Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XII
Às nove horas eu já estava elegantemente vestido e perfumado, pronto para o encontro noturno. Como ainda fosse um pouco cedo, peguei ao acaso um trecho da vida de Ambrosina. A passagem focalizava uma longa discussão que ela tivera com Monsenhor Flávio, orientador das almas da cidade, sobre os efeitos produzidos no organismo humano pelo excesso de incenso. Fui acompanhando o desenvolvimento da monumental arenga até que um detalhe me chamou a atenção: o que teria sido feito do tal Monsenhor? Se ele tivesse comparecido ao enterro de Ambrosina eu o teria notado, pois sendo uma figura de prestígio não se conformaria em ficar misturado à plebe, teria exigido um lugar de destaque. Portanto, deveria estar vivo e ainda morando na cidade, talvez na igreja. Mas, comendo o quê? Será que também assaltara um estabelecimento público? Teria algo a ver com a hedionda Ecúria? E, finalmente: sendo uma pessoa tão íntima do Senhor, por que não procurara o convento para comunicar a tragédia?
As perguntas me ocorriam de roldão e as teria formulado em dobro se não houvesse consultado ocasionalmente o relógio, o que me conscientizou de duas realidades. A primeira, de ordem temporal: já eram vinte para as dez. A segunda, de natureza espacial: não sabia como chegar ao terraço! No calor da emoção me esquecera completamente de perguntar à irmã Geovana qual o trajeto que deveria seguir para atingi-lo - sem ser visto, naturalmente, já que se tratava de um encontro sigiloso. Assim, carente de outra opção, decidi escalar de novo os telhados. Isto representaria, sem dúvida, um grande risco, já que dessa vez minha visibilidade seria precária. Mas não havia outra alternativa e foi o que acabei fazendo.
Depois de incontáveis escorregões, tropeços, quedas e vertigens, finalmente atingi o ponto mais alto do convento. Foi aí que reparei que o terraço abrangia todo o último andar e possuía muitos planos. Não havia também, como sempre pensara, um único pátio, mas vários e de diferentes tamanhos. O convento, na realidade, era um conjunto de edifícios que se interligavam tanto internamente - através dos infindáveis corredores aos quais já me referi - quanto externamente, e dava a sensação de haver sido progressivamente ampliado. Esse tipo de construção apresentava inúmeras vantagens. No caso de um ataque, por exemplo, se um dos lados do convento estivesse sendo muito assediado, as irmãs que defendiam o outro não precisariam, como numa fortaleza convencional, dar uma volta completa para atingi-lo: bastaria enveredar por um dos segmentos existentes, economizando tempo e algumas vidas. A cidadela, sem dúvida, deveria ter sido idealizada por jesuítas, cuja ordem, como todos sabemos, sempre se caracterizou por manejar com igual destreza o evangelho e a espada.
Satisfeito com minha capacidade dedutiva e já com a respiração normalizada, comecei a caminhar lentamente à procura de minha amada. Mas a noite, desgraçadamente, não facilitava minha tarefa. Não havia nem lua nem estrelas. O céu estava carregado e tudo indicava a iminência de uma tempestade. Aquele lugar, refúgio ideal para dois amantes - considerando-se a beleza da vista e a solidão que proporcionava - parecia então um sítio de mau agouro, cheio de vibrações negativas, palco ideal para uma tragédia.
À medida que fui caminhando, tentei expulsar de minha mente esses pensamentos funestos, mas o tempo passava, não encontrava irmã Geovana e os tais pensamentos foram se tornando cada vez mais intensos e funestos. Como uma alma penada que procurasse as portas do paraíso, eu olhava à direita e à esquerda, subia e descia pequenas escadas, debruçava-me, girava o corpo ao menor ruído, mas tudo em vão. Já não tinha sequer idéia de onde estava e se precisasse retornar rapidamente ao meu quarto não saberia como fazê-lo.
Até esse momento não havia consultado o relógio, temendo me desesperar, mas de repente resolvi fazê-lo. E quando vi que já eram onze horas me descontrolei completamente e comecei, aos berros, a clamar por minha amada, indiferente ao fato de que poderiam me escutar. Mas esse risco se tornou mínimo, pois logo desabou um temporal operístico. O céu, recortado de serpentes furiosas, fazia sua catarse, descontava na Terra suas frustrações imensas. Em meio a esse orgia de cores, sons e turbulências, nem eu mesmo conseguia ouvir direito os desesperados apelos que lançava. Enlouquecido, corria pelos terraços gritando insultos contra a natureza, que tentava boicotar o meu amor; contra Deus, que o inventara; contra irmã Geovana, que faltara ao nosso encontro; e finalmente contra mim mesmo, que se tivesse dado ouvidos à minha mãe, já estaria formado em medicina e com um bela clientela. Mas não: decidira viajar, conhecer o mundo e o resultado era esse que se via...
