Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XVI
- Primeiramente -, iniciou o prelado, com voz trêmula - gostaria de pedir perdão. A forma como o espreitei enquanto dormia e me conduzi tão logo entrei são sem dúvida condenáveis. Mas espero que o senhor saiba dar o devido desconto a um homem completamente desesperado!
Isto dizendo, contraiu os pequeninos olhos e as suarentas mãos. Transpirava abundantemente e exalava um cheiro de cachorro molhado. É claro que o perdoaria, mas antes que pudesse fazê-lo, ele prosseguiu:
- Mas isso não é tudo. Devo me desculpar ainda por outras atitudes bem mais graves, assim como por certos julgamentos apressados. Peço humildemente que me conceda a chance de me redimir.
Sendo um apaixonado pela redenção, autorizei-o a prosseguir com um grave movimento de cabeça.
- A história é um pouco longa, mas procurarei ser o mais sucinto possível. Ela começa no enterro de Ambrosina, ao qual compareci em trajes civis e usando uma peruca. Tomei essa decisão porque, enquanto monsenhor, não poderia participar do funeral de uma suicida que, ainda por cima, se encarregaria do próprio necrológio. Disse isso a ela na véspera daquele funeral fatídico, na esperança de demovê-la dessa extravagância. Mas como Ambrosina se manteve irredutível, afirmei que não compareceria ao enterro, ao que ela me respondeu que se não quisesse ir ao cemitério poderia ir à merda. Desculpe o termo, mas foi assim que ela se expressou. É óbvio que acabei indo, pois a amava profundamente. Foi lá que o vi pela primeira vez, trepado naquela árvore. E a minha antipatia foi imediata. Achei um desrespeito o senhor assistir ao funeral dependurado num galho, como um macaco, ao invés de assumir uma postura mais respeitosa. Estava mesmo decidido a lhe chamaar a atenção assim que o enterro terminasse, mas é claro que não pude fazê-lo.
- Mas agora pode...- atalhei, simpático, disposto a ouvir a tardia reprimenda.
- Agora isso não tem importância. Mesmo porque minha opinião já não é a mesma. O que interpretei como desrespeito talvez fosse um grande interesse, não é verdade?
Fiz que sim. Ele sorriu. Depois, permaneceu um tempo em silêncio, as sobrancelhas unidas, como se hesitasse. Estava tenso e não procurava ocultá-lo. Finalmente, prosseguiu:
- Quando começou a matança, senti a maior sensação de impotência de toda a minha vida. Ainda tentei serenar os ânimos, mas travestido como estava minhas palavras não conseguiam influenciar ninguém. Então, temendo levar uma facada ou um tiro, fugi dali. Só interrompi minha correria quando cheguei na igreja. Diante do altar e de joelhos, implorei a Deus que interrompesse a carnificina, que iluminasse os espíritos enlouquecidos e evitasse a autoimolação de toda uma comunidade. E também roguei para que Ele me perdoasse a abominável covardia. E teria ainda implorado um mundo de coisas se...
E neste ponto ele irrompeu em lágrimas, acompanhadas de pequenos espasmos corporais, em tudo semelhantes aos de um heroína de cinema mudo. Quando conseguiu recompor-se, continuou:
- Quando tornei a me erguer, não tive mais coragem de olhar o altar. Estava liquidado, como homem e religioso. Mas ainda nutria a esperança de haver sobreviventes e voltei ao cemitério. No entanto, ao me deparar com aquela cena dantesca, o desespero tomou conta de mim, definitivamente. Tendo me revelado incapoaz de evitar a morte de tantas pessoas, resolvi acabar com a vida. Contornei então o monte de cadáveres e me dirigi para a árvore de onde o senhor assistiu ao funeral, disposto a nela me enforcar. Entretanto, o senhor ainda estava lá!? Mas, fazendo o quê?, pensei, abismado. Ah, meu jovem amigo...nunca odiei alguém tão profundamente. Eu não queria que você testemunhasse meu derradeiro gesto, mas ao mesmo tempo não sabia como lhe dizer que sumisse dali. A solução foi aguardar. Mas o tempo passava e nada acontecia. Então...minha vontade de morrer foi se enfraquecendo. É vergonhoso, eu admito. Mas esteja certo de que procurei reagir com todas as minhas forças à idéia de preservar a própria vida!
