Artigo imperdível
Lionel Fischer
O jornal O Globo publicou hoje, no Segundo Caderno, um artigo que considero imperdível, assinado pelo escritor, ensaísta e letrista Francisco Bosco. E meu irrestrito entusiasmo se deve às reflexões empreendidas pelo autor sobre temas que considero fundamentais em nossa época. Assim, transcrevo abaixo - e na íntegra - o dito artigo, esperando que vocês usufruam ao máximo as idéias e pensamentos expostos.
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Compulsões contemporâneas
Francisco Bosco
Entre os dias 9 e 16 do mês corrente, deu-se a II Semana dos Realizadores, com curadoria de Lis Kogan e Eduardo Valente, apresentando a produção do que vem sendo chamado de Novíssimo Cinema Brasileiro. Com um espírito desavisado, de curiosidade, fui a uma sessão que reunia um curta, "Fantasmas", de André Oliveira, e um documentário, "Pacific", de Marcelo Pedroso. O curta é muito bom, mas é sobre "Pacific" que quero escrever. Desculpem-me os leitores por mais uma coluna talvez impopular, já que poucos terão visto o filme ou poderão vê-lo após a leitura do que se segue. Mas o filme é instigante, merece ser repercutido e toca em questões fundamentais do nosso tempo.
"Pacific" é um filme de montagem, em sentido estrito. Ele é composto de imagens feitas, em caráter privado, por turistas num cruzeiro entre Recife e Fernando de Noronha. A equipe de "Pacific" (que é o nome do navio onde se passa quase todo o filme) só estabeleceu contato com os passageiros que se filmavam ao fim da viagem, quando solicitou o material para fazer, a partir dele, um documentário. Desses poucos elementos, uma vez montados, ressaem muitas questões.
O cruzeiro reúne passageiros de classe média baixa. É o povo brasileiro da era Lula, com seu poder aquisitivo ampliado, podendo viajar para um destino turístico de elite. Aqui começamos a perceber um conjunto impressionante - e, para mim, deprimente - de sintomas culturais. Em primeiro lugar, a compulsão por filmar a viagem. O material não revela um olhar atento a excepcionalidades ou agindo de modo inventivo. Filma-se a banalidade, sem tgransfigurá-la por qualquer operação. Filmar aparece assim como uma demonstração - contundente, por seu caráter imaculado de material espontâneo - de um processo cultural onipresente.
Esse processo é a confusão entre ser e ser visto, traço decisivo do capitalismo espetacularizado. Em "Pacific", não nos enganemos, a compulsão por exibir-se é tornada caricata por sua ingenuidade kitsch, mas não permite que se escarneça dela como se nada tivesse a ver "conosco". Ela é um sintoma que nos atinge a todos, em maior ou menor grau: o que o filósofo alemão Christoph Türcke, em uma teoria da sociedade de notável exatidão, chama de "compulsão à emissão".
Com efeito, fomos tomados por um "horror vacui", que faz com que tenhamos que estar todo o tempo ocupados, e que sintamos nossa existência real como insuficiente: é necessário emitir, mandar e-mails, disparar SMS, postar recados no Facebook etc. É uma sociedade de viciados, que precisa de doses, cada vez maiores, de exibição e emissão. "Pacific" torna essa percepção mais aguda pelo estatuto espontâneo das imagens, pela vulgaridade do código cultural de que elas participam (o kitsch, transfigurado em trash pelo olhar metalinguístico de um código cultural "superior"), e também pela ironia aguda que faz coabitarem a compulsão desenfreada pelo eu e pela alegria estrondosa no contexto de uma viagem em pleno oceano, sobre infinito e silencioso azul. Assim, em alto mar, a imensidão e o silêncio são excluídos das imagens. "Pacific", enquanto título, é uma pérola irônica.
Portanto não é só vulgaridade kitsch e da compulsão exibicionista que vem certa melancolia do filme. A tristeza assoma sobretudo da alegria compulsiva e compulsória a bordo do navio. Aqui não se pode saber o quanto isso é efeito (deliberado ou não) da montagem. O fato é que na grande maioria das cenas as pessoas se mostram "felizes". Um homem participa de uma competição grotesca de tomar cerveja no canudinho de cabeça pra baixo; um senhor se mexe como um autômato no meio de uma coreografia de macarena; dezenas de pessoas dançam frenéticas numa festa temática.
Ora, não há alegria sem intervalos. A alegria é uma exepcionalidade. Freud, numa conhecida passagem de "O mal-estar na civilização", escreveu: "O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como manifestação episódica". A alegria compulsiva se mostra uma tentativa de recalcar, ao menos da imagem filmada, o tédio.
Na cena mais forte do filme, essa operação se revela insustentável. Um rapaz está filmando suas duas tias, de meia-idade, isoladas, desanimadas, à margem da "festa tropical". Elas, a princípio, não se percebem filmadas. O rapaz comenta, em off: "Aqui estão minhas duas tias, morgadas, sem saber o que fazer". Então a câmera se aproxima das tias, uma delas a percebe, e desanda a falar animadamente: "Estamos aqui, uma da manhã, na festa tropical!", ao que o rapaz, com desconcertante crueldade, interrompe: "Eu acabei de falar que vocês estavam aí morgadas, sem nada para fazer". O meio-riso amarelo na boca da tia contém a chave que abre o filme inteiro.
Estarei eu sendo muito duro? Tradicionalmente, a representação do povo pelas classes mais altas (econômica ou socialmente), no Brasil, é ou crítico-revolucinária, ou terna, ou identificadora de virtudes perdidas pelo processo neurótico, digo, civilizatório. Em "Pacific", a meu ver, não. O povo é objeto (de certo modo sujeito, já que são eles que se filmam) de olhar zombeteiro. O que isso, se for verdade, revela sobre o Brasil de hoje? Maturidade? Desagregação? Seja como for, uma coisa é certa: o povo do Pacific divide conosco os mesmos sintomas.
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010
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Excelente. E eu que me achava antissocial... - devo ter nascido já "tia", porque sempre fui meio espectadora dos exageros da "festa tropical". Daí meus amigos terem sempre me perguntado se eu, carioca da gema, era "do Estado do Rio"...
ResponderExcluirobrigada, Lionel