terça-feira, 21 de setembro de 2010

Um livro maravilhoso

Lionel Fischer


Não sei se já comentei aqui que, durante muitos anos, fiz resenhas literárias para os jornais O Globo e Jornal do Brasil. E os livros que me davam para avaliar abrangiam assuntos tão diversos que, em várias ocasiões, achei que estavam superestimando minha capacidade de avaliá-los para os leitores. Cheguei mesmo a levantar esta questão com as editorias dos dois jornais, mas foi inútil. Então, segui lendo e avaliando. E ontem, por acaso, me deparei com uma obra que me pareceu muito familiar e ao consultar velhíssimos arquivos, constatei que havia feito uma resenha sobre ela, publicada no JB em 1988. Chama-se "O último dos Justos", de autoria de André Schwartz-Bart, tradução de Maria Lucia Autran Dourado/Editora José Olympio. Não sei se a obra ainda pode ser encontrada em alguma livraria, mas certamente em algum sebo. Então, caso vocês se deparem com ela, comprem sem a menor hesitação, pois trata-se de um livro absolutamente imprescindível, pelas razões que exporei abaixo, transcrevendo literalmente a resenha publicada.

* * *

Ser um Justo

Velha lenda recontada com o som e a fúria do Holocausto


"Por que é tão difícil viver entre os homens?", perguntou um dia a Nietzche um jovem estudante. "Porque é difícil permanecer calado", retrucou o filósofo. André Schwartz-Bart optou por não permanecer calado. Em 1943, quando as palavras revelaram-se inúteis, juntou-se à Resistência Francesa e passou a praticar um idioma todo ele feito de gestos. Tinha, nessa ocasião, apenas quinze anos. Aos trinta, já de novo totalmente afeito ao exercício da linguagem, escreveu "O último dos Justos", prêmio Gouncourt de 1959, que talvez possa ser considerada a mais expressiva narrativa de ficção sobre o holocausto de que foi vítima o povo judeu.

O autor tomou como ponto de partida a Lenda dos Justos, pouco conhecida do Ocidente, que imputa a 36 judeus chamados de Justos a responsabilidade de impedir a humanidade de aniquilar-se, obrigando-os para tanto a absorver em seus corações todo o sofrimento do mundo. Para alguns talmudistas, a lenda remonta ao tempo de Isaías, mas a maioria dos estudiosos situa seu nascimento no século XII. O mais curioso, porém, é que em muitos casos o justo ignora sua condição, e mesmo quando a comunidade que o cerca tenta convencê-lo a assumir plenamente o papel que lhe cabe ele reluta, na maioria das vezes por se achar indigno de exercê-la. Seja como for, o espírito da lenda é bem claro e, por mais paradoxal que possa parecer, algo cristão, na medida em que pressupõe que o sacrifício de alguns possa redimir a maioria.

Ernie Levy tenta ser um Justo. Desde pequeno procura desesperadamente se encaixar nesse perfil, que imagina como o mais nobre reservado a alguém de sua raça. Sua pretensão de se anular, de sobrepor ao seu próprio sofrimento o dos outros, suas tentativas de compreender o que no fundo não pode ser compreendido, tudo nele, enfim, revela uma tendência para a bondade e a resignação verdadeiramente comovente. Um dia, porém, depois que um grupo de jovens nazistas o submete a uma série inimaginável de humilhações, refugia-se desesperado num trigal e lá, para sua imensa perplexidade, põe-se a massacrar joaninhas, gafanhotos, borboletas, seres que amava e aos quais, portanto, jamais pensara em causar dano.

Finalmente, exausto, deixa-se cair sobre a relva e cerra os olhos, mas na noite imperfeita de suas pálpebras todas as sua vítimas começam a formigar. Em sua consciência de Justo, é forçado a admitir que não passa de um inseto devorador, um verme indigno - e então decide se matar. Horas depois, no banheiro de sua casa, corta o pulso esquerdo e, após aguardar um longo tempo, temendo o fracasso de sua tentativa de aniquilar-se, atira-se pela janela.

Mas Ernie Levy, que julgara haver fracassado em sua tentativa de se tornar um Justo, fracassa igualmente ao procurar a morte violenta; esta ele só encontraria muitos anos depois, como convinha a todo judeu, nas câmaras de gás. Durante esse intervalo, todavia, o autor nos conduz por uma longa e tortuosa estrada, plena de sofrimento, desespero e solidão, mas também rica em solidariedade, coragem e desprendimento, viagem inesquecível que certamente contribuirá para o nascimento - ou quem sabe a solidificação - no coração de cada leitor de algo insubstituível em sua vida: a crença de que, apesar de tudo, o homem ainda detém, dentro de si, a possibilidade de transcender as misérias que o rodeiam e reconstruir o mundo.

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Trecho da obra

"As vozes morriam uma a uma ao longo do poema inacabado; as crianças agonizantes cravavam as unhas nas coxas de Ernie, num supremo esforço, e o braço de Golda se tornava mais fraco, seus beijos estavam se esfumando, quando ela se agarrou ao pescoço do amado e exalou num sopro: - 'Não o tornarei a ver mais? Nunca Mais?'"

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