- Não duvido...- atalhei, pensando em acalmá-lo. Mas ele prosseguiu como se nada tivesse escutado.
- Mas a cada minuto ela se solidificava, assim como o ódio pelo senhor, a quem injustamente atribuía o fracasso de minha "inabalável" decisão. À meia-noite, convencido de que não teria mesmo coragem de me suicidar, resolvi matá-lo. Mas nesse exato instante o senhor começou a se agitar nos galhos, como se tivesse adivinhado minhas intenções e pretendesse fazer o mesmo comigo. Apavorado, larguei o galho que já empunhava e como um verme obsceno rastejei por entre os cadáveres até deixar o cemitério. Quando cheguei na igreja, peguei um velho chicote, me ajoelhei diante do Altíssimo e me bati até cair desfalecido. Ainda conservo as marcas do suplício, tenha a bondade de constatar...
Monsenhor desabotoou a batina e expôs sua nudez magrela e toda lanhada. O homenzinho realmente não mentira, tampouco exagerara: seu peito e costas estavam repletas de manchas escuras, algumas levemente azuladas, que comprovavam a violência com que se autoflagelara. E embora me esforçasse para camuflar minhas emoções diante daquele festival de chagas, não pude conter uma expressão de nojo, pois muitas feridas pareciam ter infeccionado e tinham a recobrí-las uma substância purulenta, que lembrava uma escarrada. Ao perceber que a visão de seu martírio me incomodava, monsenhor Flávio teve a bondade de novamente ocultá-lo, tendo recusado meu oferecimentro de lhe passar Merthiolate nos ferimentos. Em seguida, prosseguiu:
- No dia seguinte resolvi procurá-lo, pensando em pedir desculpas por minhas intenções sinistras. Tomei de novo o caminho do cemitério, mas o vi adormecido num banco, tendo a espreitá-lo este mesmo bode que se refresca na cozinha. Postei-me então a uma certa distância e esperei. Quando o senhor despertou, ao invés de me aproximar, passei a seguí-lo pelas ruas, incapaz de entender por que o fazia. E acabei assistindo a tudo: ao seu desespero, ao assalto à confeitaria, aos seus vômitos, ao seu desmaio. Testemunhei também sua posterior euforia e sua ida para o convento. E então fui de novo acometido de incontrolável desespero. Sabia que o senhor tomava a única atitude que lhe cabia, ou seja, ir até o convento comunicar a tragédia. Mas por que não o fazia eu mesmo? Eu, que morara grande parte de minha vida na cidade, que amava seus habitantes!? Por que permitia que um forasteiro executasse com tanta abnegação uma tarefa que a mim cabia?
- É possível que a culpa suplantasse sua noção do dever - ...arrisquei, timidamente, visando acalmar a agitada criatura. Entretanto, minhas palavras provocaram o efeito inverso. Monsenhor começou a tremer. E como mantinha os braços abertos, a impressão que eu tinha era a de estar diante de uma roupa que o vento agitava no varal. Temendo pelo pior, levantei e caminhei em sua direção (esqueci de dizer que a esta altura monsenhor já estava de pé), sem saber ao certo por que o fazia, já que não pretendia segurá-lo e muito menos obrigá-lo a retornar para o sofá. Mas ele me deu as costas e saiu caminhando pela sala numa velocidade impressionante, se levarmos em conta o desnível de suas pernas. Ao mesmo tempo, murmurava a palavra "culpa" nas mais variadas inflexões. Às vezes parecia empenhado em decifrar-lhe o significado; às vezes a tratava como velha conhecida. Consciente de que nada poderia fazer de útil, voltei a me sentar, disposto a aguardar pacientemente que ele parasse de rodopiar pela sala com um peru bêbado.
Não sei se o amigo leitor me dará crédito, mas monsenhor Flávio girou em torno de mim 43 minutos, 20 segundos e alguns décimos, fazendo alarde de grande resistência e formidável capacidade de equilíbrio. Quando por fim tornou a se acomodar no sofá, cravou em mim seus ridículos olhinhos. Era visível que toda a sua exaltação cedera lugar a uma profunda tristeza, sentimento um tanto delicado porque tanto pode regredir, convertendo-se em melancolia, quanto evoluir, virando depressão. Incapaz de levantar-lhe o astral com palavras reconfortantes, achei que a única saída seria fazê-lo prosseguuir com sua história, pois enquanto estivesse despejando palavras não teria tempo de sofrer. Assumindo um ar de quem estava interessadíssimo na evolução da interrompida narrativa, lhe disse:
- E então, monsenhor? Desculpe, mas estou muito curioso para saber o que aconteceu depois que fui para o convento.
