sexta-feira, 10 de junho de 2011

O teatro de Sarah Kane

Luca Scarlini


O teatro de Sarah Kane vive de excessos cênicos e verbais e, mal surgiu nos palcos londrinos com Blasted (Ruínas), espetáculo muito criticado que em 1995 marcou o início da nova dramaturgia inglesa, a autora foi alvo de um fogo cruzado de controvérsias ao propor uma escrita extrema e visionária. A autora, desaparecida em 1999, inspirava-se numa tradição precisa de horrores cênicos, com o fio de sangue que, desde os isabelinos (mas ainda mais dos jacobitas) corre na cultura teatral anglo-saxônica até Edward Bond, ele próprio protagonista, na estréia de Saved em 1966, de uma histeria censória semelhante à que acolheu a estréia de Kane.

E que, não por acaso, se solidarizou com a jovem autora, num momento de verdadeiro linchamento por parte da imprensa. Terminadas as intrigas dos tablóides, ainda não foi feito nenhum estudo sério sobre sua obra, que concluiu com a representação da sua última peça, póstuma, 4.48 Psychosis, que leva à cena, com resultados perturbadores, o tema do suicídio.

Temas e imagens alternam-se e elidem-se nos seus cinco textos, enquanto a língua é um instrumento de absoluta precisão e simultaneamente um meio de dominação e veículo de ambigüidade. Os títulos das obras são por si só lapidários e polissêmicos, como por exemplo Blasted que, quer na Itália como na França, manteve o original inglês, inserindo no cartaz todas as variantes semânticas (dilacerados, destruídos etc.) do termo.

Na mesma direção se move Cleansed (Purificados) em que o título alude, ao mesmo tempo, a uma cruel queimadura de feridas morais e corpóreas e a uma terrível limpeza étnica. O palco, nas suas obras, é lugar de conflito, com uma fortíssima tensão que revisita as aberrações do século XX e imagina outras para o século XXI. A guerra exterior predomina, dando corpo a uma distopia que transfere para Leeds acontecimentos análogos aos da ex-Iugoslávia.

A guerra paira sobre um luxuoso quarto de hotel onde se desenrola uma batalha interior - aquela entre Ian, um jornalista sem escrúpulos e sem ilusões, e Cate, uma jovem perturbada - num crescendo de atos de prepotência e violência, que depois serão retomados sobre o protragonista masculino pelo soldado que irrompe no quarto fechado, marcando um ritmo circular de atrocidades.

Ainda mais explícito é o percurso de Cleansed, em que um campus universitário se transforma literalmente num campo de concentração, dominado por um mad doctor chamado Tinker (o nome desta personagem, a meio caminho entre Menguele e Frankestein, é um a alusão transparente ao do crítico mais encarniçado quando da estréia de Blasted, que escreveu uma crítica, destinada a ficar nos anais da imprensa inglesa, intitulada "Uma repugnante festa de porcaria"), que usa os corpos das pessoas para seu próprio prazer, com uma vasta gama à escolha, desde a masturbação enquanto assiste a um peep-show, até a mutilação de membros e órgãos dos desgraçados hóspedes-prisioneiros da instituição.

A realidade é um bloco compacto de agressão e ameaça, mas, nas obras da autora, está bem presente, para além da violência, também o reverso da medalha: a das vítimas, que têm problemas na fala e dificuldades de expressão. Cate em Blasted gagueja, Carl em Cleansed é privado do uso da língua pelo médico maníaco e muitíssimas são as imagens de silêncio forçado, de imposição de mutismo, de apagamento de possibilidades de expressão.

Tudo isso deixa porém intacta a possibilidade de exprimir ternura, de manifestar afeto nesta sangrenta paisagem com ruínas. Quando apareceu pela primeira vez, muuitos críticos acusaram a autora de apontar para o grand guignol e para o pulp fiction, de acumular cadáveres e estupros unicamente pela necessidade publicitária de chocar os espectadores e a profissão.

