cidadezinha como a nossa, é impossível que sete pessoas apareçam mortas numa mesma manhã. Quando solicitei que me deixassem abençoar aqueles que se tinham ido, todos se lembram de que Ecúria tentou furiosamente me impedir de fazê-lo. E por que, eu lhes pergunto? O que poderia inquietá-la tanto, desde o momento em que, segundo ela própria afirmou, eu apenas pronunciaria "inúteis palavras?". A resposta, meus amigos, é muito simples. Ecúria não estava preocupada com o que eu diria, mas sim com o que eu veria! Ela sabia que se eu tivesse acesso aos cadáveres poderia descobrir aquilo que de fato lhes causara a morte. E isso não a interessava de modo algum. Seu objetivo era o de fazê-los acreditar, como ela mesma disse, que a mim cabia toda a responsabilidade pela tragédia e que, portanto, sua idéia de me expulsar da cidade era não apenas justa, mas sobretudo necessária. Mas infelizmente para ela vocês não abriram mão de minha bênção e graças a essa atitude corajosa pude desvendar o mistério. O que vou lhe dizer agora é aterrorizante, mas precisa ser dito. Seus parentes não morreram de forma acidental: todos eles foram envenenados!
Ao final deste trecho e por culpa exclusiva de monsenhor Flávio, cuja capacidade de sensibilizar um ouvinte era realmente impressionante, tive de novo um pequeno rasgo de histeria. Quando dei por mim estava com os olhos marejados e fungava intensamente. Assumira o papel de um filho que acabava de ser informado da morte trágica de seu pai, vítima de uma brutal dose de arsênico. E aqui cabe um adendo: não sei porque escolhi logo meu pai, uma figura tão encantadora, para desempenhar a função de morto. Tempos mais tarde, ao refletir sobre isso, cheguei à conclusão de que assim agira porque o amava muito e tinha tanto medo de perdê-lo que, tendo-me sempre resusado a admitir que um dia ele morreria, aproveitara a narrativa de monsenhor Flávio para vivenciar, no plano da fantasia, a perda desse homem tão fundamental em minha vida. Quando um dia me reencontrei com meu pai e lhe contei esse fato, esperando iniciar um diálogo de altíssimo nível sobre o amor, a morte, as relações entre pais e filhos etc., tudo que ele conseguiu me dizer foi o seguinte: "É incrível...depois de tudo que eu fiz por você...".
Monsenhor Flávio, ao perceber minhas fungadas, resolveu dar uma pausa em sua narrativa, até que meu estado geral o autorisasse a prossegui-la. Naturalmente que ele jamais poderia supor que minha cabeça estivesse a milhares de quilômetros dali e que meu pranto nada tivesse a ver com seus mortos. Em todo caso, ele teve uma atitude gentil, guardando silêncio. Quando consegui dominar minha coriza, monsenhor prosseguiu com seu intrigante relato, mas agora não mais "representando".
- A partir do momento em que decidira não ocultar a terrível verdade aos parentes das vítimas, sempre esteve claro para mim que poderiam surgir as mais diversas reações, já que nunca se sabe com certeza como alguém receberá uma novidade dessa natureza. Mas a atitude daquela platéia me desarmou totalmente: nada disseram, nenhum gesto esboçaram, como se minha revelação tivesse interrompido o fluxo de suas vidas. Pareciam bonecos, feitos de cera e encharcados de morte. Passaram-se uns dez minutos e a situação permanecia inalterada. A essa altura eu já havia abandonado o púlpito e andava de um lado para o outro sem saber o que fazer. E embora muitas vezes tenha me aproximado de alguém com a intenção de lhe dizer alguma coisa ou simplesmente de sacudir a pessoa, acabava me afastando sem realizar nem uma coisa nem outra, por temor de que qualquer iniciativa direta pudesse piorar tudo. Quando cheguei à conclusão de que não conseguiria realizar nada de prático e a situação ameaçava se perpetuar, me ajoelhei diante do altar e implorei ao Senhor que não me abandonasse num momento em que eu era de suma importância para tantas vidas. Oferecí-lhe, inclusive, a minha, se isso pudesse salvar aquelas pessoas e a cidade. Em seguida, comecei a rezar. Foi então que o Senhor demonstrou mais uma vez que continuava ao meu lado. Nem bem atingira a metade do "Pai Nosso" e já o primeiro pranto se fez ouvir. Ao concluir a reza, as 40 pessoas que lá estavam haviam de novo se humanizado e por todos os cantos se ouviam lamentos, maldições, promessas de vingança, enfim, a vida! Agradecido, beijei o altar e fui cumprir meu papel. Já não havia mais ninguém nos bancos. Uma mulher, que perdera o marido, sacudia com tanta força o confessionário que parecia empenhada em destruí-lo, enquanto seu filho pequeno, agarrado à sua saia, gritava aterrorizado. Um rapaz de 17 anos, cujo pai Ecúria vitimara, arrancara o manto que cobria a imagem de São José, o rasgara ao meio e improvisava uma espécie de corda, cujo destino era o pescoço da bruxa. Já um senhor de uns 60 anos fazia a apologia da fogueira, que deveria arder, segundo suas palavras, ainda naquela noite. A maioria, no entanto, não arquitetava vinganças, apenas extravasava seu desespero.