Subitamente, um espantoso clarão iluminou a parte do terraço em que eu estava e a esperança me voltou: a cerca de cinqüenta passos, um vulto aguardava, imóvel, recostado na muralha! Assim que o vi me precipitei como um bólido em sua direção e quando o alcancei o abracei com tanta força que ele soltou um grito. Estava de costas para mim e além da dor deve ter sentido igualmente um grande susto. Mas eu estava tão exaltado que nem sequer me desculpei ou o tranquilizei: gritei-lhe, isso sim, todo o meu amor, beijei sua touca como se ela fosse seus cabelos, apalpei seu hábito como se o mesmo fosse sua pele e finalmente o virei para mim e me enfiei em sua boca, nos seus olhos, nos seus ouvidos, cegando, ensurdecendo e tornando muda aquela que amava acima de qualquer coisa neste mundo!
Num dado momento, já com a tensão aliviada, me afastei um pouco. Queria, então, apenas contemplá-la, a ela, que correra todos os riscos para me ver e que eu, injustamente, injuriara. Ela, que passara a simbolizar a própria vida e cuja doçura, inteligência e firmeza me fizeram novamente acreditar que poderia ser feliz. Ela, irmã Geovana!
Um novo clarão encheu de luz as trevas e ao meu coração de pasmo. À minha frente não estava a deusa de minha vida e sim irmã Fernanda, que me olhava sem animosidade, mas com um ar que sugeria um contido deboche. Incapaz de acreditar no que acabara de ver, recuei um passo, na esperança de que o próximo clarão desfizesse a falsa impressão que tivera. Irmã Fernanda, no entanto, que se encharcara até a medula e tremia de frio, não se dispôs a esperá-lo:
- Senhor Aquino: irmã Geovana não pôde comparecer e me pediu que lhe desse o seguinte recado. Nos arredores da cidade existe uma granja e é para lá que deve se dirigir quando sair daqui. Não será difícil encontrá-la, pois é a única que existe nas redondezas. Nela há uma dispensa com comida e água para uma semana. Seus escritos e pertences serão enviados para lá amanhã, de forma que você só terá que iludir irmã Vôncia, embarcando no trem e saltando mais adiante. Aqui está a chave da granja. Irmã Geovana irá vê-lo tão logo seja possível. E agora vamos, já passa da meia-noite.
Acompanhei-a ainda em estado de choque, como um zumbi. Não consigo sequer recordar o trajeto que fizemos, apenas que, num dado momento, ela me disse:
- Siga até o fim deste corredor. A última porta à esquerda é a sua.
Então, irmã Fernanda desapareceu. Ao chegar ao meu quarto, deitei-me como estava e conservando entre as mãos a preciosa chave, adormeci imediatamente.
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terça-feira, 14 de setembro de 2010
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Lionel,
ResponderExcluirGostaria de convidá-lo a assistir "Sai de mim, Julie Andrews!"
Monólogo cômico musical que conta a história de um jovem que é louco por musicais e
vive num mundo à parte dentro do seu quarto. Tendo especial adoração por Julie Andrews
ele sonha em ser a "Maria" do musical A Noviça Rebelde e se tornar também uma estrela
dos palcos, além de desejar desesperadamente ter uma namorada. Só que ninguém acredita
na sua masculinidade "exótica" e todos o rotulam preconceituosamente de gay.
FICHA TÉCNICA
Texto, versões das músicas e atuação: Thiago Sardenberg
Direção: Rubens Lima Junior
Cenário, figurinos, adereços e design gráfico: Augusto Pessôa
Piano e direção musical: Tony Lucchesi
Iluminação: Rubens Lima Junior e Renato Marques
Participação especial em voz off: Sabrina Korgut
Participações especiais em video: Rodrigo Cirne e Victor Maia
Efeitos sonoros: Evandro Vital
Filmagem e edição de videos: Renato Marques
Coreografia das músicas “Diva Gay” e “Sou artista”: Kiko Guarabyra
Modelagem: Anavá
Visagismo: Isabel Chavarri
Fotos: Renato Marques/Espaço da Foto
Produção Executiva: Alex Sardenberg
Local: Casa de Cultura Laura Alvim (Espaço Rogério Cardoso)
Temporada: 31 de agosto a 06 de outubro (terças e quartas)
Horário: 21:00
Classificação Etária: 14 anos
Duração: 75min
Inteira: R$ 30,00
Meia: R$ 15,00
CONTATO
Thiago Sardenberg: 8199-6779 (thiagopsg@gmail.com)