quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Da ética pessoal à ética de grupo

Odette Aslan


Na formação tradicional, cada um se orienta à sua maneira. O critério de seleção do Conservatório de Paris (só os dois primeiros prêmios podiam ter acesso à Comédie-Française) e a organização da Casa de Molière (protagonistas, coadjuvantes, estagiários e figurantes) parecem ter autorizado privilégios que repercutiram evidentemente na atuação. Há comediantes que desenvolvem sozinhos uma disciplina, um comportamento rigoroso. "Sê duro contigo desde o começo", aconselha Dullin a um jovem aluno. "Não há desculpas, não há perdão, não há absolvição para os falsos artistas. A gente é o que é: o que se faz com vontade, com firmeza".

O importante para exercer bem esse ofício, diz Jouvet, está "na renúncia de si para o próprio desenvolvimento". Somente um número pequeno de comediantes se eleva à categoria de artistas, rejeita soluções fáceis e dedica-se cada dia a uma busca nunca satisfeita. Stanislavski, Copeau, Craig, tentaram provocar esse estado de espírito, mas só é possível desenvolvê-lo se ele já existir no aluno.

A consciência profissional começa pela pontualidade, pela exatidão. Na Alemanha, para um ensaio previsto para as 14h, todos os comediantes estão no palco às 13h55. Em Paris, o encenador espera freqüentemente os comediantes retardatários. Jean Villar teve de chamar a atenção de seus atores durante os espetáculos do TNP porque alguns chegavam pouco antes de levantar-se o pano. Comediantes sujeitos a "brancos" passam o dia pondo-se em forma para a noite; os conscienciosos organizam sua vida pessoal pelo metrônomo do papel que interpretam. Há os inquietos que se aturdem o dia todo para esquecer que atuarão à noite e assim por diante.

Nos países socialistas, os atores contratados por um ano em um teatro do Estado não se dispersam em atividades paralelas; ensaiam e representam no respectivo teatro de manhã e à noite. Estão "à disposição". Em Hollywood, o ator, peça de uma vasta organização industrial, só tinha direito de ir do estúdio para casa e de casa para o estúdio e para nenhum lugar mais. Nada viria romper o fio que o prendia à personagem que filmava. Em Paris, o próprio ator deve organizar-se, conforme o que procura: dinheiro e glória, ou se a sua busca artística.


Estar em dia com a vida teatral

Isto parece uma obrigação evidente. Mas, as pessoas do ofício, prisioneiras de uma agenda devastadora, têm pouca liberdade. Muitos teatros folgam no mesmo dia da semana e os comediantes fazem outro espetáculo em seu próprio dia de folga ou precisam descansar. A representação profissional organizada em matinê para cada criação só pode receber algumas centenas de espectadores. Desempregado, o ator nem sempre tem vontade de ir aplaudir os outros, a menos que espere arrumar uma ponta, uma substituição para uma turnê.

Em Paris, há pouquíssimos comediantes que realmente se interessam pela criação, que conhecem de perto a vida teatral francesa e entrangeira. Em 1962, Peter Brook dizia que os atores de sua companhia inglesa não sabiam responder às perguntas surgidas no curso dos debates, nunca haviam pensado nelas.

Entretanto, nota-se o desenvolvimento de uma certa curiosidade, de um interesse em encontrar manuscritos, traduzi-los, torná-los conhecidos, editá-los e representá-los, entre alguns atores e atrizes que não estão preocupados apenas com a possível interpretação de um papel. Comediantes que pertencem a conjuntos de trabalho coletivo se explicam melhor, são conscientes dos problemas que discutem ao longo do dia. Mas observou-se que os grupos ingleses do underground que se encontraram em 1969 no Festival Mundial de Teatro de Nancy não se conheciam uns aos outros.


A escolha do repertório

Alguns comediantes sabem julgar um original, farejar seu interesse, sua dificuldade, situá-lo em relação ao conjunto da produção artística, ver se ele se insere nos problemas de nosso tempo e decidem-se a participar de uma tentativa que acabará talvez em fracasso, mas levará um tijolinho a um edifício invisível. Há um perigo além do malogro financeiro: um comediante de boa vontade, que só participasse de tentativas difíceis, não veria sua coragem recompensada. Acabar-se-ia acreditando que é ele que dá azar ou que não tem talento. Ele deve, portanto, dosar seus esforços.

Por outro lado, dizia Dullin, o ator que representasse obras-primas consagradas a vida toda, que se deixasse levar por elas, jamais seria considerado um grande ator, enquanto aquele que dá consistência a uma obra insignificante é tratado como um criador. Daí o número lamentável de comediantes que aceita ou encomenda obras da pior qualidade contanto que possam ostentar no desempenho destas o que crêem ser seu virtuosismo, representando incessantemente um tipo de personagem que fizeram bem.

É por isso que sobrevive por bastante tempo uma dramaturgia caduca, que desapareceria mais depressa se certos cabotinos aceitassem encarar a realidade de frente, ver que outras formas teatrais evoluem e que eles deveriam deixar no vestiário as receitas de seus avós. Louis Calvert lembra o momento crucial desta encruzilhada em que um ator bem-sucedido deve escolher entre copiar a si mesmo ou partir para direções novas, incertas quanto ao êxito. Para as novas companhias, a questão não se apresenta. O repertório permite todas as ousadias, na linha de uma ideologia determinada.


O atrativo do dinheiro

É difícil renunciar a um contrato sedutor que obrigue a fazer uma peça medíocre e preferir um magro cachê para uma peça que pareça interessante. É preciso viver e, de vez em quando, dispor-se a participar de uma empreitada "digestiva". Seria imoral atirar pedras nos comediantes cujo pão de cada dia está assegurado.