Porém, mesmo no brevíssimo período de cinco anos de escrita, os elementos muitas vezes redundantes na sua primeira peça encontraram uma eficaz decantação e declinação, desmentindo o argumento simplista e pondo em primeiro plano os percursos complexos de uma pesquisa estilística acurada.

A referência ao teatro isabelino e jacobita assume a centralidade de um modelo a reelaborar e a narração da violência encontra exatamente aqui os filtros adequados para a teatralização, utilizando com grande mestria as convenções de um gênero para um confronto direto com a atualidade.

As referências são muitas: em Blasted Ian fica cego pela mão do soldado, como Gloucester em Rei Lear; em Cleansed a Carl é cortada a língua e depois as mãos, como acontece a Lavínia em Tito Andronico. Mas, neste sentido, o centro será Phaedra's Love (O Amor de Fedra), verdadeira declaração de estilo e manifesto poético.

O texto, nascido no interior de um projeto de reescrita dos mitos, promovido pelo Gate Theatre de Londres, põe em cena uma história numa versão pop, com uma ambientação contemporânea que inclui magistralmente várias alusões maliciosas e cruéis às notícias escaldantes da casa real inglesa. Não há, porém, nenhuma intenção satírica e a relação com o presente serve só para fornecer um cenário plausível para um confronto cerrado com o modelo clássico.

Hipólito é um mandrião gordo e debochado, vítima de um spleen insuperável, que pratica sexo para se distrair, está permanentemente sujo e sempre a ver televisão e comer batatas fritas. E as alusões à atualidade que encontramos são utilizadas com uma composição extremamente sábia, sem nunca cair em descrições anedóticas. O modelo neste caso é Sêneca, ponto de referência do teatro isabelino, sempre muito popular no âmbito britânico até a atualidade, como demonstram várias versões reescritas dos últimos anos, entre as quais se destaca o magnífico Thyestes de Caryl Churchill, apresentado no Royal Court em 1994.

De Fedra do maior autor de tragédias romano, a autora extrai a escolha de uma inelutabilidade que é sobretudo linguística, visto que as palavras (entre as quais as que compõem a acusação de estupro formulada por Fedra) levam a ações violentas que nelas, ambígüa e vaidosamente, se espelham. Não é por acaso que o protagonista, castrado por um coro de "gente comum" bisbilhoteira, de talk show, conclui com um sorriso a história: "Se tivesse sido sempre assim", feliz por ter finalmente encontrado uma emoção capaz de o acordar do seu incurável torpor existencial.

Um autor que morre jovem permanece bloqueado numa fixidez de gestos linguísticos e estilísticos reconhecidos, que deveriam constituir o seu mais verdadeiro valor expressivo, mas isso é um mito exegético. Muitas vezes, na aparente unicidade de uma trama criativa, podem encontrar-se fios de cor diferente e atmosferas decididamente díspares.

Se por um lado não há dúvida de que em toda a sua obra se encontra presente a idéia do palco como ringue e como campo de batalha, o sentido das ações que aí se desenrolam muda completamente. O percurso de Kane explicitou claramente, com os últimos dois trabalhos, a vontade de não ser selada num esteriótipo.

Crave (Falta), apesar de falar ainda de violência e prepotência, marca decididamente uma virada em direção a uma explícita colocação poética, montando afirmações e fragmentos de histórias que às vezes remetem para obras literárias (Eliot, Shakespeare) e às vezes para a Bíblia, confiando-se a quatro vozes aparentemente indistintas: A, B, C e M.

E ainda mais radical é a escolha do último trabalho, 4.48 Psychosis - o título refere-se à hora da noite em que, segundo as estatísticas, a atração pelo suicídio é maior - em que o próprio conceito de identidade é posto completamente de lado, no contínuo e perturbante alternar entre afirmação e rejeição de si próprio e em que também a própria possibilidade de estabelecer uma noção de gênero é posta em causa.

O texto, que tem uma explícita construção poética, "queima" na síntese lírica uma procura existencial complexa e dolorosa e radiografa um progressivo alheamento do mundo, marcado por afirmações categóricas de emoções e por catálogos de psicofármacos, que dão o ritmo a uma descida ao abismo da loucura e à rejeição progressiva do próprio conceito de cura, num isolamento terrível em que as relações sociais são apenas fonte de sofrimento ("cada elogio arranca um pedaço de minha alma").