Minhas palavras, se não chegaram a agradá-lo, ao menos adiaram o processo catatônico em que ele ameaçava mergulhar. E monsenhor Flávio prosseguiu:
- Passei um mês atroz. Já outras vezes me sentira perdido em meio aos homens, mas minha fé em Deus e a certeza de que Ele me outorgara uma missão sempre me ajudaram a superar os momentos mais difíceis. Quando, porém, não me revelei capaz de impedir a consumação da tragéia, conclui que Deus havia depositado sua confiança no homem errado. E então, não O procurei mais, certo de haver ultrapassado os limites de sua infinita misericórdia e tolerância. Sem mais ninguém à minha volta, minha solidão se tornou absoluta. Vagava dia e noite pela cidade, murmurando frases desconexas, comandado muito mais pelas pernas do que pela razão. Voltei a vê-lo em duas ocasiões. A primeira quando o senhor, acompanhado das seis irmãs, foi até o cemitério e expulsou os abutres. A segunda, quando resgatou os escritos de Ambrosina. Ouvi, inclusive, o diálogo que travou com Ecúria e as professias dela. E aqui aproveito, mais uma vez, para pedir desculpas. Eu passara a nutrir pelo senhor um sentimento de inveja inimaginável, porque o senhor conseguia agir, enquanto eu me afundava cada vez mais na inércia. Assim, quando escutei os vaticínios da louca, fiquei radiante com a possibilidade de o senhor vir a falecer na mesma cidade em que assistira à morte de todos os seus habitantes. Foi um pensamento abominável, que só poderia ter sido formulado por alguém a quem Deus houvesse efetivamente abandonado. Ou melhor, por alguém que houvesse abandonado a Deus. Depois só o vi ontem, mas aí meus sentimentos já se haviam alterado. Por isso resolvi procurá-lo.
Nesse momento, pressenti que monsenhor estava em vias de pular um bom pedaço de sua história. Como eu estava ávido por conhecê-la em todos os seus pormenores, não me fiz de rogado e pedi que respeitasse a cronologia da instigante narrativa. Ele então contou que, depois de uns poucos dias, suas reservas alimentícias se esgotaram e após ter permanecido quase uma semana sem comer, não resistiu e como eu também assaltou o botequim de vidro. Não contente, carregou para a igreja a maior quantidade possível de alimentos que ainda não haviam se deteriorado, e graças a isso conseguiu se aguentar por mais alguns dias. Estando, no entanto, seriamente abalado do ponto de vista psicológico, passou a comer de maneira desenfreada, esquecendo-se de que, se por um lado conseguia compensar algumas carências, por outro acelerava o processo de retorno à situação antiga.
Quando a fonte secou, seu limiar de resistência à fome havia baixado muito. Ainda assim, tentou ao máximo dominar seus impulsos degustativos, mas 48 horas após ter feito a última refeição, eles se tornaram tão frenéticos que o prelado não teve outra alternativa a não ser sair pela cidade arrombando portas e violando dispensas, como uma formiga desvairada. E quanto mais resistência se lhe opunha uma porta, maior sua voracidade ao atingir a cozinha. Até que um dia sua consciência falou mais alto e monsenhor interrompeu suas atividades de rapina. Faltavam poucas horas para a chegada do trem. Foi até a estação e se deitou nos trilhos, disposto a neles fazer sua última digestão. De repente nos ouviu, a mim e a irmã Vôncia. Então se levantou, muito assustado, e pessou a nos vigiar.