- Deve ter sido muito difícil para o senhor conseguir acalmar os ânimos...-apartei, desnecessariamente.
- Sim, mas era imprescindível fazê-lo. Em primeiro lugar para evitar que os mais exaltados levassem a cabo seus planos homicidas. E depois para traçar uma estratégia que nos permitisse desmascarar aquela que urdira a abominável trama. Felizmente, após inúmeras tentativas, consegui serenar um pouco os ânimos e então expus o plano que me veio à cabeça enquanto durava a balbúrdia. Todos deixariam a igreja o mais calmamente possível e iriam direto para suas casas. Lá chegando, velariam seus mortos e só no dia seguinte, quando toda a população estivesse reunida no cemitério, seria anunciado o resultado de minha investigação. A princípio muitos estranharam o local e a hora escolhidos, mas acabaram se curvando ante a argumentação de que uma acusação como a que iria fazer teria muito mais impacto se proferida na presença dos mortos, de seus parentes e no momento do derradeiro adeus. É claro que eu compreendia o sentimento deles, a vontade que tinham de se despedir daqueles que amavam sem o clima tenebroso que se instalaria no cemitério. Mas estava em jogo a sobrevivência espiritual de toda uma comunidade. Portanto, o seu sacrifício era imprescindível. E assim foi feito. No dia seguinte, às dez da manhã, horário marcado para a saída do cortejo fúnebre, toda a população já estava nas ruas. Embora as pessoas procurassem aparentar uma certa calma, seu nervosismo era evidente. Com exceção de umas poucas que conversavam em voz baixa, a maioria se mantinha silenciosa, observando atentamente as casas de onde saíam os mortos. Reparei isso porque passei em cada uma delas para ver como estavam os parentes das vítimas. Ao perceberem que eu me aproximava, as pessoas abriam caminho, evitando me encarar de frente e só tornavam a se agrupar quando eu partia. Tratavam-me como se eu fosse portador de uma doença contagiosa. Mas eu os conhecia o suficiente para saber que essa rejeição não era autêntica, fora antes determinada pelo medo, pela ignorãncia, pela morte. Se eu conseguisse demonstrar o que de fato motivara o aparecimento dos sete cadáveres, todos voltariam a se relacionar comigo. Às onze em ponto o féretro chegou ao cemitério. Os mortos foram colocados ao lado de suas sepulturas, situadas bem próximas umas das outras e a multidão ocupou todos os espaços. Desejando ser visto e ouvido por todos - o que seria impossívbel devido à minha baixa estatura - pedi a um dos parentes das vítimas, o tal jovem de 17 anos que pretendia enforcar Ecúria com o manto de São José, que me erguesse nos ombros. Uma vez instalado, dei início ao meu discurso.
Nesse momento, monsenhor Flávio parou de caminhar. Apoiando-se à grade de madeira, fixou a noite, imóvel e concentrado, como se reunisse forças para concluir sua dramática narrativa, que reproduzirei de forma abreviada, abolindo os pequenos detalhes para que o essencial possa ser apreendido com clareza. O prelado cumpriu à risca o que prometera a si mesmo. Primeiro, demonstrou que todas as pessoas haviam morrido devido à ação da mesma e poderosa substância; em seguida, revelou que esta nada mais era do que um conhecido veneno; e finalmente acusou Ecúria de ser a responsável pelos múltiplos assassinatos. Ao ouvir a espantosa novidade, amultidão horrorizada ameaçou se dispersar, mas monsenhor conseguiu retê-la ao desafiar Ecúria a demonstrar que ele se enganara.
A primeira resposta da megera, se proferida num tribunal, já seria suficiente para dar consistência às acusações, pois de imediato alegou que o fato de ter visitado as sete vítimas na véspera não significava necessariamente que as tivesse envenenado. Monsenhor, que desconhecia até então esse detalhe, dele se aproveitou como um grande promotor, fazendo a velha Ecúria cair várias vezes em contradição, sobretudo quando ela insistiu em justificar sua presença na casa de pessoas que haviam repudiado publicamente suas idéias.
