Teatro/CRÍTICA
"Maria do Caritó"
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Belíssima celebração à vida
Lionel Fischer
"Caritó é a pequena prateleira no alto da parede, ou nicho nas casas de taipa, onde as mulheres escondem fora do alcance das crianças, o carretel de linha, o pente, o pedaço de fumo, o cachimbo. Vitalina, conforme a popularizou a cantiga, é a solteirona, a môça-velha que se enfeita - bota pó e tira pó - mas não encontra marido. E assim, a Vitalina que ficou no caritó é como quem diz que ficou na prateleirra, sem uso, esquecida, guardada intacta".
Este texto, extraído do programa, estabelece pertinente paralelo entre a dita prateleira e a protagonista do presente espetáculo, Maria, mulher à beira dos 50 anos, cuja mãe morreu quando a paria e carrega o fardo de uma promessa feita por seu pai: se Deus poupasse sua vida, esta seria a Ele dedicada, mantendo-se virgem e quem sabe promovendo milagres. No entanto, todos os anos Maria faz patéticos pedidos a Santo Antônio - e a muitos outros santos - para que lhe arranje um marido.
Eis, em resumo, o enredo de "Maria do Caritó", em cartaz no Teatro dos Quatro. De autoria de Newton Moreno, a peça chega à cena com direção de João Fonseca e elenco formado por Lilia Cabral, Leopoldo Pacheco, Fernando Neves, Silvia Poggetti e Dani Barros.
Se encarado em seu aspecto mais óbvio, o texto de Newton Moreno se limitaria a narrar o conflito de uma mulher dividida entre seus legítmos anseios e atitudes que é forçada a adotar em função da já mencionada promessa feita por seu pai. No entanto, me parece que a Maria em questão não é apenas um ser individualizado, mas símbolo de todas as Marias e, em última instância, de todos aqueles que não se conformam com o destino que lhes foi traçado. E que lutam, com esperança e fé, para reverter este quadro. E é então que o autor constrói um contexto que acaba tornando viável, através do lúdico, a materialização dos sonhos da protagonista.
Obrigada por seu pai a continuar simulando milagres, que em dado momento ajudariam a fortalecer a campanha eleitoral do coronel que manda na cidade, ao mesmo tempo Maria se agrega à trupe de um pequeno circo, candidatando-se a palhaça. E ali conhece o galã do circo, um pseudo russo que, na verdade, é um legítimo cearense. Ela se apaixona, é claro, e a possibilidade de finalmente concretizar seu grande sonho reafirma ainda mais sua esperança de deixar para trás meio século de frustrações. Entretanto, o autor conduz a narrativa de tal forma que, em seu desfecho, a peça nos mostra o triunfo da essência de um caráter que finalmente consegue se libertar das máscaras que lhe foram impostas. As "personagens" desaparecem, restando o que de fato importa: uma verdadeira mulher, agora totalmente capaz de vivenciar o amor em toda a sua plenitude.
Impregnado de humor, fantasia e lirismo, contendo ótimos personagens e uma narrativa que alterna o real e o onírico, "Maria do Caritó" é um texto absolutamente irretocável, que reafirma o enorme talento de Newton Moreno, que aqui se mostra, mais uma vez, capaz de tocar profundamente o coração do espectador, que fatalmente sairá do teatro com a certeza absoluta de que, a exemplo de Maria, vale a pena insistir até ver materializados seus mais caros anseios e impulsos. Em última instância, trata-se de uma belíssima celebração à vida.
Quanto ao espetáculo, este talvez seja o melhor já realizado por João Fonseca. Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com os conteúdos propostos pelo autor, só passíveis de serem materializados através de uma linguagem que alternasse, a cada momento, aspectos reais e oníricos, o diretor consegue criar uma atmosfera de puro encantamento, que seduz a platéia desde o início e a converte em cúmplice ao longo de todo o espetáculo. Além disso, cabe ao encenador o mérito suplementar de haver extraído maravilhosas atuações de todo o elenco.
Desdobrando-se em vários personagens, Leopoldo Pacheco, Fernando Neves, Silvia Poggetti e Dani Barros - esta última engraçadíssima em todas as suas intervenções - exibem grande versatilidade, ótima contracena e aquela esfuziante alegria de estar em cena, certamente em função da consciência que possuem de estar participando de uma inesquecível empreitada teatral.
No que se refere a Lilia Cabral, o que me restaria dizer sobre ela, além de tudo que já disse, em inúmeras ocasiões? Ressaltar, mais uma vez, seus aparentememnte inesgotáveis recursos expressivos? Estaria sendo repetitivo. Sair à procura de adjetivos até hoje não utilizados? Tarefa pueril, sem dúvida. Então, como expressar meu total encantamento por esta atriz que é capaz, com o mesmo êxito, de transitar por todos os gêneros e em todos os veículos? Vamos, pois, optar pela simplicidade: sendo o teatro, como o define Peter Brook (o maior encenador vivo), a "arte do encontro", ver Lilia Cabral em um palco converte-se em uma experiência única, pois ela me possibilita - e certamente a todos que têm o privilégio de vê-la em cena - não apenas um encontro entre seu trabalho e eu, que o analiso. Não, é muito mais do que isso: todas as vezes que vejo Lilia Cabral em um palco, o maior encontro que se dá é comigo mesmo, pois invariavelmente saio do teatro me conhecendo (e reconhecendo) bem mais do que quando nele entrei. Portanto, Lilia Cabral, devo a você alguns dos momentos mais felizes de minha vida. E por isso te sou eternamente grato.
No tocante à equipe técnica, destaco com o mesmo e irrestrito entusiamo o brilhante e expressivo trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta montagem que, sob todos os pontos de vista, se insere entre as mais expressivas já exibidas em palcos cariocas - Nello Marrese (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação), J.C. Serroni (figurinos), Alexandre Elias (trilha sonora, canções originais e direção musical), Kika Freire (direção de movimento), Tatiana Wanderley (designer gráfico) e a toda equipe responsável por esta produção impecável.
MARIA DO CARITÓ - Texto de Newton Moreno. Direção de João Fonseca. Com Lilia Cabral, Leopoldo Pacheco, Fernando Neves, Silvia Poggetti e Dani Barros. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
quinta-feira, 16 de setembro de 2010
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Achei o espetáculo lindo, emocionante e muito divertido. Realmente, Lilia Cabral sempre nos convida a um encontro. Impecável sua atuação!
ResponderExcluirFiquei contente ao saber que a atriz Lílian Cabral interpreta uma personagem virgem e assexual na peça Maria do Caritó.
ResponderExcluirPois é uma maneira da virgindade adulta e da assexualidade deixarem de ser temas considerados tabus.
Afinal, na vida real, também existem adultos virgens e assexuais que são pessoas normais como qualquer ser humano. Pois são criaturas que trabalham, pagam impostos e tem sentimentos.
Sou assexual, tenho 41 anos e nunca transei. O importante é que não tenho vergonha de vergonha de assumir isto em público.
( Reflexões da Tia Lu )
Luciana Do Rocio Mallon