Este incidente, segundo pude deduzir, lhe tirou a concentração e adiou seus propósitos suicidas. Quando o trem partiu e irmã Vôncia desapareceu, sentiu-se mais do que nunca uma criatura fracassada, um covarde que nem ao menos conseguira se atirar diante de um trem, atitude que até heroínas de romance haviam tomado com êxito. Convencido de que não conseguiria aguardar até a chegada do próximo trem, embrenhou-se no campo na esperança de ser picado mortalmente por uma aranha. Enfiou suas mãos nas moitas, rolou nos lugares que supunha habitados pelo pavoroso aracnídeo, mas foi tudo em vão. As caranguejeiras, que pululavam na região, pareciam temê-lo bem mais do que o Diabo à cruz.
Num dado momento, escuta um rumor de passos. Como um vietcong, se esgueira pelo capinzal, procurando a origem de tal ruído. Depois de alguns instantes de tensa expectativa, monsenhor, incrédulo, me vê passar todo esfolado. Algo então lhe diz que seu destino está irremediavelmente ligado ao meu e que só através de minha pessoa conseguirá retornar ao seu estado normal. Enquanto me segue, recapitula todos os dados que possui a meu respeito, chegando à curiosa conclusão de que o fato de eu ter escapado à chacina no cemitério não era obra do acaso, mas sim da vontade de Deus, que me enviara àquele lugar para purgá-lo de seus pecados e submetê-lo - a ele, monsenhor - a uma dura prova. Segue-me até a granja, espreita todos os meus movimentos, se assuta com meu pânico e passa a noite no mato remoendo seu delírio, como uma coruja desajustada. No dia seguinte, se aproxima da porteira. Eu acordo. Ele pensa em fugir. Eu me aproximo.
O raciocínio acerca dos meus poderes ele o fez tranquilamente e embora o julgasse insano, ao mesmo tempo parecia acreditar nele tanto quanto na existêcnia de Deus. Monsenhor Flávio, evidentemente, depois de passar por tantas provações, estava meio desequilibrado. E eu queria ajudá-lo, mas não sabia exatamente o que fazer. Qualquer atitude que tomasse geraria conseqüências, que tanto poderiam ser boas quanto más. E eu não queria me responsabilizar por nada que pudesse acontecer. Não era analista e não estava preparado para orientar uma pessoa cuja alma parecia ter-se partido ao meio. Mas também sentia que não podia adotar uma postura neutra, pois isso equivaleria a compactuar com a ruína definitiva daquele homem. Procurando ganhar tempo, perguntei-lhe se não estava com fomne, pergunta totalmente cretina em face do que acabara de escutar, mas que mereceu de monsenhor uma resposta afirmativa.
- Tem alguma preferência, monsenhor? - acrescentei, como se pudesse oferecer um vasto cardápio.
- Um pedaço de pão já seria bem vindo...- retrucou o prelado e num gesto involuntário levou a mão direita ao ventre, comprimindo-o.
- Creio que posso lhe oferecer bem mais que isso - respondi, levantando. - Aguarde um minuto, por favor.
E parti para a cozinha com a incômoda sensação de ter sido extremamente leviano, já que prometera uma coisa que talvez não pudesse cumprir. Bastaria ter dito que repartiria de bom grado tudo que houvesse. Mas não: deixara mais ou menos implícito que minhas reservas alimentícias equivaliam às de um supermercado!? É certo que ficara com pena do homenzinho, cujo aspecto era lastimável e procurara incutir-lhe um pouco de esperança. Só que em minha ânsia de aplacar-lhe a fome desconsiderei a hipótese de voltar da cozinha com algo inferior ao mínimo solicitado - eu sequer havia checado a comida que me fora destinada por irmã Geovana. Isto ocorrendo, ele pensaria que me divertia às suas custas e não me perdoaria jamais. A única saída era encontrar rapidamente a tal reserva alimentícia e torcer para que ela contivesse ao menos pão.
Ao mesmo tempo em que me amaldiçoava, vasculhava a cozinha, explorando armários, destapando latas, fuçando gavetas e prateleiras, tornando a espiar na geladeira que já sabia vazia, enfim, procurando em todos os lugares onde imaginava que poderia estar armazenada a maldita comida. Mas não havia o menor vestígio dela. Foi então que minha asma histérica começou a se manifestar: o leve chiado que dava início a esse processo evoluiu rapidamente até se converter num guincho de rato estrangulado, tão forte e estridente que acordou Anacleto, cujo sono, de tão profundo, dava a impressão de que ele resolvera hibernar. Ao abrir seus remelentos olhos, o formidável hirco os pousou de imediato nos meus, como se não tivesse a menor dúvida de que a mim cabia a responsabilidade pela interrupção de seu repouso. Depois de permanecer por um momento numa atitude reflexiva e algo grave, Anacleto se levantou e abandonou a cozinha, dirigindo-se para a parte dos fundos da casa. Imaginando que ele apenas procurasse um novo local para dormir, fui atrás dele disposto a lhe passar terrível admoestação por sua indiferença e falta de solidariedade para comigo num momento tão delicado.