Quanto à platéia, composta de gente muito simples e pouco afeita a discussões cheias de duplo sentido, monsenhor me deu a entender que ela acompanhava o debate sem no fundo compreendê-lo. E se ainda permanecia no cemitério, era mais por causa dos mortos, que ainda não haviam baixado à sepultura. Finalmente, por volta do meio-dia, desabou uma chuva torrencial e um dos parentes sugeriu a monsenhor que abençoasse os mortos para que eles pudessem ser enterrados. Embora o impasse ainda persistisse, monsenhor teve que se conformar e cumpriu com sua obrigações. Em seguida, todos voltaram para suas casas.
No dia seguinte, quando já se dispunha a retomar o debate, monsenhor foi informado de que Ecúria caíra gravemente enferma e que portanto não poderia continuar rebatendo as acusações que lhe eram dirigidas. Julgando tratar-se de um ardil, monsenhor foi até a casa da megera e a encontrou inconsciente, estendida em seu leito, com o aspecto de quem agonizava. Não podendo, naturalmente, negar assistência a quem dela parecia necessitar, solicitou que algumas pessoas permanecessem à cabeceira da bruxa e no dia seguinte mandou pelo trem um pedido de socorro. Um mês depois, quando um rfenomado médico da capital a examinou, Ecúria continuava no mesmo estado. Incapaz de diagnosticar a moléstia, o doutor prescreveu uma meia dúzia de medicamentos, que por sinal já trazia consigo, e foi embora no mesmo trem que o trouxera.
Por uma questão de decência, monsenhor se absteve, durante a doença de Ecúria, de tentar influenciar as pessoas, visto que sua antagonista se encontrava impossibilitada de se defender. Essa atitude, no entanto, acabou se revelando nefasta, pois a bruxa só recobrou a consciência um ano depois, alegando não se recordar em absoluto dos fatos que monsenhor tornou a trazer à tona. Como o tempo já havia cicatrizado a dor e a revolta dos parentes, o caso acabou caindo no esquecimento, e pouco a pouco a feiticeira recomeçou a atormentar a vida da comunidade. Mas jamais readquiriu sobre ela a antiga ascendência.
Monsenhor Flávio terminou seu longo relato por volta das 22h. A noite estava belíssima, mas fazia um certo frio. Propus então que nos banhássemos e trocássemos de roupa, já que além de imundos nos arriscávamos a pegar uma penumonia. Em seguida, jantaríamos. Monsenhor concordou e me pediu de novo emprestado o meu pijama, pois teria que lavar sua batina. Quando nos sentamos para comer, tornei a me lembrar das premonições que ambos havíamos tido pela manhã. Como a minha não se cumprira, pois não sofrera 24h sem parar, conceitrei-me na dele, que previra para mim um momento de grande felicidade naquele dia. Meu relógio marcava exatamente 23h, ou seja, a premonição de monsenhor ainda tinha um crédito de 60 minutos.
Naturalmente que eu não acreditava mais que ela pudesse se cumprir, mas às onze e meia meu coração começou a bater num ritmo descompassado. Não estando nervoso e tampouco tenso, a inesperada arritmia me deixou bastante assustado. Cheguei a levantar a hipótese de estar reagindo com retardo à narrativa de monsenhor, mas renunciei a essa idéia tão logo percebi que não passava de um recurso que fabricava para me tranquilizar. Mas o que seria, então?
Durante os 15 minutos que se seguiram fiz de tudo que estava ao meu alcance não para descobrir as causas da formidável arritmia, mas para sofreá-la. Respirei fundo, bebi dois copos de vinho, caminhei pela sala assoviando, mas foi tudo em vão. Meu coração, como um presidiário ensandecido, se atirava de encontro às minhas costelas como se de meu peito procurasse se evadir. À meia-noite em poonto, não suportando mais a terrível sensação e certo de que morreria em poucos minutos, fui para a varanda contemplar a lua pela última vez. Mas meus olhos, que pretendiam o céu, fixaram-se na terra: um grande cavalo branco, montado por um vulto que se confundia com a noite, aproximava-se da porteira da granja!
Assim que o vi, parti ao seu encontro, certo de que era a Morte que chegava para me levar. No entanto, quando a distância que nos separava se reduziu a poucos metros, percebi que, ao contrário do que imaginara, era a Vida que se aproximava!
Irmã Geovana cumpria sua promessa.
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terça-feira, 26 de outubro de 2010
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Olá professor! Faço alguns textos e posto em meu blog. Aproveito a ocasião para lhe convidar a ler “Para o final a contemplação” no meu http://jefhcardoso.blogspot.com
ResponderExcluirSerá um prazer lhe receber.
“Para o legítimo sonhador não há sonho frustrado, mas sim sonho em curso” (Jefhcardoso)