terça-feira, 14 de junho de 2011

Aniversário

Lionel Fischer


          Tenho 70 anos.
       Tenho um câncer no fígado.
       Tenho no máximo mais uma semana de vida.

       É esta, pelo menos, a opinião do dr. Xulster, que acaba de deixar o meu quarto. Sinto algumas dores que, ao entardecer, como de hábito, se tornarão atrozes. Mas o que mais me inquieta é saber que a doença pode tardar ainda uma semana para consumar inteiramente a destruição do meu organismo. Uma das enfermeiras que me atende, pretendendo ser gentil, me disse ontem que a doença parece estar mais exausta do que eu e que, portanto, ainda me resta uma esperança. Mas não é verdade.
         
          Durante os últimos meses, de tanto refletir sobre o mal que me aflige, acabou se cristalizando dentro de mim a convicção de que o câncer estabelece com cada doente um tipo de relação, que é o que determina o tempo de sobrevida. Assim, se ele simpatiza com a pessoa, esta morre rapidamente; em caso contrário - o meu, ao que tudo indica - o processo de degenerescência orgânica pode durar uma eternidade.

       Não acredito na eficácia dos remédios.
       Não acredito na maior resistência de algumas pessoas.
       Não acredito em milagres.

      Posso no máximo admitir, e assim mesmo sem grande convicção, que algumas medidas preventivas consigam dificultar a entrada em nosso organismo deste apocalíptico senhor. Uma vez instalado, no entanto, não há nada capaz de fazê-lo retroceder.

      É como a peste.
      É como a inveja.

      Mas não é minha intenção ficar divagando em torno do inexorável. O próprio dr. Xulster, um verdadeiro sábio, me recomendou que pensasse em tudo, menos na doença. Aconselhou-me mesmo a ocupar as horas que me restam com as recordações mais gratas de minha vida, com tudo aquilo que gostaria de reviver se me fosse possível.

      Essa proposta, mais humana do que propriamente terapêutica, me colocou diante de um impasse. Minha vida, quase que em sua totalidade, foi espantosamente monótona. Não amei nem fui amada. Não tive amigos. Não me interessei seriamente por coisa alguma. Fui feliz apenas durante um curto período, dos 14 aos 15 anos - se bem que o que chamo de "felicidade" provavelmente lhes causará profundo horror.

      Em todo o caso, devo pensar primeiro em mim mesma, no meu prazer. Devo ser egoísta. Afinal, morrerei em breve. Portanto, ainda que consciente de que a narrativa que se segue poderá enojá-los, não me é possível evitá-la. Sigo recomendações médicas. Sou uma paciente exemplar.

       Tendo perdido meus pais num desastre de automóvel quanto tinha apenas três meses, fui criada a partir daí por minha avó paterna, Anilec, criatura extremamente má cujo único mérito residia no fato de tentar ser boa - sem nenhum êxito, diga-se passagem.  Teimosa e desconfiada como um jesuíta, rancorosa como um corcunda, invejosa como um anão, possuía além de tudo isso um aspecto mumesco - creio que essa palavra não existe, mas em todo caso gostaria que fosse entendida como o resultado da combinação de uma múmia pútrida com um macaco mandril desdentado.

        Embora tivéssemos pouquíssimo contato com a vizinhança, não havia uma única pessoa no bairro que não a achasse louca. Nossa casa, inclusive, era chamada de "a mansão da louca". Pode ser que ela fosse insana, mas eu sempre me recusei a aceitar esse diagnóstico, por julgá-lo um tanto cômodo e, de certa forma, complacente. Para mim, Anilec era a corporificação da maldade, da intolerância, do despotismo. Um verdadeiro polvo que sufocou, com seus tentáculos, a todos aqueles que tiveram a suprema infelicidade de com ela conviver.

          Costuma-se dizer que um adulto é o resultado da educação que recebeu. Se teve uma infância feliz, equilibrada, se foi amado e absorveu valores significativos, tenderá a se tornar uma pessoa responsável, justa e importante para a sociedade. Mas se isso é verdade, o oposto também o é. Assim, uma criança maltratada, intimidada, cerceada nos seus direitos mais elementares, levada a acreditar que não passa de uma nulidade, ao chegar à idade adulta tem tudo para se converter em permanente fonte de ameaça para os outros. 

