quinta-feira, 23 de setembro de 2010

"FALA!"

Eric Bentley


Toda a literatura é feita de palavras, mas as peças teatrais são feitas de palavras faladas. Embora qualquer literatura possa ser lida em voz alta, as peças são escritas para serem declamadas. É porque o drama apresenta homens falando que o teatro contrata homens falantes para comunicá-lo. É dispendioso. E nada depõe com mais segurança sobre o interesse da gente em ouvir palavras faladas do que a nossa disposição em pagar para isso.

Uma pessoa afirma, por vezes, ter aprendido um idioma estrangeiro sem aprender a falá-lo ou a compreendê-lo, quando falado. Qualquer pessoa que tenha tentado isso sabe até que ponto é diminuta a experiência que pode esperar dessa proeza. As palavras aprendidas dessa maneira ("Vire à direita", "Não pise na grama") podem ter uma certa utilidade, mas nunca poderão ser o que as palavras são nos idiomas que falamos e ouvimos.

No fundo, a linguagem é muito pouco uma questão de utilidade. Uma certa espécie de manuais sustenta que as crianças aprendem palavras a fim de pedirem coisas. Na realidade, a maneira mais convincente de pedir o gênero de coisas que as crianças querem é gritar sem dizer uma palavra - o que as crianças fazem, antes e depois de aprenderem a falar. Quem tiver escutado crianças de dois anos de idade sabe que elas não falam tanto para obter coisas como por terem prazer nisso. Aos dois anos, o meu filho Philip disse: "Mamãe, não fale! Phlilip fala!" - ele gostava de ouvir o som de sua própria voz e diferia de um adulto, unicamente, pelo fato de não se envergonhar disso.

E no sexto dia, Deus fez o homem e disse: "Homem, fala!". E o homem falou, e nunca mais deixou de falar até hoje. A ontogenia repete a filogenia. Cada um de nós pode afirmar sinceramente: eu gostaria de falar incessantemente. Por quê? Em primeiro lugar, porque Narciso é Narciso, e só usava um espelho porque o gravador de fita magnética ainda não fora inventado. Falar é, sem dúvida, entre todas as formas da vida que conhecemos, o modo primordial de auto-afirmação, do berço ao púlpito, da cabana do lenhador à Casa Branca.

Tampouco é destituído de astúcia. Muitas vezes comparado aos trinados amorosos de pássaros, poderia igualmente ser equiparado aos rugidos das feras famintas. Em seus infatigáveis esforços para se ferirem mutuamente, os homens usam um milhão de palavras para cada bala. Pois ainda mais que balas, as palavras habilitam-nos a combinar o máximo de hostilidade com o máximo de covardia.

É interessante notar que a Psicanálise é uma terapêutica exclusivamente verbal. O analista e o paciente nada mais fazem do que falar ou deixar pausas entre as falas. Esse, ainda mais do que duas dúzias de volumes de suas obras completas, é o tributo de Freud ao Verbo. Na verdade, da maneira de falar de um homem tudo o mais pode ser deduzido a seu respeito. À parte aquilo que ele diz, a dedução pode efetuar-se através de sua ignorância de quando deve parar, ou de quando começar, de suas hesitações, de sua recusa em permitir pausas que possibilitem a resposta de outras pessoas. A falta de estilo faz o homem.

Freud viu os homens como delatores de si mesmos. Outros, à maneira de Judas, podem trair com um beijo; na maioria das vezes, denunciam-se eles próprios com palavras. Com sua intuição para tudo o que era humanamente significativo, Freud logo acertou com o que parecia constituir um excêntrico assunto de deslizes da língua e erros verbais em geral. Lendo o que ele tinha a dizer-nos a tal respeito, compreendemos ser característico da língua cometer deslizes, e que as palavras são aquilo com que os homens contam, usualmente, para errar, antes de seus erros converterem-se em ação. Antes dos assassinatos de Júlio César e do Rei Duncan está a decisão de matá-los, uma decisão a que se chegou com palavras. Aí se encontra a oportunidade do dramaturgo.