Vê-se como simpático o fato de que astros como Laurence Olivier, John Guielgud, Michael Redgrave, Ralph Richardson, Alec Guiness, tenham atuado por quase nada em Stratford ou no Old Vic, que Gérad Philipe haja atuado, por pequena remuneração, no TNP, conscientes como estavam de trabalhar em prol de um repertório válido.

Ao mesmo tempo, Dullin recusou cachês incríveis com que lhe acenavam de Hollywood. Mas o problema do cinema tem dois gumes. Ao recusar-se a aparecer na tela, a vender-se por dinheiro sem proveito artístico, o ator arrisca-se a diminuir suas possibilidades de trabalho no teatro. Jouvet achava que o público queria que suas estrelas teatrais preferidas também fizessem carreira no cinema e não tivessem o ar de abandonados. A partir daí entra-se no ciclo das concessões. Não que o mundo do cinema seja desonroso. Há bons filmes e trabalho de equipe interessante. Um ator como L. Terzieff perde no teatro, produzindo obras difíceis, o dinheiro que ganha como astro do cinema, os atores do Living Theatre fazem cinema para encher o caixa.

Seria bom saber se os comediantes que entram numa trupe constituída como era o TNP de Villar (empreendimento com ideologia definida) ingressam nela como num refúgio que os põe, enquanto dura o contrato, ao abrigo do desemprego, ou se encaram tal contrato numa companhia de renome como uma promoção honrosa de que tirarão proveito mais tarde, ou se querem efetivamente participar do projeto de teatro popular.


Relação autor-ator

O ator que só ama a si mesmo, que só se preocupa com seu sucesso pessoal, não hesita em modificar uma cena ou um desenvolvimento em proveito próprio. Ainda assim, honestamente pode também ser capaz de efetuar uma sugestão atilada. Antoine, ao saber que Le Bargy desejava pedir a François Curel modificações no papel (pouco simpático para seu gosto) de Charles merande em L'amour brode, censurou veementemente o ator por imiscuir-se no que não lhe dizia respeito. Mas os tempos mudaram: no Open Theatre os atores elaboram e os autores remanejam.


Relação ator-encenador

O ator imbuído de sua própria pessoa caminha amiúde contra a corrente da evolução artística. Os atores de Stanislavski (no primeiro período do Teatro de Arte de Moscou) ficaram furiosos quando o Sistema lhes foi imposto. O movimento do Cartel, fato só relevante na França de antes da Segunda Guerra Mundial, foi limitado, e malvisto em seu tempo por numerosos comediantes. Os atores do teatro de boulevard zombaram "dessas igrejinhas, desses teatros carcomidos em que o ator devia abdicar de toda a sua personalidade para agradar aos novos mestres e ser apenas um número no todo, como os cenários".

Em compensação, comediantes de temperamento dócil e um pouco preguiçoso perdem toda a iniciativa, esperam do encenador diretrizes às quais se submeteram de antemão. Giorgio Strehler confiou a Maurice Sarrazin sua angústia diante da apatia dos comediantes modernos. Roger Blin lamentou a obediência passiva dos comediantes alemães com quem trabalhou em Essen (Os biombos). Há também a relação sadomasoquista de que fala Grotowski, como também a admiração entusiasta de discípulos por um líder brilhante. Victor Garcia procura fazer com que seus comediantes se apaixonem por ele, entrem em comunhão com seu coração e seu pensamento.


Relação ator-personagem

Pode-se estabelecer a atitude do ator em seu ofício e em sua vida de acordo com o fato de ele:

* privilegiar a personagem

* elevar-se até a personagem

* identificar-se com a personagem

* anular-se diante da personagem

* esconder-se atrás da personagem

* mostrar a personagem

* destruir a noção de personagem

Dessa forma, ele não escolheu apenas uma técnica de atuação, mas se filiou a um comportamento que lhe convém. Conforme o tipo de maquiagem que adotar (sofisticação, aceitação de enfeiar-se, gosto pela transformação, rosto limpo, uso de máscara), ele trai seu narcisismo ou seu desprendimento. Conforme aceite ou não ser dublado nas cenas perigosas, revela a têmpera de seu caráter e a parte de sua vida que pretende doar a seu ofício. A tradução da personagem evolui também com a mutação da sociedade.


Relação ator-espectador

Mesmo inconsciente, essa relação é a base permanente do jogo de desempenho. O ator, também neste caso, tem dupla dependência. É preciso distinguir sua relação pessoal com o espectador e aquela que o encenador lhe ditou devido à sua concepção geral. Um vez posto em cena, sabendo que é um foco visual, ele será, como na vida, egoísta ou generoso, simples ou vaidoso, criará um efeito ao menor apelo, buscará aprovação, aferirá sua cotação pelo número de autógrafos que assinar à saída.

Ou então se entregará com disciplina num grupo, procurando somente contribuir para o êxito geral da empreitada. Atitude ditada pelo encenador: de acordo com a técnica a que se submeta, de emoção ou distanciamento, o ator ou se abandona diante de um espectador-testemunha a uma exibição, ou então guarda distância, desobriga-se da troca emocional. No teatro de participação, procura obter um contato, uma comunicação com o outro. No Ocidente, a relação atores-espectadores é traduzida pelo aplauso. Se o comediante for exigente consigo mesmo, perfecionista, desprezará o sucesso fácil. E, em alguns casos, como nos espetáculos de Grotowski ou Barba, os atores sequer voltam para agradecer.
__________________
Artigo extraído, e aqui um pouco reduzido, do livro O ator no século XX.

Nenhum comentário:

Postar um comentário