Assim que saí da cozinha me deparei com uma grande área de serviço, onde havia três portas. Uma delas (a que eu tentara abrir na noite anterior) dava para o pátio e as outras deviam ser dos quartos da criadagem. Anacleto se estendera como um pachá em frente a uma dessas portas e, por mais incrível que possa parecer, já dormia. Sua facilidade para pegar no sono era verdadeiramente espantosa. Cheguei então à conclusão de que uma simples reprimenda, ainda que severa, não faria com que eu me sentisse vingado o bastante. Pensei em repetir com as barbas de Anacleto o que fizera com as saias de irmã Vôncia, mas faltava-me o indispensável combustível. Na ausência de uma solução mais interessante, resolvi jogar nele um balde d'água. Se ele não levasse o susto que eu esperava, lhe bateria com o balde na cabeça piolhenta.
Decisão tomada, fui até o tanque, mas nele não havia o recipiente adequado. Ao abrir a poorta situada à esquerda, deparei-me apenas com uma velha cama e um armário vazio. Sem perda de tempo, dirigí-me ao outro quarto. Mas ele estava trancado. Irritado, perdi as estribeiras e derrubei a porta com um violento pontapé. Assustado, Anacleto deu um majestoso salto e disparou em direção à sala. Mas como monsenhor Flávio, movido pelo mesmo sentimento, vinha em sentido contrário, ambos se chocaram bem no meio da cozinha, tendo monsenhor levado nítida desvantagem na trombada. Não obstante, consegujiu se arrastar até onde eu estava e ao introduzir sua cabeça no quarto recém arrombado, me encontrou transfigurado! O antigo dormitório fora adaptado para servir de dispensa e nele havia pão, queijo, vinho, biscoito, batatas, sal, açúcar, manteiga, água, frutas e uma porção de outras coisas que testemunhavam o zelo de minha amada. Além disso, as gulozeimas estavam tão bem arrumadas que o quartinho mais parecia uma loja especializada, onde qualquer um se sentiria tentado a adquirir ao menos um produto.
Quando consegui me recuperar um pouco, abandonei a dispensa e fui à cata de Anacleto, com o intuito de mais uma vez me desculpar pelos pensamentos sinistros e pela violência que quase perpetrara. Pensava igualmente em agradecer o toque me dera, pois estava claro que ele só se deirara ali para me indicar o local onde se ocultava a minha salvação. E era tão grande a minha ânsia de beijar suas barbas que passei por monsenhor sem ao menos lhe dirigir a palavra. Mas ao atingir a sala, o formidável hirco já se tinha evadido - e com toda a razão, diga-se de passagem. Voltando à área, lá encontrei monsenhor ainda no chão, enroscado como uma cascavel. Ajudei-o a se erguer e tentei compreender o que ele tentava dizer. Mas sua voz estava tão estrangulada - a cabeçada de Anacleto lhe atingira os bagos - que o sentido de suas palavras se tornava obscuro. Pedi então que se expresasse através de gestos. Monsenhor, atendendo à minha solicitação, indicou uma das prateleiras. Fiz sua vontade e o introduzi na dispensa, carregando-o em meus braços. Em seguida, me aproximei da tal prateleira. Monsenhor, trêmulo de emoção, estendeu o braço e sapecou sua mão suarenta bem em cima de um soberbo queijo, conspurcando-o com sua imundície. Uma hora mais tarde, depois de repetir com o queijo o mesmo procedimento que adotara em relação à agua, monsenhor dormia a sono solto no divã da sala. E se o baixo ventre ainda lhe doía, o mesmo não se poderia dizer de seu estômago, cuja agonia o providencial repasto interrompera.