Em ambos os casos, a dramaturgia põe à margem a presença (ou seja, o plot nitidamente definido, como acontecia nos textos anteriores construídos através de excessos narrativos) e confere centralidade à ausência e ao seu poder evocativo. A história fragmenta-se de fato nos reflexos perturbados de vozes sem corpo, que aludem a mil possíveis histórias que depois são deixadas e retomadas como que num contínuo fluxo lírico que acolhe imprevistas viagens dramáticas.

Sarah Kane é sem dúvida a maior expoente da chamada new angry generation britânica, que tanto interesse suscitou em todo o mundo nos últimos anos. Apesar de a raiva, que de Osborne em diante fustiga a recepção de todos os novos autores ingleses controversos, ser na realidade apenas um termo retórico, sem espessura e interesse, que apaixona sobretudo os jornais.

A leitura dada pela imprensa diária, onde, por enquanto, apareceram sobretudo tomadas de posição crítica sobre a autora, visou de fato, salvo poucas exceções, banalizá-la, representando-a, na melhor das hipóteses, como uma monocórdia escitora engagée que, na sua própria obra, se confronta diretamente com a sociedade, fazendo tábua rasa e falando contra tudo e contra todos.

Não há dúvida de que a vida em comum e a degradação existencial são temas comuns nas suas obras, mas sempre sem uma vontade aridamente documentalista ou banalmente "movimentista". O "aqui e agora" de uma existência social desintegrada são apenas aspectos de uma problemática do viver mais ampla, que pode colorir-se de tonalidades míticas ou mergulhar nos vórtices de um filme de terror.

Nesta perspectiva assume um sentido clarificador Skin, o seu único filme (realizado por Vincent O'Connell) que narra uma história cruel e hilariante sobre "educação", indagando até o mais profundo cambiante o fazer e desfazer de uma personalidade em relação a impulsos externos. O protagonista, um skinhead que passa o dia a bater em negros e a embebedar-se, torna-se de fato escravo de Marcia, uma domina das Carapibas que mudará para sempre o seu modo de ver a realidade.

Mas o tom da história, que também tem aspectos ásperos, é na realidade muito ligeiro e, longe de querer constituir um docudrama sobre a "violência nos neonazis na periferia londrina" (ou similares), narra uma história de obtusidade e iluminação que poderia perfeitamente ter também um outro contexto e desenvolvimento e que põe em evidência dinâmicas de ressonância universal. Mais uma confirmação da validade do mundo expressivo da autora, das suas notáveis capacidades em decliná-lo em sistemas estilísticos facetados e de grande complexidade.

Finalmente, o que é central na sua escrita é a idéia do palco como lugar de catarse, onde o extremo horror da realidade pode ser decantado na paixão ou na sua completa ausência, no excesso ou na falta de palavras, mas sempre com uma nítida tomada de posição ética a favor das vítimas, dos perdedores, que é o fio vermelho dos seus textos. E que se declina entre infinitas variações e sutis verificações, mas sempre com grande evidência, no próprio fato teatral.
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Extraído da introdução a Tutto il teatro de Sarah Kane. Torino, Einaudi, 2000. Tradução de Alessandra Balsamo.

Sarah Kane

Nasceu em Londres em 03 de fevereiro de 1971, filha de pais jornalistas. Blasted, sua primeira peça, estreou em janeiro de 1995 (no Royal Court Theatre) numa encenação de James Macdonald. Phaedra's Love seria a segunda, encomendada pelo Gate Theatre e estreada em maio de 1996 numa encenação da própria Sarah Kane. Seguiu-se Cleansed, dirigida por James Macdonald em abril de 1998 e Crave em agosto do mesmo ano, escrita sob o psudônimo Marie Kelvedon e feita pela companhia Paines Plough com encenação de Vicky Featherstone. Sarah Kane também encenou o Woyzeck de Georg Büchner. A autora se suicidou em Londres em 20 de fevereiro de 1999.

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