         E foi justamente isso que percebi em mim mesma quanto completei 14 anos. Incapaz de pensar por conta própria, de tomar qualquer iniciativa, permanentemente aterrorizada e, ao mesmo tempo, já de certa forma habituada ao pânico, aos castigos, às humilhações, compreendi que a essência do meu caráter já havia sido a tal ponto vilipendiada que se não tomasse uma atitude drástica me tornaria, em adulta, uma réplica de minha algoz.

       Em vista disso, resolvi assassinar minha avó.

       Curiosamente, uma vez tomada a decisão, me senti outra pessoa. A certeza de que poria fim, mais cedo ou mais tarde, à tirania daquela que, ao menos em princípio, só deveria se preocupar com a minha felicidade, fez com que eu passasse a encarar suas atrocidades cotidianas mais com ironia do que com sofrimento.

        Essa mudança de postura, evidentemente, não passou despercebida. Anilec, de tão desconcertada, chegou até mesmo a reduzir as punições e as ameaças - todas gratuitas e imerecidas - durante umas duas semanas; procurou desesperadamente descobrir as causas que me faziam sorrir quando o normal seria que eu chorasse.

       No entanto, como não conseguiu chegar a uma conclusão definitiva, ao cabo desses quinze dias não apenas retomou seu ritmo normal de crueldaes, mas o intensificou. Para mim, todavia, isso foi de grande importância, pois sofrer um pouco mais me servia de alimento, solidificava minha convicção, estimulava minha fantasia. Anilec, sem o saber, estava construindo para si mesma uma morte inconcebível...

       Durante alguns meses fiquei um tanto indecisa quanto ao mecanismo de que me valeria para matá-la. Nada me parecia cruel o suficiente. Fazê-la tão somente desaparecer não me bastava: o essencial é que sua morte, além de lenta e dolorosa, contivesse algo de terrorífico. Até que um dia encontrei o que buscava, quando caminhava pelo jardim e curiosamente não pensava em nada referente ao ato que pretendia consumar.

        Perto do poço, uma barata gigantesca e ainda agonizante estava sendo devorada por formigas. Às dezenas elas disputavam avidamente cada pedaço disponível e só não se mordiam umas às outras porque, a exemplo dos japoneses, são criaturas extremamente disciplinadas. O espetáculo daquele ser asqueroso, cujas entranhas eram implacavelmente devassadas, me fez tremer de emoção. Era exatamente algo no gênero que eu procurava.

        A partir dessa tarde, passei a capturar formigas e a escondê-las no porão, sem que ninguém notasse, nem minha avó nem as duas empregadas. Eu as alimentava com mel, cardápio que elas pareciam admirar sem reservas e as alojava dentro de velhos recipientes de vidro, cuja existência até aquele momento ignorara.

       Finalmente, chegou a data fatídica. Já poderia ter executado antes o meu plano, se se levar em conta a quantidade de formigas que conseguira juntar. Mas resolvi esperar o dia do meu aniversário, dar-me esse presente. Após o jantar, durante o qual meus 15 anos mereceram por parte de minha avó apenas um breve e indiferente comentário, ela se retirou para o seu quarto, alegando que não se sentia bem. Nem poderia, convenhamos, haja a vista a quantidade de soporífero que eu adicionara ao seu chá...

        Assim que ela se fechou em seu quarto, eu me tranquei no meu e aguardei pacientemente uma hora, tempo suficiente para as domésticas tirarem a mesa, lavarem a louça e se recolherem aos seus aposentos. Às dez em ponto fui até o quarto de minha avó e constatei, radiante, que ela dormia profundamente. Descendo então até o porão, comecei a transportar para o seu quarto minha inestimável coleção de formigas.

        Quando acabei essa operação, peguei no meu quarto alguns potes de mel que roubara da dispensa e algumas cordas que fabricara utilizando cintos e tiras de couro descobertas ao acaso. Em seguida, levei todo esse material para o quarto de minha avó. O passo seguinte foi imobilizá-la em seu leito e criar diversas trilhas com o mel, que começavam no chão, subiam pela cama e finalmente se espalhavam por todo o corpo de Anilec. Então, soltei as formigas e me sentei, serena e plácida, na cadeira de balanço que a partir dessa noite minha avó jamais tornaria a usar. 