Quanto a mim, depois de engolir o pedaço de queijo que monsenhor não conseguira devorar, sentei novamente na poltrona e pus-me a refletir. Tinha à minha frente um homem marcado por uma tragédia cujo desenrolar o fizera estabelecer comigo uma relação desvairada e que me procurara em parte para esclarecê-la, em parte para não morrer de fome. De mim, portanto, passavam a depender seu espírito e seu estômago. Quanto ao segundo, eu não me importaria de fornecer-lhe o indispensável, desde que sua voracidade não impuzesse sacrifícios ao meu. Mas no que se refere à sua cabeça, minhas inquietações permaneciam as mesmas. Como fazê-lo compreender que eu não ficara naquela cidadezinha por determinação de Deus? Como convencê-lo de que minha ida até o convento fora motivada por um premente desejo de sobreviver? De que forma poderia meter em sua cabeça que sua fuga do cemitério, devido às circunstâncias, nada tinha de desprezível e não justificava em absoluto o desespero que dele se apossara?
À medida que o tempo passava, mais aflito eu me tornava. Não conseguia definir uma estratégia para lidar com monsenhor, cujo estado estava a requerer a presença não de um possível amigo, mas de um médico. Por mais imaturo que eu pudesse ser naquela época, ainda assim conseguia perceber a gravidade do caso e as complicações que poderiam advir se ele não fosse devidamente tratado. Pouco a pouco, entretanto, e de uma forma quase que imperceptível, foi se criando dentro de mim um sentimento de repulsa por esse homem, que entrara de sopetão em minha vida e me obrigava a realizar um exaustivo esforço intelectual para solucionar problemas que só a ele competiam.
De repente, me pareceu um despropósito estar me desgantando com alguém que, além de formular pensamentos nada lisonjeiros a meu respeito, pretendera até mesmo me matar. Em nome do quê eu deveria ajudá-lo? Não o conhecia, não nutria por ele qualquer amizade, poderia quando muito conceder-lhe meu perdão e desejar que conseguisse se reencontrar consigo mesmo e, por extensão, com o Altíssimo. Afinal de contas, se analisada com frieza, minha atitude até aquele momento havia sido irrepreensível. Eu o recebera em minha casa - a granja se me afigurava como tal -, ouvira pacientemente sua longa história, o alimentara e no presente instante velava seu sono. Que mais poderia fazer? Alojá-lo ali? Adotá-lo? Dedicar-me a reorgtanizar sua mente estropiada? E meus planos de escrever a história de Ambrosina?E meu amor por irmã Geovana? E minha premência em encontrar um modo de escapar da turba? Tudo isso teria que passar a um plano secundário em função da existência de monsenhor Flávio!?
Indignado, comecei a caminhar, já resolvido a enxotar monsenhor Flávio assim que ele despertasse. Não lhe daria, inclusive, nenhuma explicação, muito menos tempo para formular objeções. Abriria a porta e lhe diria: "Monsenhor, tenha a bondade de se retirar". E ao menor vacilo de sua parte, o agarraria pelo cangote e o conduziria como um criminoso até a porteira, que fecharia à sua passagem com a expressa recomendação de que dela nunca mais ousasse se aproximar.
Uma vez resolvido o futuro de monsenhor, fiquei mais calmo e tornei a me sentar. Na ausência do que fazer, me dediquei a contemplá-lo. Possivelmente devido aos novos sentimentos que passara a nutrir a seu respeito, achei-o ainda mais feio. Ele se deitara de lado e mantinha as mãos unidas e os braços esticados, perpendiculares ao corpo, como se puxasse uma corda. A perna que ficara por baixo, a direita, permanecia reta e encostada no espaldar do divã, enquanto a esquerda, a menorzinha, esticada como os braços e a eles paralela, sugeria um vigoroso pontapé no vento. A boca, completamente escancarada, exibia uma coleção de dentes tão escuros que suspeitei que meu hóspede padecia de escorbuto. Para completar o repugnante quadro, um filete esverdeado saía lentamente daquela caverna pútrida, indo alojar-se no forro do sofá, a esta altura convertido em pântano.