Grandes oradores, dizemos muitas vezes, são os que urdem uma espécie de fascinação, e a magia, numa acepção mais literal, é desde o início a finalidade em vista. Acreditar em magia é acreditar no poder máximo das palavras; pois que, se os conjuros são válidos, então as palavras podem mover montanhas. A fé nas palavras sempre foi mais forte e mais propagada que a fé na fé. Homens sem crença em Deus murmurarão as fórmulas verbais de tais crenças quando estiverem em apuros. Não estão por esse motivo recuperando a fé em Deus; estão apenas mantendo sua fé nas palavras. Para as pessoas mais civilizadas, a frase "a magia das palavras" é figurativa. Abrange fenômenos bons e maus: Hitler também foi um mágico da palavra. Do lado positivo, "a magia das palavras" sugere o feitiço da literatura e, em especial, da literatura dramática.

Significa também que eu gostaria de falar não só incessantemente, mas incomparavelmente. Aos dois anos de idade, estou convencido de que posso; talvez ainda aos três e quatro anos; mas pelo caminho essa ilusão vai-se perdendo com outras, o que é uma sorte, visto que, num mundo de tantos milhões de pessoas, dificilmente seria viável para cada pessoa falar o tempo todo. Desiludidos, caímos no silêncio; e, pela primeira vez, estamos livres para escutar.

Felizmente, a nossa estrutura inclui um mecanismo que nos impede de sucumbirmos de pura inveja se o que ouvimos é uma fala incomparável. É esse o ato de identificação. Se não os puderes vencer, une-te a eles. Se não puderes ser um grande falador, identifica-te com os grandes faladores. Cantando "O sole mio" no banheiro, a nossa voz ressoa, de maneira notável (em nossa opinião), como a de Caruso. Rivalizando com Caruso, qualquer um de nós pode rivalizar com Winston Churchill, Demóstenes, Laurence Olivier, Oscar Wilde, Bernard Shaw. E, desde que essa rivalidade não seja levada a sério, a situação é salutar e deveras necessária se quisermos que se estabeleça um contato vivo entre as grandes palavras e nós próprios.

Disse Nietzche: "No fim de contas, só nos experimentamos a nós próprios", e, quer esse comentário abranja ou não a verdade toda, chama a nossa atenção para certas limitações inalteráveis aos poderes e possibilidades de cada um. Se não somos eloqüentes, agarramo-nos à eloqüência dos outros. Ao que parece, ninguém pode prescindir da eloqüência: é tão indispensável quanto irresistível. Poderemos lamentar esse fato quando pensamos na eloqüência de alguns demagogos ou evangelistas, mas é também a ele que devemos o perene interesse humano pelas grandes obras dramáticas, as quais, como Ronald Peacock diz, "baseiam-se na voz do poeta".
_______________________
Trecho extraído do livro "A experiência viva do teatro", tradução de Álvaro Cabral, Zahar Editores, 1964. Este fragmento foi pinçado do capítulo DIÁLOGO, que contém ainda tópicos de grande interesse: O dramaturgo como falador, A eloqüência do diálogo, Naturalismo, Prosa retórica, Verso retórico, Poesia, Antipoesia e Antipeças. Trata-se de um livro imprescindível para os estudantes e profissionais de teatro, não só pela multiplicidade de temas que aborda, mas também pela extrema competência, cultura e originalidade do autor, considerado um dos mais brilhantes ensaístas teatrais do século XX.

Um comentário:

  1. Interessante esse texto. As palavras são a condição essencial para o desenvolvimento das ciências, do trabalho e do homem, enquanto ser social e racional. Aliás, não é justamente a racionalidade que, unida a caracteres morfológicos e fisiológicos, faz o Homo sapiens diferenciar-se dos organismos que estão no seu meio?

    A fala trouxe - e trás - o homem para a condição de um ser aprendente, que pode modificar o seu meio e mais: pode mudar a si mesmo, com a palavra que sai do seu pensamento, com as palavras que saem dos outros, numa trouca infinita de simbiose das ideias.

    A fala controe as ideias, as ideias constroem você e você controe o mundo.

    Se pensarmos bem, acharíamos as palavras a obra mais bonita desse estranha enigma de ser gente.

    Parabéns!!!

    ResponderExcluir