         Em poucos minutos, já não havia mais nenhuma formiga no chão. Comportando-se exatamente como eu havia previsto, espalhavam-se às centenas sobre minha avó, que ainda dormia e, portanto, igonarava o destino que eu lhe reservara. Num dado momento, porém, quando o mel que a recobria se esgotou e minhas cúmplices começaram a mordiscar a superfície sobre o qual ele havia sido depositado, minha avó acordou. 

        De imediato, ela pareceu não se dar conta do que se passava. Olhou-me fixamente - eu coloquei a cadeira de balanço bem em frente de sua cama, para melhor apreciar a cena -, mas tive a impressão de que não me via; ou então me via, mas não como sua neta, mas como a materialização de um pesadelo. 

        Quando, porém, sua dor começou a se tornar atroz e ela percebeu que tinha o corpo ornamentado por insaciáveis criaturas que literalmente a devoravam, ela me lançou um olhar carregado do mais genuíno ódio e tentou gritar. Entretanto, já as formigas se introduziam em sua boca, abafando o clamor desesperado que tentava emergir de suas entranhas. 

        Ela ainda tentou se libertar das correias que a aprisionavam, mas já estava tão despedaçada e enfraquecida que todo o seu esforço pode ser resumido a uma poucas e deliciosas convulsões. À meia-noite em ponto a execrável criatura deixara de existir.

       Ainda permaneci cerca de uma hora contemplando o bárbaro festim. Só abandonei a cadeira de balanço quando me convenci de que era preciso levar meu plano até o fim. Aproximando-me então da cama com todo o cuidado, libertei os braços e as pernas de minha avó - ou o que deles restava - das correias que a aprisionavam e as levei, juntamente com todos os recipientes de vidro, até um determinado local no jardim onde cavara um buraco, com a finalidade de ocultar as provas do meu crime.

          Uma vez despejada a última pá de terra, voltei ao quarto de minha avó, inundei-o de alcool e risquei um fósforo. Fechei a porta, aguardei alguns minutos e então liguei para o Corpo de Bombeiros, sem prevenir as empregadas do que estava ocorrendo. Mas elas, naturalmente, acabaram acordando devido ao calor e ao cheiro de fumaça e correram desesperadas para o jardim, onde me encontraram no balanço que lá havia - assumi propositadamente um ar ausente, perfeitamente aceitável em uma menina que, incapaz de reagir a tão imprevisto e rude golpe, refugiara-se em justificado mutismo. 

          Os bombeiros chegaram mais rapidamente do que eu previra, conseguindo impedir que o fogo se alastrasse por toda a casa. E naquela mesma noite, acho que numa delegacia, as empregadas e eu fomos submetidas a infindáveis perguntas, que objetivavam saber se poderíamos fornecer algum tipo de pista capaz de esclarecer o imprevisto incêndio. As domésticas, coitadas, limitaram-se a falar ao mesmo tempo, sem nada informar de relevante, obviamente... E eu, quando interrogada, permaneci todo o tempo mantendo o mesmo ar ausente e sem pronunciar uma única palavra - limitava-me a usufruir internamente o prazer da visão do corpo de minha avó, completamente carbonizado, sendo retirado da casa. 

         Apiedaram-se de mim, naturalmente, e respeitaram minha dor...E mais ainda se apiedaram quando, dois dias depois, chorei copiosamente durante o enterro da megera. Fui manchete de jornal. Fui capa de revista. Recebi cartas de solidariedade e a todas respondi, utilizando uma escrita emocionada. Depois, tudo se normalizou. Fui acolhida num pensionato de freiras caridosas que me brindavam com diários mimos. Aos 18 anos, com parte do dinheiro que herdara, comprei um pequeno apartamento, onde vivi sozinha durante toda a minha vida.

        E aqui se encerra esta breve narrativa. Mas antes de despedir-me gostaria de fazer as seguintes considerações:

     Nunca mais consegui sentir nada.
     Nem alegria. Nem tristeza. Nada.

     Jamais me arrependi do que havia feito, mas tampouco usufruí os benefícios que imaginara ao perpetrar minha vingança. Tenho a impressão de que todas as minhas energias se esgotaram com o planejamento e execução do referido crime. Tornei-me uma pessoa anestesiada. Indiferente. Apática. Só passei a viver mais intensamente a partir do momento em que o câncer tomou conta de mim. É curioso, não resta a menor dúvida...
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Este breve conto foi escrito no exato dia em que completei 15 anos. Jamais entendi as razões que me levaram a isso, justamente numa data tão festiva. É possível que Freud explique...

                   

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