Às cinco da tarde, como monsenhor insistisse em prolongar sua sesta, resolvi acordá-lo e pôr em prática o meu plano. Já não aguentava mais vê-lo estirado e babando em meu divã. Chamei-o então pelo nome, procurando conferir à minha voz um tom autoritário, mas ele ignorou meu apelo. Já perdendo a paciência, sacudi-o diversas vezes, aumentando gradativamente a violência dos solavancos. O patético prelado, no entanto, não parecia nem um pouco disposto a me atender. Pensei em pegá-lo no colo a atirá-lo do outro lado da cerca, como um saco de lixo, mas acabei desistindo, pois no íntimo desejava vê-lo retirar-se humilhado e carente do meu perdão.
Às seis horas, meus nervos estavam a ponto de se esfrangalhar. Em vista disso, parti para a abjeção. Acerquei-me sorrateiramente do prelado, me agachei bem perto de sua boca e dentro dela desferi uma certeira mijada! O efeito foi imediato: monsenhor deu um salto tão espetacular que acabou se estatelando no assoalho, debatendo-se e escabeceando como se houvessem colocado pimenta e não urina em sua boca. Enquanto isso, eu recolhi o agente da tremenda maldade, me esforçando ao máximo para conter o riso, sem contudo deixar de saborear os estertores de meu indesejado hóspede.
Finalmente, monsenhor Flávio se convenceu de que não estava se afogando e após sentar-se no divã, cravou em mim seus olhinhos de hiena atormentada:
- Sonhei que estava no inferno e que os demônios se divertiam derramando em minha boca urina de hipopótamo...
- É mesmo, monsenhor? - retruquei, intimamente ofendido.
- Litros e mais litros...eu já não conseguia mais respirar....
- Perdão...mas como sabe que era mijo de hipopótamo?
- Quando era garoto, meu pai me levava sempre ao zoológico. Eu adorava os hipopótamos. Um dia, um macho frustrado porque sua companheira rejeitava suas investidas amorosas, urinou na areia com tanta abundância que eu cheguei a vomitar. Nunca mais voltei ao zoológico e sempre que tenho pesadelos, lá estão os paquidermes, o cheiro de sua urina ou a própria. É terrível...
Nunca poderia supor que o odor de minha urina se parecesse à do grotesco animal e essa descoberta me fez, tempos depois, procurar um urologista para esclarecer essa bizarra semelhança. O médico consultado não compartilhou da opinião de monsenhor Flávio, antes de mais nada porque jamais havia cheirado urina de hipopótamo. Mas declarou que a minha, indubitavelmente, tinha um odor bem mais intenso do que o da maioria dos mortais - antes de prosseguirmos, quero declarar que jamais me recuperei inteiramemnte desse complexo e nunca mais tive tranquilidade para fazer xixi na presença de quem quer que fosse.
Logo após esse breve diálogo, monsenhor Flávio despediu-se, prometendo voltar no dia seguinte. Assim que fiquei sozinho, o remorso pela sórdida atitude começou a me perseguir de tal forma que por pouco não saí no encalço do prelado. Tentei afastá-lo me concentrando nas tarefas domésticas que tinha que realizar, como colocar num dos três quartos a vida de Ambrosina, encher de novo o filtro, fazer minha cama, pendurar minhas roupas no armário e assim por diante. Mas volta e meia a imagem do ratinho branco tomava conta dos meus pensamentos e fazia com que eu me sentisse uma pessoa execrável.
Às dez em ponto me meti na cama, exausto, confiando que dormiria imediatamente. Mas às onze, como o sono me fugisse, fui até a dispensa e devorei metade de um dos outros queijos, um pão enorme e para arrematar bebi quase um terço de um garrafão de vinho. Quando tornei a me deitar, adormeci de imediato, não apenas porque a cabeça me rodava e tinha o ventre saciado, mas sobretudo porque tomara uma decisão ianbalável: no dia seguinte pediria a monsenhor Flávio que me ouvisse em confissão e lhe relataria a infâmia que cometera, sem procurar para ela nenhuma atenuante, deixando-o à vontade para decidir se a colossal mijada que lhe dera merecia ou não o seu perdão.
Essa noite sonhei o tempo todo com hipopótamos...
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010
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Olá, passeando pelo blog, conheci esse espaço tão interessante...
ResponderExcluirAdorei sua escrita e aqui virei sempre prestigiar seus contos ....
Te sigo com carinho
Preciosa Maria